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O estudo das desigualdades existentes na sociedade portuguesa, na segunda metade do século XX, teve no conceito de dualidade, proposto por Adérito Sedas Nunes (1964), a sua primeira grande síntese analítica. De acordo com esta perspectiva de conceptualização da realidade social e económica, o país estava no início dos anos de 1960 dividido entre dois grupos populacionais. Um deles mais escolarizado e qualificado, com acesso generalizado a um conjunto de bens e serviços típicos dos processos de modernização tecnológica e cultural, no seio do qual o exercício de uma actividade profissional na indústria ou no emergente sector terciário ia-se tornando preponderante. O outro composto por uma população em que as baixas qualificações e o analfabetismo ainda dominavam, com acesso reduzido àqueles bens e serviços e cujo perfil profissional dos seus elementos estava ligado ao sector agrícola tradicional. Esta oposição social e económica sobrepunha-se a fronteiras territoriais bastante bem definidas, as quais marcavam os limites de uma sociedade moderna, confinada essencialmente aos aglomerados urbanos de Lisboa e do Porto, e uma sociedade do tipo tradicional na quase totalidade do território. Enquanto na sociedade moderna a indústria e os serviços eram actividades em expansão, na sociedade tradicional a agricultura encontrava-se numa fase de estagnação económica. A dualidade do país correspondia a oposições territoriais muito claras ao nível dos desempenhos e perfis económicos, dos recursos educativos e de condições de vida da população.

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As desigualdades em Portugal eram definidas, portanto, por uma dualidade de espaços territoriais que integravam no seu seio estruturas sociais, dinâmicas económicas e culturais de tempos societais bastante diferentes. Um tempo atrasado em relação à modernidade dos países mais desenvolvidos e um tempo de aproximação a esse padrão social, económico e cultural. Neste sentido, o conceito de dualidade de Sedas Nunes significava, em síntese, uma relação de desigualdade entre categorias sociais que pertenciam a espaços territoriais e a tempos societais distantes em múltiplas esferas.

O hibridismo estrutural da sociedade portuguesa, no qual se desvendam processos de atraso ou aproximação em relação aos países mais desenvolvidos, mas também dinâmicas de produção ou atenuação das desigualdades entre categorias sociais, continuou a ser um importante eixo de problematização académica da sociedade portuguesa. Se Adérito Sedas Nunes conceptualizava as dinâmicas de progresso e de atraso a partir da dualidade territorial da sua implementação, as elaborações analíticas que se lhe seguiram em torno do hibridismo estrutural do país tenderam a centrar-se mais no perfil do país como uma unidade. Ou seja, as suas feições de atraso ou progresso definem-se à escala nacional e em comparação com outros países ou conjuntos de países.

Portugal era, de facto, nos anos de 1960 e 1970, uma sociedade bastante atrasada em relação à realidade dos países europeus. Tal como refere Judt (2006: 579), “o nível de vida geral no Portugal de Salazar era mais característico da África contemporânea do que da Europa continental: o rendimento anual per capita em 1960 era só de 160 dólares (em comparação com os 219 na Turquia ou 1453 nos EUA). Os ricos eram de facto muito ricos, a mortalidade infantil era a mais elevada da Europa e 32% da população adulta era analfabeta”.

Várias têm sido as formulações usadas para categorizar o perfil estrutural do país na sua comparação com outros países ou agregados geográficos. Barreto (1995) defendeu que o atraso económico, educacional e institucional do país era um indicador do seu cariz “periférico” face ao conjunto de países mais desenvolvidos, os que ocupam o centro dos processos de modernização económica, tecnológica e qualificacional. Para Santos (1985, 1994), a localização periférica de Portugal no centro dos países mais desenvolvidos corresponde à “semiperiferia” do sistema mundial – o que equivale a um estatuto histórico, mas também contemporâneo, de “colonizador colonizado”(2011).

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Nesta perspectiva, o atraso estrutural é acompanhado por uma perda de poder do país, por uma sujeição política em relação às orientações e interesses dos países mais desenvolvidos, em particular os do centro e norte da Europa. No entender de Mateus (2013: 28), Portugal era ainda, 25 anos após ter aderido à Comunidade Económica Europeia, “um país da coesão”, devido aos desequilíbrios macroeconómicos e financeiros, à falta de competitividade e produtividade da economia, ao perfil pouco qualificado da mão-de-obra e ao rendimento agregado comparativamente baixo do país. Costa e Machado (1998) consideraram, no final da década de 1990, que os processos de mudança social em Portugal eram típicos de uma “modernidade inacabada”, marcada por “traços” típicos dos “países europeus de modernidade avançada” e outros que distanciavam o país desse conjunto. Se os indicadores na área da saúde, a fecundidade, a feminização do mercado de trabalho, a terciarização da economia ou a dimensão da classe média aproximavam Portugal dos países mais desenvolvidos, o perfil escolar e a qualificação profissional da população representavam um nítido sinal de atraso. Apesar das melhorias bastante significativas verificadas na última década e meia, este diagnóstico mantém a sua pertinência: mais de 60% da população adulta em Portugal não tinha ido, nos primeiros anos da década de 2010, além do 9º ano de escolaridade e, por exemplo, a incidência do abandono escolar precoce mantinha-se em níveis bastante acima dos valores médios da UE (Cantante et al., 2014; Carmo, Cantante e Baptista, 2010). Segundo Gomes e Duarte (2012: 354), para Portugal conseguir atingir os valores médios da UE referentes à taxa de escolarização secundária da população activa seriam necessárias cerca de cinco décadas, considerando que as tendências recentes não se alterassem. Depois de transitar, na segunda metade do século XX, de um sistema económico baseado na agricultura para uma economia industrializada, Portugal não conseguiu ainda assumir-se como uma economia baseada no conhecimento, devido ao atraso qualificacional da sua população (Pereira e Lains, 2010).

Este atraso escolar e qualificacional da população tem implicações na definição da estrutura de classes sociais do país. De facto, a recomposição da estrutura social do país combina tendências de modernização com outras de atraso social e económico. Por um lado, verifica-se o aumento significativo do peso relativo das profissões ligadas às actividades técnicas e científicas e da classe dos empresários, dirigentes e profissionais liberais (que constitui, em grande medida, a elite económica do país), e a passagem dos assalariados agrícolas de grupo maioritário, em 1960, a classe profissional com uma

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dimensão residual. Por outro, constata-se que essa mesma estrutura de classes é ainda caracterizada pelo elevado peso das profissões pouco qualificadas dos serviços e do operariado (Costa et al., 2015; Mauritti e Nunes, 2013; Costa, Machado e Almeida, 2007). Neste sentido, a estrutura de classes em Portugal caracteriza-se por uma sub- representação das classes sociais detentoras de maiores recursos económicos e culturais e pela respectiva sobre-representação das que tipicamente detêm esses recursos em menor volume. A esta evidência acrescenta-se o facto de essas classes sociais terem menores recursos educativos em comparação com as classes homólogas nos outros países da UE – especialmente no conjunto de países mais desenvolvidos. A classe socioprofissional dos profissionais técnicos e de enquadramento é a excepção a esta regra, pois os seus recursos educativos são relativamente próximos dos apurados em termos médios na generalidade dos outros países da UE (Costa, Machado e Almeida, 2007).

A evolução verificada nas últimas décadas ao nível do perfil socioprofissional do mercado de trabalho em Portugal demonstra que, apesar dos processos de recomposição e qualificação da população assalariada, existe ainda uma estratificação social bastante bem definida entre classes sociais (Carmo, Carvalho e Cantante, 2015).

Os processos de recomposição da estrutura social portuguesa nas últimas décadas, pelos quais é possível identificar alterações no perfil económico do país e da sua estrutura de classes, bem como melhorias significativas na escolaridade da população, não foram suficientes para aproximar de forma decisiva Portugal do conjunto de países mais desenvolvidos. A nível interno persiste uma desigualdade bastante acentuada na distribuição dos recursos escolares e das qualificações profissionais, que implicam, em grande medida, capacidades diferenciadas para lidar com os desafios colocados pela sociedade do conhecimento e da informação (Ávila, 2008; Costa, Machado e Almeida, 2007).

No processo de modernização das últimas décadas, as desigualdades sociais, económicas e culturais que se desvendavam no país dual de Adérito Sedas Nunes deixaram de corresponder, no essencial, a oposições entre parcelas territoriais. As desigualdades que se afirmam nos indicadores de modernização e de atraso são mais ou menos transversais ao território, apesar de a variável “território” manter a sua pertinência heurística.

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Uma das dimensões mais relevantes das desigualdades existentes no país, e que acompanhou as dinâmicas descritas, prende-se com a distribuição do rendimento. Portugal é um país que regista desigualdades económicas comparativamente elevadas. Importa por isso relacionar as dinâmicas mais vastas de recomposição social da sociedade portuguesa com a estrutura de distribuição do rendimento.

3.2 Uma aproximação às dinâmicas de distribuição do rendimento em Portugal