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STAR SYSTEM, ESPETACULARIZAÇÃO URBANA E A CIDADE MERCADORIA

SUMÁRIO

Artigo 10. O solo das cidades é propriedade do estado O solo das áreas rurais e suburbanas é propriedade dos coletivos com exceção

3. XING-LING

3.1 STAR SYSTEM, ESPETACULARIZAÇÃO URBANA E A CIDADE MERCADORIA

Partindo da aproximação teórica feita no primeiro capítulo em direção ao entendimento dos saberes/poderes e dos processos de subjetivação, traremos a produção contemporânea do

star system no contexto do Capitalismo Informacional, tencionando suas engrenagens

urbanísticas e arquitetônicas sob o paradigma ético-estético defendido por Félix Guattari, já que a disciplina da arquitetura e do urbanismo é coautora da sujeição social e produtora de subjetividade (em um nível molar) nas sociedades do controle.

Em certos contextos ao longo do século XX, têm surgido novas relações entre a cidade e as práticas do desenho urbano ligado a teorias que atualizaram a interação entre arquitetos- urbanistas, autoridades de Estado e os cidadãos. Notadamente as teorias do arquiteto

191 holandês Rem Koolhaas, um dos principais integrantes do star system atual, tem uma dupla relação entre a legitimação de seus projetos das mais diversas escalas (S,M,L,XL) que fazem uma alusão as numerações-padronizadas e serializadas da vestimenta/moda, e a uma suposta condição “genérica” latente nas cidades contemporâneas cada vez mais competitivas entre si, principalmente por turistas e investimentos estrangeiros.

A arquitetura do star system é indissociada do mass media e do Capitalismo Mundial Integrado (CMI), que não pára de agenciar territórios existenciais e enunciados (o que se diz) das coisas da arquitetura e do urbanismo, que concorrem em escala molar na produção de subjetividade, e, em geral, são ligados a grandes encomendas de projetos espetaculares que produzem imagens através da iconografia, de tecnologias avançadas e de geometrias “complexas” a serem vendidas em um mercado de bens e culturas cada vez mais capturadas por conceitos ainda herdados da Modernidade123 como o conceito de Identidade.

(MAGNAVITA, 2010, p. 70) Ocorre que, além do discurso do “genérico” ou cidade “sem identidade” ter circulado bastante dentro do pensamento urbanístico, por outro lado temos justamente a captura da identidade e da cultura como mercadoria, concebida como uma marca ou grife, além do uso político da memória nos “centros históricos” das cidades, hoje cada vez mais museificados e espetacularizados, como nos mostra Jaques (2010):

É possível falar-se em processos urbanos distintos, como culturalização, patrimonialização, museificação, musealisação, estetização, turistificação, gentrificação, mas todos fazem parte desse processo contemporâneo de espetacularização das cidades contemporâneas. Este processo, por sua vez, é indissociável das novas estratégias de marketing, ou mesmo do que podemos chamar hoje de branding urbano (construção de marcas) dos projetos ditos de revitalização urbana, que buscam construir uma nova imagem para as cidades, que lhes garanta um lugar na nova geopolítica das redes globalizadas de cidades turísticas e culturais. Na lógica contemporânea de consumo cultural massificado, a cultura é concebida como uma simples imagem de marca ou grife de entretenimento, a ser consumida rapidamente. (JACQUES, 2010, p. 163)

Segundo Harvey (1992), o desenvolvimento da área de consumo possui duas facetas importantes: a primeira seria a mobilização da moda em mercados de massa, acelerando o ritmo de consumo de uma ampla gama de estilos de vida e atividades de recreação, e a

123 Segundo Magnavita (2010), no texto Diferença versus Identidade nos processos culturais, o termo

Identidade é “um conceito conservador, herdado da antiguidade, e que integra o repertório conceitual da lógica clássica aristotélica, reciclada pela Modernidade”. (ibid., p. 70) Segundo o autor, não existem coisas em si, as coisas são relações. A identidade é um reconhecimento (recognição), uma das quatro ilusões do mundo da representação. Ainda segundo o autor, “tudo se transforma” e “nada permanece o mesmo”, portanto o termo mais empregado hoje deveria ser o da Diferença e não o da Identidade.

192 segunda seria a passagem do consumo de bens para o consumo de serviços, não apenas pessoais, mas, principalmente, para diversão, espetáculos, eventos e distrações.

O “tempo de vida” desses serviços (uma visita a um museu, ir a um concerto de rock ou ao cinema, assistir a palestras ou frequentar clubes), embora difícil de estimar, é bem menor do que o de um automóvel ou de uma máquina de lavar. Como há limites para a acumulação e para o giro de bens físicos […], faz sentido que os capitalistas se voltem para o fornecimento de serviços bastante efêmeros em termos de consumo. (Ibid., p. 258)

A volatilidade e efemeridade destes novos produtos/serviços acompanhou a aceleração generalizada dos tempos de giro do capital, no domínio da produção de mercadorias, que se tornaram cada vez mais descartáveis124 a medida que a publicidade e as imagens passaram

a manipular o gosto e a opinião através da construção de novos sistemas de signos e imagens pela mídia que “passaram a ter um papel muito mais integrador nas práticas culturais, tendo assumido agora uma importância muito maior na dinâmica de crescimento do capitalismo”. (Ibid. p 259) A publicidade passa não somente a informar ou publicar (no sentido de tornar algo público), mas principalmente manipular os desejos e gostos mediante imagens que podem ou não ter relação com o produto em si, mas sim com o logotipo, a imagem do produto a ser vendido. Neste sentido imagens se tornaram mercadorias.

Acresce que as imagens se tornaram, em certo sentido, mercadorias. Esse fenômeno levou Baudrillard (1981) a alegar que a análise marxiana da produção de mercadorias está ultrapassada, porque o capitalismo agora tem preocupação predominante com a produção de signos, imagens e sistemas de signos, e não com as próprias mercadorias. [...] a efemeridade e a comunicabilidade instantânea no espaço tornam-se virtudes a ser exploradas e apropriadas pelos capitalistas para os seus próprios fins. (HARVEY, 1992, p. 260)

Desta forma empresas e corporações, além de governos locais e líderes políticos, tem se apropriado da rápida construção de imagens para figurarem numa espécie de bolsa de valores imagético que visam a legitimação e manutenção da autoridade e do poder, fazendo com que a midiatização da política passasse a permear tudo. A competição pela construção de imagens se tornou tão lucrativo que “o investimento em patrocínio das artes, exposições, produções televisivas e novos prédios, bem como marketing direto” (Ibidem.) são hoje tão importantes quanto investimento em novas fábricas e maquinários. Assim os novos processos de marketing, ou branding urbano, passaram a figurar os projetos de revitalização

124 A partir de 1960 o efeito da volatilidade das mercadorias levou escritores como Alvin Toffler a

cunhar o termo “sociedade do descarte”. Além da capacidade de jogar fora objetos como xícaras, pratos, talheres, embalagens, roupas, etc., também foi observado o descarte cada vez maior de estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, etc. (HARVEY, 1992, p. 258)

193 urbana, “que buscam construir uma nova imagem para as cidades contemporâneas, que lhes garanta um lugar na geopolítica das redes globalizadas de cidades turísticas e culturais”. (JACQUES, 2010, p. 163)

Neste contexto de apropriação de imagens por empresas e políticos através de técnicas de

marketing e a adoção de um vocabulário emprestado do planejamento estratégico

empresarial, temos a difusão de modelos de transformação urbana articulados a eventos como as olimpíadas de Barcelona de 1992, que resultou na exportação do “modelo Barcelona”125 pelos catalãs do CIDEU (Centro Iberoamericano de Desarrollo Estratégico

Urbano), e a Exposição Mundial de Lisboa em 1998 (que também foi capital da cultura em

1994), ambas elencadas por Jordi Borja e Manuel Castells como exemplos de cidades que adequaram sua imagem ao promoverem mudanças de infraestrutura “se adequando às novas exigências da economia global e da competitividade internacional, mediante planos estratégicos”. (BORJA apud FISCHER, 1996, p. 79)

O city-marketing envolvido nas transformações de Barcelona foi tratado por Arantes (2000) no livro A Cidade do Pensamento Único, no texto Uma estratégia fatal. A cultura nas novas

gestões urbanas, no qual alega que a dimensão cultural entrou de vez nas políticas de

renovação urbana para configurar o novo planejamento urbano dito “estratégico”, que através de uma abordagem culturalista da cidade promove os “conhecidos processos de

gentrification (ou “revitalização urbana”, conforme preferem falar seus promotores), em

grande parte desencadeados pelo reencontro glamoroso entre Cultura (urbana ou não) e Capital”. (ARANTES et. al, 2000 p. 15) Segundo a autora, a partir dos anos 1960 com

cultural turn126 seguido pela virada para o pós-moderno em arquitetura e urbanismo, quando

falamos em cidade hoje em dia, fala-se cada vez mais em requalificação com ênfase nas questões técnicas referentes ao plano (ou masterplan como preferem os americanos do novo urbanismo), e cada vez menos nas questões mais ligadas aos primeiros modernos como racionalidade, funcionalidade, zoneamento, etc. Essas estratégias culturais levaram ao aparecimento das cidade-empreendimento de última geração, em que governantes e investidores “passaram a desbravar uma nova fronteira de acumulação de poder e dinheiro – o negócio das imagens”. (Ibid., p. 16)

125 O modelo Barcelona passou a ser copiado por outras cidades que tentaram imitar Barcelona, o

processo foi tão receituário que o BIRD passou a exigir “planos estratégicos” para conceder financiamento (ARANTES, 2000, p. 58) Além disso, as estratégias da “animação cultural” se deram pelo reforço dos valores mais representativos de Barcelona como Miró, Picasso nas artes, o Plano de Cerdà e a arquitetura modernista catalã de Gaudí, a ideia da rambla, dos calçadões à beira-mar.

126 Guy Debord já havia anunciado que a cultura seria a “mercadoria vedete” na próxima rodada do

capitalismo, exercendo a mesma função estratégica desempenhada nos dois ciclos anteriores pela estrada de ferro e pelo automóvel. (DEBORD apud ARANTES, 2000, p. 47)

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O “tudo é cultura” da era que parece ter se inaugurado nos idos 1960 teria se transformado de vez naquilo que venho chamando de culturalismo de

mercado. De tal forma que a cultura [...] ao tornar-se imagem, quer dizer,

representação e sua respectiva interpretação (como sabe qualquer gerente de marketing numa sociedade do espetáculo), acabou moldando, de um lado, indivíduos (ou coletividades “imaginadas”) que se auto-identificam pelo consumo ostensivo de estilos e lealdade a todo tipo de marca; de outro, o sistema altamente concentrado dos provedores desses produtos tão intangíveis quanto fabulosamente lucrativos. Trocado em miúdos, esse é o verdadeiro “poder da identidade”. Daí a âncora identitária urbanística. (ARANTES, 2000, p. 16)

Os principais alvos da gestão empresarial e mercantil da cidade são as áreas mais centrais ou aquelas que passaram pela desindustrialização e por transformações durante os anos 1960-1970, como foi o caso de cidades americanas, a exemplo de Baltimore, em que os políticos se reuniram em prol de construir uma “ideia de cidade” como uma comunidade, “devido à necessidade de combater o medo e o não-uso das áreas do centro da cidade” (HARVEY, 1992, p. 90), resultando em um planejamento urbano estrategicamente feito para o espetáculo urbano administrado e controlado da Baltimore City Fair (setembro de 1970), e a construção posterior do Harbor Place à beira-mar, além de um centro de ciências, de um aquário, de um centro de convenções, de uma marina, etc., que exigiam “uma arquitetura do espetáculo, com sua sensação de brilho superficial e de prazer participativo transitório, de exibição e de efemeridade”. (Ibid., p. 91) Tal espetáculo gerou uma retomada do interesse da população pelos grandes centros urbanos, algo que estava em decadência nos Estados Unidos desde o grande crescimento dos subúrbios no pós-segunda guerra mundial, de maneira que esta retomada de interesse (posterior ao grande projeto de requalificação), ficou internacionalmente conhecida como “efeito Baltimore”. Mas, apesar da cidade- máquina-de-crescimento empresarial (a growth machine de Molotch)127 ser essencialmente americana, no contexto europeu neste mesmo período, as cidades viram empreendimentos urbanos e investimentos culturais de grande porte gerarem efeitos de “renascença urbana”

127 Passamos da cidade como “máquina de morar”, que seguia o modelo de linha de montagem

fordista (racionalidade construtiva), para a cidade-empresa ou cidade como “máquina de crescimento” (growth machine), que não vem mais para tentar corrigir, mas sim para incrementar a proliferação urbana, para otimizar a competitividade entre as cidades, todo o vocabulário foi reorientado segundo padrões empresariais e fundamentalmente econômicos. John Logan e Harvey Molotch, já em 1976, expuseram a cidade enquanto growth machine, resultante da coalizão da elite (centrada no axioma da propriedade privada imobiliária e seus derivados) com o amplo arco de negócios decorrentes das possibilidades econômicas dos lugares, com intuito de expandir a economia local e aumentar a acumulação da riqueza. O apoio da população para a cidade competir pelos investimentos é elemento indispensável enquanto plano internacional; reivindicado pelos catalães ao dar forma ao “planejamento estratégico”. Em meio a essas coalizões, a classe dominante, hoje à frente dos movimentos urbanos (empreiteiras, incorporadoras, corretores, banqueiros) são apoiados por outra parcela (mídia, políticos, promotores culturais, empresas esportivas), ambas interessadas em sua fatia da cidade-mercadoria.

195 similares, como Paris e o Centro Georges Pompidou (com seu posterior “efeito Beaubourg”),128 e Berlim que reuniu esforços para reativar lugares antes estereotipados e abandonados durante a Guerra Fria como a Potsdamer Platz, que se tornou um dos mais reluzentes símbolos da “nova Berlim”, ambas sem um planejamento estratégico estritamente dito por trás das renovações, mas com a mesma fórmula:

Megaprojetos emblemáticos; urbanismo acintosamente corporativo, nenhuma grande marca global está ausente; gentrificações se alastrando por todo o canto; exibição arquitetônica em grande estilo; parques museográficos; salas de espetáculo agrupadas em complexos multiservice de aparato e muita, muita animação cultural 24 horas. (ARANTES, 2000, p. 66)

O urbanista Peter Hall também identificou uma inflexão no movimento urbanístico na década de 1970, para o autor o planejamento urbano já apresentava sinais de mudança com a substituição de guias de uso do solo e da regulamentação das cidades através de planos convencionais, que agora passavam a encorajar o crescimento das cidades a partir de uma lógica empresarial, “cidades, a nova mensagem soou em alto e bom som, eram máquinas de produzir riqueza; o primeiro e principal objetivo do planejamento devia ser o de azeitar a máquina”, (HALL, 2013, p. 407) e na figura do planejador, que foi cada vez mais se confundindo com a do seu tradicional adversário: o empreendedor. Hall, bem como Arantes (2000) e Harvey (1992), indicam a emergência da cidade-empreendimento cada vez mais ligada a projetos e planos espetaculares, especialmente evidentes nas ruínas causadas pela crise econômica nas cidades inglesas, mas com origem nas cidades norte americanas.129 Segundo Jacques (2010), o efeito destas estratégias de venda de imagens para as cidades é o aumento da competitividade por turistas e investimentos estrangeiros que resultam em cidades cada vez mais parecidas entre si, com as mesmas lojas, mesmo mobiliário urbano, etc., em resumo cada vez mais padronizadas, uniformizadas: verdadeiras cidades- cenográficas. Cidades-mercadoria. Cada qual com sua franquia, com sua arquitetura-grife e espetaculares como é o caso dos museus-ícone: Guggenheim de Bilbao, desenhado por Frank Gehry, ou o MAC em Niterói, desenhado por Oscar Niemeyer, dentre tantos outros que passaram a literalmente representar as cidades em razão da sua arquitetura espetacular que, tendo sua silhueta simplificada ou vetorizada, cada vez mais figuram como verdadeiros logotipos para papel timbrado, ícones de programas de televisão, documentos

128 O “efeito Beaubourg” ficou conhecido por trazer na fachada as marcas das rebeliões da década

anterior, além de estampar uma arquitetura ostensiva com sugestões distópicas (ARANTES, 2000)

129 Os exemplos trazidos pelos autores também coincidem; o projeto para orla de Baltimore de

Boston, que se repetiu numa série de cidades industriais norte americanas, além de outros exemplos em Washington, Pittsburgh e Filadélfia. Cf. Hall (2013).

196 oficiais e propagandas dos governos das cidades que são representados por esta arquitetura-ícone assim como fazem grandes empresas como a Nike, Apple, McDonalds130 e seus planos estratégicos de marketing.

Essas estratégias acabam por moldar indivíduos ou coletividades (e seus territórios existenciais) através de processos de subjetivação, já que o espaço, visto sob a ótica de força política, é um produtor parcial dos modos de viver (subjetividades) através de formas de vivenciar, experienciar, ver e se apropriar dos lugares. Félix Guattari (1992), através da análise de alguns arquitetos e suas proposições projetuais, defende que os espaços construídos vão bem além de suas estruturas visíveis e funcionais pois eles são como máquinas em essência, não máquinas de morar como defendia Le Corbusier, mas sim máquinas de sentido, de sensação, máquinas abstratas e portadoras de universos incorporais (não universais) que trabalham tanto na esmagadora uniformização quanto na ressingularização libertadora da subjetividade individual e coletiva. Indicando caminhos para a potência deste tipo de ação (a subjetivação) no caminho de possíveis mudanças nas práticas cotidianas: a instauração da potência da vida frente às estratégias dos saberes- poderes que também produzem (parcialmente) subjetividades.

Quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo... Os edifícios e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas produzem uma subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de subjetivação. (GUATTARI, 1992, p. 157-158, grifo nosso)

A cidade não é estável, não é imóvel, imutável, mas sim um caos (no sentido de lugar próprio da criatividade humana), assim podemos ressignificar fatores ético-políticos não nos contentando em definir a cidade apenas em termos de sua espacialidade, ou por termos do

marketing ou branding urbano, mas principalmente através do entendimento da produção de

subjetividade envolvida, já que, ainda segundo Guattari, “o fenômeno urbano mudou de natureza”. (Ibid. 173) Se faz urgente que arquitetos e urbanistas entendam as cidades como produtoras de subjetividade individual/coletiva e comecem a trabalhar com outros saberes transdisciplinares para poderem conceber outros modos de fazer, conceber e produzir cidades, atentos à urbanidade em eterno devir.

As cidades são imensas máquinas – megamáquinas, para retomar uma expressão de Lewis Mumford – produtoras de subjetividade individual e coletiva. O que conta, com as cidades de hoje, é menos os seus aspectos de infraestrutura, de comunicação e de serviço do que o fato de

130 Note-se que hoje em dia o grande valor de mercado destas empresas está mais relacionado com

a imagem (marca, grife, logotipos) do que com o produto que vendem em si, o valor agregado ao produto vem pela força que estas empresas têm no mercado de ações de imagens.

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engendrarem, por meio de equipamentos materiais e imateriais, a existência humana sob todos os aspectos em que se queira considera-las. Daí a imensa importância de uma colaboração, de uma transdisciplinaridade entre urbanistas, os arquitetos e todas as outras disciplinas das ciências sociais, das ciências humanas, das ciências ecológicas etc... (GUATTARI, 1992, p. 172)

Entendendo a cidade tanto como lugar da criatividade, quanto uma composição de forças dos saberes-poderes, podemos fazer frente à competitividade econômica entre empresas e nações que resultam na segregação e tantos outros problemas no “cruzamento das questões econômicas, sociais e culturais” já que a cidade “produz o destino da humanidade [...] e constata-se muito frequentemente um desconhecimento desse aspecto global das problemáticas urbanas como meio de produção de subjetividade” (Ibid., p.173) que não só contempla a construção do sujeito mas de sua coletividade e território existencial (modos de vida), agenciados (modulados) constantemente pela nossa atual sociedade do controle. (DELEUZE, 1992)

Figura 72: Fotografia do balcão de tickets para adentrar a Pearl Tower. Fotografia do autor. Ano 2015. Acervo do autor.

Assim nos perguntamos, com a crise de 2007/2008 onde teria parado a ideia de cidade empresarial-cultural e turística? Ora, logicamente na China, um enorme país composto por um sem fim de templos, cidades milenares, “tradições”, exotismo marcado por uma alteridade por vezes estigmatizada e repleto de museus. É museu para tudo – museu do

198 chá, museu do jardim, museu da cidade, e até, porque não, museu da urbanização recente e futura –, na China para cada espaço, seja ele público ou privado, há tickets para tudo. Palácio de Verão, templos de Confúcio, parques e lagoas: são parte do engenhoso e lucrativo “turismo de UNESCO” internacional, e principalmente peça fundamental no turismo interno chinês (já que eles têm quase 20% da população mundial) que é, sem dúvida, bastante lucrativo.

Relembremos aqui que, segundo Harvey (2011), não só o turismo como também a urbanização na China foram responsáveis pela manutenção do capitalismo nas últimas vinte décadas: sozinha, a China “consumiu mais cimento nos últimos cinco anos do que os Estados Unidos no último século”. Mas os investimentos não ficam só nas infraestruturas, também é esperada a inauguração da maior Disneylândia do mundo na cidade de Xangai, que também investe na atração de turismo interno e externo, no intuito de retomar o posto (e fama) de “Paris do Leste” que teve no auge da colonização e das concessões europeias, na urbanização da região do Bund e sua arquitetura Art Deco,131 lideradas pelas grandes

instituições e bancos ocidentais.

Figura 73: Fotografia da loja da Disney no Pudong, com a vista do Bund ao fundo. Fotografia do autor. Ano 2015. Acervo do autor.

131 Segundo Greenspan (2014), Xangai foi uma das cidades que mais teve exemplares do estilo Art