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Marx ancorou, portanto, a explicação das desigualdades económicas e da estratificação social à relação dos indivíduos com a propriedade. Weber concordou com a centralidade que a relação com a propriedade assume na definição da “situação de classe”, referindo que os proprietários e os não proprietários formam as duas “categorias básicas” da estrutura social (Weber, 1978 [1922]: 927). Contudo, sublinha que essas duas categorias

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são bastante heterogéneas no seu interior, de acordo com o tipo de propriedade que se detém, mas tendo também em conta os serviços que o trabalhador oferece ao mercado. A relação com a propriedade não define por si a pertença de classe dos indivíduos, pois é no mercado que se constituem as oportunidades materiais de cada um, através da valorização comparativa dos recursos por eles oferecidos. Em abstracto, a valorização salarial de um trabalhador qualificado pode, a partir da perspectiva weberiana, ser superior ao rendimento de um proprietário. No modo de produção capitalista, o capital e o trabalho deixam de ser categorias económicas que ganham uma tradução directa nos processos de formação das classes sociais. Estas, enquanto conjuntos de indivíduos que têm “em comum uma componente causal específica das suas oportunidades de vida”, constituem-se a partir do valor relativo que os diferentes tipos de propriedade e de trabalho assumem no mercado. Neste sentido, para Weber, a “situação de classe” corresponde em última análise à “situação de mercado” (idem: 928).

Ao desrigidificar a análise da estratificação social marxista, Weber contribuiu para a densificação teórica da sociologia das classes sociais contemporâneas, incluindo as de inspiração marxista. As sociedades capitalistas do século XX sofreram alterações muito significativas ao nível da composição socioprofissional das suas estruturas sociais, em especial a partir do final da II Guerra Mundial. Emergiu, por um lado, aquilo que Poulantzas (1982) designou como uma “nova pequena burguesia” – os trabalhadores por conta de outrem do sector terciário –, ou, na definição de Erikson e Goldthorpe (1992), uma “classe dos serviços”, que cresceu à medida que o sector terciário foi assumindo um peso preponderante no produto agregado das economias desenvolvidas. Mas, por outro, embora o perfil socioprofissional desta nova categoria social se diferenciasse quer do operariado, quer da burguesia, no seu interior descobriam-se subcategorias ou fracções de classe bastante heterógenas. As desigualdades de condições de vida e de rendimento produzidas no mercado de trabalho passaram a ser conceptualizadas tendo em conta novos critérios, articulados ou não, de divisão e hierarquização do factor trabalho.

Wright e Perrone (1977) referem que a estrutura de classes das sociedades capitalistas é composta não só pelos capitalistas, pelos trabalhadores e pela pequena burguesia, mas também pelos gestores. A especificidade desta classe nas relações sociais de produção é que exerce uma actividade de controlo ou supervisão do trabalho assalariado. Os autores propõem que a definição dos lugares de classe nos processos de estratificação social

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obedece não só à relação que os indivíduos mantêm com a propriedade e à condição de compradores ou vendedores de força de trabalho, mas também à função de autoridade que exercem no interior das organizações.

Anos mais tarde, Wright (1997) aprofundou esta proposta e delineou uma grelha multidimensional de estratificação das classes sociais. Em relação aos proprietários dos meios de produção, o autor diferencia três fracções de classe tendo em conta o número de empregados a seu cargo: os capitalistas (10 ou mais empregados), os pequenos empregadores (dois a nove empregados) e a pequena burguesia. Quanto aos trabalhadores por conta de outrem, o lugar de classe define-se, simultaneamente, por relação à autoridade, às qualificações e ao conhecimento pericial. No que à autoridade diz respeito, Wright refere, em primeiro lugar, que os gestores e supervisores têm uma “localização contraditória nas relações de classe” (idem: 20), no sentido em que podem ser considerados capitalistas por dominarem os trabalhadores, mas são trabalhadores porque são controlados e explorados pelos capitalistas. Quanto mais elevada for a função na hierarquia da autoridade, mais próximos os gestores e supervisores estão da classe capitalista (os CEO’s, por exemplo) e, inversamente, quanto mais baixa for a posição nessa hierarquia mais próximos se encontram da classe trabalhadora. Em segundo, as funções de autoridade colocam o trabalhador numa posição estratégica, que permite aos trabalhadores que as desempenham participar na apropriação da mais-valia do trabalho. Os salários e remunerações destes trabalhadores tendem a estar acima dos custos de produção e reprodução da sua força de trabalho (independentemente da qualificação que possam ter). As remunerações relativamente elevadas que recebem fundamentam-se em “rendas de lealdade” (idem: 21), pelas quais o exercício da autoridade por parte destas fracções de classe contribui para a persecução dos objectivos das empresas. Neste sentido, Wright refere que os gestores ocupam uma “posição privilegiada de apropriação no interior das relações de exploração” (idem: 22).

Quanto à dimensão qualificacional, defende-se que as qualificações e o conhecimento conferem aos trabalhadores por conta de outrem um tipo de poder específico na relação com os proprietários. Esse poder decorre da potencial escassez desse tipo de recursos nos mercados de trabalho e no facto do conhecimento e das qualificações serem mais dificilmente passíveis de controlo ou monotorização. Também a este nível, os empregadores são obrigados a empreender estratégias remuneratórias que comprometam este tipo de empregados com os seus próprios objectivos, o que significa

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que a qualificação, tal como a autoridade, propicia o acesso a posições de apropriação privilegiada do rendimento.

A perspectiva de Wright compatibiliza a oposição marxista de factores capital-trabalho, com a concepção weberiana acerca do valor relativo que os diferentes tipos de recursos assumem num determinado momento no mercado de trabalho. Apesar de promover uma divisão fundamental da estrutura de classes a partir da relação com a propriedade, defende que a relação que os trabalhadores mantêm com os recursos qualificacionais e com a autoridade implica que o lugar que ocupam no processo produtivo possa ser ambivalente e contraditório. Quanto mais elevada é a posição ocupada na escala de distribuição desses dois recursos, mais próximos estão da classe capitalista e mais beneficiam nos processos de apropriação da mais-valia do factor trabalho – em última análise, reduzindo uma parte do lucro que potencialmente caberia ao capital.

Este rearranjo da composição das classes sociais e dos processos de estratificação social tem motivado problematizações adicionais acerca dos critérios operativos que devem presidir à delimitação da classe capitalista. Wolff e Zacharias (2013) rejeitam que a classe capitalista possa ser definida como o conjunto de trabalhadores por conta própria que empreguem três ou mais trabalhadores (Hogan, 2005), dez ou mais trabalhadores (Wright, 1997), ou pelo menos quatro trabalhadores não familiares (Schooler e Schoenbach, 1994). A contratação por um indivíduo de um dado número de trabalhadores, pela qual se estabelece uma relação de exploração entre as partes, é o pressuposto geral destas definições. Wolff e Zacharias contestam estas formulações devido a três motivos: a dificuldade operativa de distinguir a parte do rendimento líquido do trabalhador por conta própria que cabe à componente salarial e a que consiste de lucros; os empregadores que contratam um número reduzido de trabalhadores são eles próprios subcontratados por grandes empresas – o que poderá significar que a sua relação laboral com os seus empregados é mais próxima da exercida por um supervisor do que por um capitalista; em terceiro lugar, tendo como referência os Estados Unidos, os autores referem que a maior parte dos empregados por conta de outrem trabalham nas grandes corporações, são estas que detêm a parcela maioritária dos activos não residenciais do país e são elas que recebem a maioria das receitas comerciais. Apesar de admitirem que uma das possibilidades para levar a cabo esta categorização seria ter como referência os indivíduos que controlam as grandes corporações (os seus proprietários e gestores), defendem que essa estratégia seria também reducionista, pois

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deixaria de fora a “aristocracia financeira” (idem: 1384). Propõem assim que a categorização da classe capitalista deixe de ter como referência primordial a posição ocupada no processo produtivo e a relação com os recursos estruturantes dessas posições, e passe a fundamentar-se no nível de riqueza patrimonial não-residencial.1

Os processos de estratificação social, em particular os que concernem à distribuição do rendimento de mercado, definem-se a partir de relações de produção, de hierarquização do trabalho e de acumulação de riqueza complexos. A oposição entre trabalho e capital mantém a sua pertinência analítica, mas a forma como o rendimento e a riqueza são distribuídos implica que se problematize os fundamentos da estratificação social, dos recursos e propriedades estruturantes na definição dos lugares de classe, e da própria lógica de categorização desses grupos.

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O limite inferior da riqueza da classe capitalista é estipulado em quatro milhões de dólares de riqueza patrimonial não-residencial ou a titularidade de acções de empresas no valor de dois milhões de dólares.

45 2 Desigualdades económicas e o grande fosso no topo

Este capítulo terá como problemática central a evolução das desigualdades económicas nos países mais desenvolvidos, em particular a sua concentração nos grupos da parte superior da distribuição. No primeiro ponto promover-se-á um primeiro olhar sobre os números da desigualdade no mundo e a sua distribuição no interior dos países. Pretende-se a este nível retratar dois eixos fundamentais pelos quais se definem as disparidades de rendimentos e riqueza: por um lado, a oposição entre o mundo rico e o mundo pobre ou em desenvolvimento; por outro, o aumento da concentração dos recursos económicos nos grupos que formam a parte superior da estratificação do rendimento a nível nacional. No segundo ponto complementa-se esta primeira abordagem, atentando nas dinâmicas históricas verificadas em vários países de concentração dos recursos económicos nos grupos do topo da distribuição; posteriormente, analisar-se-á a recomposição funcional do topo da distribuição dos rendimentos; por último, serão elencadas as principais explicações que têm vindo a ser avançadas para o aumento das desigualdades de rendimento.