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SUMÁRIO

CAPÍTULO 4 – MADE IN CHINA, p

1. APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS

1.2 DUPLA MORTE DO ARQUITETO

O espaço arquitetônico, apesar de ser tradicionalmente relacionado à permanência, não é imutável. É um espaço em transição e constante atualização. Cada cultura, em épocas diferentes de suas histórias, tratou a arquitetura de maneira distinta: por vezes muitas edificações não eram encaradas como arquitetura, e o arquiteto, antes do advento do urbanismo e da figura do arquiteto–urbanista, raramente se ocupava da escala doméstica das habitações, salvo grandes palácios e templos que, em geral, junto às grandes estruturas, representavam o poder de forma simbólica.

Assim, por muitos séculos, no continente europeu – da antiguidade clássica, passando pela Idade Média e pelo renascimento urbano –, a arquitetura (αρχιτεκτονική) fazia jus ao radical grego arqui– (αρχι) que compõe sua estrutura etimológica e nos remete à noção de grande estrutura, e indicava a sua importância e primazia. Essas grandes estruturas serviam como

63 expressão do cosmos34 e da estrutura social e cultural das sociedades que as produziam.

Portanto, a figura do construtor e mestre-artesão (arquiteto anônimo) estava fundamentalmente ligada àquele que investe o seu tempo na criação de estruturas como partes de um diagrama de representação cosmológica.

Deste mestre artesão, anônimo, emerge a figura do arquiteto, aquele que assina a obra e atribui autoria às estruturas que desenha. É essa figura do arquiteto, autoral, que se alia ao poder do Estado, para criar arranjos espaciais e diagramas de poder que representassem o cosmos. Essa função do espaço construído como representação cosmológica se repete, de formas distintas, em todas as civilizações já conhecidas. O espaço representa a sociedade, portanto as mudanças na sociedade mudam o espaço e as suas formas de produção.

Amigo do Rei

No princípio era o anonimato. Na Grécia ou na China antigas, por muitos séculos, as arquiteturas (grandes estruturas, ou αρχιτεκτονική) eram concebidas por artesãos e artífices que permaneciam anônimos. Para além de um abrigo, e longe de representarem uma marca ou uma grife arquitetônica, as arquiteturas da antiguidade representavam fisicamente o arranjo do cosmos de cada civilização, segundo a concepção do sagrado e da religiosidade. Os autores anônimos dessas obras trabalhavam para expressar devoção aos deuses ou às figuras que representavam o poder divino na terra como o sacerdote, o faraó ou o imperador.

O anonimato é interrompido na Grécia, onde o progressivo fortalecimento do poder do Estado e o florescimento da economia geraram um ambiente favorável para o aparecimento para a figura do arkhitékton.35 Não mais um anônimo, mas uma figura reconhecida, cuja

assinatura acompanhava cada arquitetura concebida por ele. O arquiteto, como faziam antes os artífices, trabalhava na concepção de grandes estruturas – arquiteturas – como diagramas de poder do Estado sendo ele uma democracia ou uma autocracia. A figura do arquiteto seguiu ganhando um amplo reconhecimento público e trabalhando junto ao poder do Estado até a conquista da Grécia por Roma. Longe de diminuir essa relação entre o arquiteto e o Estado, a conquista romana a reforçou incorporando as práticas gregas às

34 O cosmos é o termo que designa o universo e seu conjunto, toda estrutura universal em sua

totalidade. Cosmologia é o estudo do cosmos em vários dos seus significados. Todas as cosmologias consistem em uma tentativa de compreensão da ordem implícita e da beleza das coisas e dos seres.

35 Da etimologia grega, o termo arkhitékton significa “o que detém uma ciência ou uma arte e dirige as

64 romanas e utilizando a arquitetura, e os architectus, 36 para produzir espaços que

representassem o poder de Roma em toda a extensão do seu território.

Com a queda de Roma, no século V, e a gradual dissolução da burocracia do Estado romano, a função do architectus volta a ser ocupada pelos artesãos envoltos no anonimato, ou seja, que não assinavam suas obras ao longo de toda a Idade Média. É apenas com o Renascimento cultural e o princípio da Idade Moderna, no século XV, que o architectus volta a ocupar uma posição de destaque na sociedade, novamente associado ao poder do Estado. É nesse contexto que Filippo Brunelleschi (1377–1446), em 1419, emergiu como um dos primeiros architectus da Idade Moderna a “entrar para a história” com seu nome associado às estruturas que projetou sendo reconhecido, ainda em vida, como um grande artista, algo pouco comum até então. Essas estruturas, ainda inseridas em uma lógica de representação cosmológica, passaram a carregar novamente consigo a marca de uma assinatura. São obras religiosas, cívicas, urbanas, porém agora autorais, atribuídas a um sujeito e associadas ao poder do Estado e à religiosidade.

Assim o renascimento cultural acompanhou o renascimento urbano e, se desde o fim do sistema feudal e a subsequente formação de estados-nação, as cidades ressurgiram no panorama europeu como grandes centros comerciais e administrativos, elas também despontaram como grandes centros culturais como marcos na paisagem, agora urbana, e, por vezes, reconhecidas à distância pela sua silhueta recortada no horizonte – surge assim o skyline iconográfico para as cidades. Desde a construção da cúpula de Santa Maria Del Fiore em Florença por Brunelleschi e seu impacto na paisagem urbana, Florença se tornou um modelo de skyline europeu que passou a ser perseguido por outras cidades. Essa obsessão pelo skyline–modelo (que perdura até hoje) não ocorria de maneira gratuita, mas era usada como forma de demostrar o poder de um soberano, de um líder ou de uma instituição. E para a obtenção deste skyline desejado era indispensável a participação do arquiteto, não apenas como mero construtor, mas como artista que materializaria as ambições e conceberia as feições do poder.

36 Da etimologia latina, o termo architectus, adaptado do grego, adaptado do grego, significa “chefe,

65 Figura 2: Fotografia da igreja de Santa Maria del Fiore, com a cúpula desenhada por Brunelleschi e o skyline da cidade de Florença.. Fotografia do autor. Ano 2015. Acervo do autor.

Entretanto, se Brunelleschi foi o primeiro architectus a obter amplo reconhecimento, quem definiu a figura do arquiteto que se prolongou por muitos séculos até a Revolução Industrial foi Leon Battista Alberti (1404–1472), com sua obra arquitetônica construída e seus tratados sobre várias áreas do saber, entre elas a Arquitetura. O seu famoso tratado De re

aedificatoria marcou uma inflexão na arquitetura e criou a figura do arquiteto substituindo o architectus. Este tratado operou tamanhas modificações sobre o arranjo espacial das

cidades europeias que, segundo Choay (1985), podemos compreende-lo como um “discurso fundador de espaço de origem recente e ocidental”. (Ibid., p. 3) A forma discursiva do tratado De re aedificatoria inaugura uma nova forma de pensar arquitetura não mais reduzida ou subordinada a “nenhum saber exterior, a nenhuma prática política, econômica, jurídica ou técnica”, (Ibid., p. 4) e como forma de afirmar a autoridade da arquitetura e do arquiteto, “não recorre às apresentações e aos ritos religiosos, aos valores transcendentes da cidade”, instaurando um método racional para concepção e realização de edifícios e cidades inteiras, antes do urbanismo enquanto ciência.

66 Diferentemente do architectus, que através da prática dominavam a técnica de seu ofício, e que antes de serem reconhecidos como architectus passavam por um longo aprendizado como artesãos, Alberti era essencialmente um intelectual, um cavalheiro florentino humanista, diletante, estudioso dos clássicos. O que seduziu Alberti a estudar arquitetura foram os avanços renascentistas nas técnicas de desenho como a perspectiva e a racionalidade das formas geométricas, da representação, e da teoria e crítica arquitetônica, que relegavam a experiência prática a uma posição secundária. Para Alberti, o arquiteto partiria sempre de uma posição teórica e não prática, seria um intelectual e não um artífice. Tal posição teórica representou uma inflexão na forma de pensar arquitetura no ocidente. Enquanto surgia no Ocidente a figura do arquiteto (intelectual) como concebido por Alberti, a China entrava em um período de grande prosperidade e estabilidade sob a governança da Dinastia Ming (1368–1644). Entretanto apesar do poder do soberano ser claramente visível na paisagem chinesa deste período, com a construção de grandes palácios como o complexo palaciano da Cidade Proibida Púrpura (iniciado em 1420) e templos como o Salão de Orações pelas Boas Colheitas do Templo do Céu (construído em 1545) – ambos em Pequim –, os autores destas grandes obras permanecem anônimos até hoje, pois, como afirma a historiadora de arquitetura chinesa Wilma Fairbank “os chineses nunca consideraram arquitetura uma arte”,37 e a maior parte das obras arquitetônicas eram

executadas por artesãos e artífices seguindo manuais técnicos e práticas passados de geração para geração.

67 Figura 3: Fotografia do Portão Sul da Cidade Proibida Púrpura. Pequim. Fotografia do autor. Ano 2015. Acervo do autor.

Figura 4: Fotografia do Portão Sul do Templo do céu com o telhado do Salão de Orações pelas Boas Colheitas ao fundo. Pequim. Fotografia do autor. Ano 2015. Acervo do autor.

68 O ponto alto da associação entre o arquiteto e o soberano ocorreu no período Barroco, quando as ideias de Alberti alcançam um novo patamar, já que um dos muitos artifícios do Barroco é o inteligente uso da perspectiva para enganar a visão e seduzir as pessoas, com cada elemento exercendo sua função em um cenário maior, pensado de maneira racional utilizando as técnicas do desenho e as leis da perspectiva como forma de orientar a organização do espaço. Com a ruptura da igreja católica através da Reforma Protestante de Martin Lutero na Alemanha a igreja católica viu o número de fiéis reduzido e seu poder ameaçado. Como resposta, convocou o Concílio de Trento (1545–1563) ou contrarreforma realizado na cidade de Trento para discutir quais medidas seriam usadas para reestruturar o sistema da igreja como um todo, desde o seu sistema administrativo, aos seus rituais e sobretudo, a sua estética.

Os arquitetos então foram convocados a elaborarem discursos eloquentes e sedutores através de seus projetos arquitetônicos. Mais do que nunca, as cidades e suas grandes estruturas deveriam expressar o poder do Papa e também do soberano. Pouco após o final do Concílio de Trento, O papa Sixto V ascendeu ao papado e intensificou o processo de reestruturação da Igreja Católica Apostólica Romana. Como forma de expressar o poder da Igreja sobre a cidade de Roma, o Sixto V encomendou ao arquiteto Domenico Fontana, em 1584, um plano de reforma urbana sem precedentes em qualquer dos centros urbanos europeus até então. Seus desenhos, repletos de truques de perspectiva, produziram um impressionante cenário urbano, geralmente resultado de geometrias imperfeitas. A reforma abriu novas vias e retificou muitas outras já existentes. Entre as novas vias criadas sobre a malha medieval da cidade de Roma está uma gigantesca rua nomeada Strada Felice, em homenagem ao próprio Papa, cujo nome de batismo era Felice Peretti di Montalto.

Se o Renascimento deu luz a belas obras concebidas de maneira isolada, o Barroco adicionou a perspectiva visual e a unidade de conjunto urbano necessárias para a percepção da arquitetura como obra monumental. De maneira especial, o plano barroco para a cidade de Roma concebeu a conexão visual de uma igreja para a outra, de maneira que, ao andar pela cidade, o pedestre parecia estar sempre se dirigindo a uma igreja. Esse desenho urbano barroco tinha como objetivo a formação de constelações de monumentos distribuídos de maneira a manter o cidadão (espectador) sempre entretido ao percorrer as ruas da cidade e constantemente ciente do poder do soberano.

69 Figura 5: Piazza del Popolo com as três vias retilíneas convergentes, como elaboradas no plano de Domenico Fontana para Roma, a pedido do Papa Sixto V, em 1584. Detalhe do Mapa elaborado por Gianbattista Nolli, no ano de 1748. Disponível em: <https://es.wikipedia.org/wiki/Piazza_del_Popolo> Acesso em: 25 set. 2016

Fora de Roma, planos Barrocos se espalharam por muitas outras cidades da Europa, como em Paris onde o rei Luis XIV ordenou a abertura de um eixo de perspectiva que partisse do Palácio das Tulherias em meio aos jardins simétricos do palácio onde mandou plantar árvores em ambos os lados do Grand Cours. O plano foi elaborado por André Le Noitre, que também desenhou os jardins do palácio de Versalhes, famosos por suas longas perspectivas monumentais. O arquiteto seguiu elaborando planos monumentais como expressão do desejo e poder dos soberanos em toda a Europa até o século XVIII, quando grandes mudanças sociopolíticas passam a impedir a continuação da construção das cidades de acordo com esses princípios.

70 Como resultado dessas grandes mudanças, o campo da arquitetura passou por profundas transformações desde o final do século XVIII, principalmente com o advento da cidade burguesa e da especulação imobiliária aliada à estratificação burguesa citadina refletida na hierarquização e reorganização social e espacial do território urbano. As investidas da burguesia na apropriação científica e racional do espaço, marcada pelo fim do modelo soberano e início da sociedade disciplinar – que deveria produzir corpos dóceis (Foucault, 1987) dentro de um modelo ótimo de cidade –, resultaram no embelezamento estratégico do espaço urbano, cada vez mais justificado por formas discursivas que o legitimavam cientificamente.

A grande reforma da Paris oitocentista – abertura de grandes bulevares compostos por fachadas reluzentes, empreendida pelo prefeito Barão de Haussmann – é o primeiro grande exemplo da reorganização da vida e do corpo social, prática que, anos mais tarde, ainda no mesmo século, seria teorizada, institucionalizada e denominada urbanização. Basicamente, esta nova tecnologia de poder deveria somar-se àquelas que mantinham o corpo disciplinado, e encarregar-se de regulamentar os corpos (populações), fortalecendo e provendo a manutenção da burguesia no poder ao passo que mantinham os miseráveis, os pobres, e os trabalhadores afastados do centro de Paris.

A arquitetura, que antes era pensada para ser vista (grandes estruturas compostas por formas que representavam e mantinham a força soberana, ou a força imanente de Deus), agora passa a operar em função da burguesia e da disciplina do corpo, na pequena escala, mais adequadas as operações disciplinares no intuito final de criar corpos dóceis, e preparar o terreno para a regulação da aglomeração destes corpos (já dóceis) represados nos fenômenos das populações citadinas. Assim, das grandes estruturas como fortalezas, residências reais, castelos, etc., a arquitetura (e o arquiteto) passam a se ocupar das escolas, prisões, hospitais, clínicas, espaços cerrados pensados dentro do contexto de novos saberes–poderes organizados pela sociedade do controle. A preocupação já não é mais quanto a imponência do poder do soberano, através da ostentação e do luxo presente nos espaços, mas sim nas relações de formas e de forças capazes de permitir a vigília, tirando o foco central da burguesia como “detentora do poder” para pulverizá-lo entre os técnicos, os profissionais de saúde, os urbanistas, os médicos, a polícia, e, assim, garantir a manutenção da burguesia no poder através da disciplina engendrada por estes novos espaços cerrados.

Algumas das mais famosas utopias urbanas surgiram neste contexto político e econômico de constante reafirmação de poder por parte da burguesia – que buscava sua distinção social espelhada na nova organização espacial estratificada da cidade –, daí vimos surgir o

71 modelo do ótimo, ou os modelos urbanos ideais do urbanismo, que foram sistematizados e estudados pela crítica Françoise Choay em pelo menos duas das suas célebres publicações, O urbanismo: utopias e realidades, uma antologia (originalmente publicado em 1965, portanto em paralelo à fase arqueológica foucaultiana) e, posteriormente, A regra e o

modelo: sobre a teoria da arquitetura e do urbanismo (resultado da tese de doutorado da

autora, defendida em março de 1978), coincidindo com o fim da fase genealógica da obra de Foucault. Estas semelhanças seriam irrelevantes aqui, caso não existisse uma relação entre as análises de Choay com os procedimentos foucaultianos de análise de discursos, enunciados, ditos e escritos. No texto que se segue no livro A regra e o modelo, a autora analisa exaustivamente palavra por palavra, extraindo trechos escritos pelos diversos teóricos do urbanismo para interroga-los a luz de seus próprios enunciados, comparando-os aos modelos, projetos e planos (a maioria deles ideais e utópicos) elaborados por nomes conhecidos da teoria e crítica da arquitetura e do urbanismo como a Cidade Industrial de Tony Garnier, o modelo urbano Garden–City de Ebenezer Howard, a cidade americana espraiada de Frank Lloyd Wright, a Broadacre–City, ou a Cidade–Radiosa de Le Corbusier. A correlação com as condições de possibilidades e emergências da filosofia da história foucaultiana fica ainda mais evidente quando Choay (1985), na sessão de encerramento intitulada “abertura: das palavras às coisas”, põe lado a lado os textos dos tratados de arquitetura, das utopias e das teorias de urbanismo analisados no decorrer do livro, buscando as palavras que desvendam uma visão nova das coisas, (Ibid., p. 311) chegando a conclusão de que os tratados de arquitetura resultaram na emergência das teorias de urbanismo como anunciadores prévios, pondo em cheque a “certidão de nascimento”, enquanto arquétipo, das teorias do urbanismo cunhadas na Teoria de Cerdà, pelo urbanista catalão Ildefons Cerdà.

A partir desta inflexão o arquiteto, agora arquiteto–urbanista, passa não só a disciplinar, mas a disciplinar e regular os corpos: na arquitetura ficou encarregado da escala minuciosa da disciplina do corpo, com a missão de torna-lo dócil, e, no urbanismo, deveria trabalhar na regulação dos fenômenos da população, composta pelo “acumulo de corpos” já disciplinados pela arquitetura, na escala citadina dos espaços abertos da cidade.

O surgimento da cidade burguesa

Londres foi uma das cidades industriais do século XIX que mais condensou em si um grande sucesso econômico e comercial, estimulando o desenvolvimento de uma próspera burguesia industrial. A Revolução Gloriosa, no final do século XVII, levou à assinatura da Bill

of Rights, que permitiu a supremacia do Parlamento sobre a monarquia. Com o fim do

72 aristocracia rural) passa a exercer o poder através do Parlamento, formando um Estado Liberal adequado ao desenvolvimento do capitalismo. Tais condições políticas permitiram à Inglaterra um pioneirismo na Revolução Industrial, ainda em meados do século XVIII. Na condição de capital da Inglaterra, Londres não só antecipou a Revolução Industrial, mas também a primeira grande inflexão da arquitetura desde a Cidade Barroca com o surgimento da Cidade Burguesa.

Com a Revolução Industrial, o fenômeno de inchaço das primeiras metrópoles urbanas foi proporcional ao nível de industrialização dos países com economia capitalista mais desenvolvida, em consequência direta do sistema fabril que ordenava e manipulava os indivíduos na vida cotidiana das cidades, ocorrendo fundamentalmente na Europa, e tendo Londres como paradigma da caótica migração campo-cidade, seguida, a partir de 1830, por cidades francesas e alemãs. 38 As cidades industriais foram alvo de críticas no decorrer do

século XIX, a partir da proposição de novos modelos urbanos ideais que buscavam “corrigir” ou organizar a desordem dos centros urbanos cada vez mais caóticos. A crítica de Marx e Engels39 é uma das poucas da época a se recusaram a formular um modelo espacial, já que a supressão da diferença entre cidade-campo “não pode ser levada a uma projeção espacial”. (CHOAY, p. 16)

Apesar da crítica ferrenha de Friedrich Engels às condições de vida da classe proletária na cidade, sua crítica não conseguiu escapar da estupefação com o tamanho da cidade e com a imponência da paisagem urbana composta por gigantescas docas e da reunião dos muitos navios, contribuindo para a afirmação de Londres como uma grande cidade, com grande poderio naval e circulação de mercadorias.

Uma cidade como Londres, onde podemos andar sem sequer chegar ao princípio do fim, sem descobrir o menor indício que assinale a proximidade do campo, é realmente um caso singular. Esta enorme centralização, este amontoado de 3,5 milhões de seres humanos num único lugar centuplicou o poder destes 3,5 milhões de homens. Ela elevou Londres à condição de capital comercial do mundo, criou docas gigantes e reuniu milhares de navios, que cobrem continuamente o Tâmisa. Não conheço nada mais imponente que o espetáculo oferecido pelo Tâmisa, quando subimos o

38 Londres, em menos de um século, passou de 864 845 habitantes em 1801 para 4 232 118 em

1891. A população praticamente quintuplicou, enquanto o número de outras cidades inglesas com mais de cem mil habitantes passou de apenas duas para trinta entre 1800 e 1895. Na Alemanha, no mesmo período, o número de cidades com mais de cem mil habitantes passou de duas para vinte e