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CAPÍTULO II O caso Jonathan

DUVAL: OLHARES, APREENSÕES E DESCONSTRUÇÃO DIMENSIONAL

Franciele Isabelita Lopes Novak Celia Finck Brandt

Esse trabalho é parte de uma dissertação de mestrado que tratou da aprendizagem de conteúdos básicos de geometria com uso do ambiente dinâmico GeoGebra. Foi considerado como recurso didático a ser analisado, visto a diversidade de possibilidades oferecidas por esse ambiente, pela facilidade em manipular e explorar figuras geométricas e as ações possíveis envolvendo a construção de figuras em um curto espaço de tempo.

Para essa caminhada, optou-se por um aporte teórico que fornecesse amparo para análise de processos cognitivos envolvendo essa área da matemática, considerando pertinente os estudos de Raymond Duval. Esse teórico trata de maneira especial da geometria, retratando a presença de diferentes tipos de atividades cognitivas, denominadas de apreensões (perceptiva, operatória, discursiva e sequencial,), olhares (botânico, agrimensor, construtor e inventor) e também de desconstrução dimensional.

Até o ano de 2016, Novak (2018) destaca um aumento em pesquisas (teses, dissertações e artigos) que relacionaram algum tipo de ambiente dinâmico ao conteúdo de Geometria. Foram encontrados seis trabalhos entre os anos de 2000 e 2008, e quarenta e três trabalhos entre os anos de 2008 e

2016. Sendo que desses quarenta e três trabalhos, apenas três trabalharam com a educação básica e, em especial, Assumpção (2015) articulou a Teoria dos Registros de Representações Semióticas a um ambiente dinâmico com alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental.

Foi considerado relevante, que nosso estudo contribuísse com uma prática para o ensino de geometria, a fim de ressaltar a importância da presença desse tema nas aulas de matemática da Educação Básica, nos Anos Finais do Ensino Fundamental. Para tanto, escolhemos conteúdos básicos envolvendo polígonos e poliedros, com uso do ambiente dinâmico GeoGebra. A partir disso, os pressupostos teóricos de Raymond Duval nos foram fundamentais para o entendimento de quais aspectos são necessários considerar em atividades de ensino e aprendizagem da geometria.

Desse modo, nossa inquietação se voltou aos tipos de atividades cognitivas específicas da geometria segundo Raymond Duval que foram identificadas a partir da experiência com o uso do ambiente dinâmico GeoGebra com a participação de 30 estudantes de uma turma de oitavo ano do Ensino Fundamental de uma escola pública do estado do Paraná.

Destaca-se nesse trabalho os apontamentos mais relevantes dessa experiência em relação ao uso do GeoGebra para o ensino da Geometria, sendo eles, o estímulo da visualização de características envolvendo as figuras geométricas e os desafios encontrados, bem como perspectivas futuras.

193 CONSIDERAÇÕES DE RAYMOND DUVAL A RESPEITO DA GEOMETRIA E DOS AMBIENTES DINÂMICOS

Os pressupostos teóricos de Duval (2004, p. 155-183, 2005, 2011, 2012a, 2012b) mostram que a aprendizagem da geometria depende da coordenação simultânea de tratamento de dois tipos de Registros de Representação Semiótica: o registro discursivo, em língua natural e o registro figural.

O aprender em geometria necessita, por parte do aluno, da coordenação de um enunciado que guiará os dados do problema e quais dados matemáticos estão associados à determinada figura. Além de interpretar o enunciado, certamente, há a presença da figura geométrica, seja ela desenhada ou imaginada.

De posse desses dois tipos de registros é que o aluno decide como resolverá o problema, quais conceitos matemáticos fará uso, se precisará modificar a figura ou considerar apenas parte dela. Trata-se de algo singular e exigente sob o ponto de vista cognitivo, porque o aluno estará mobilizando em geometria “o gesto, a linguagem e o olhar” (Duval, 2005, p. 06, tradução nossa).

Ao mobilizar o olhar, para Duval (2011) há uma maneira matemática de ver, que é contrária a um reconhecimento automático de uma figura. Esse olhar precisa reconhecer as unidades figurais elementares que são as características qualitativas dos formatos e os valores dimensionais a eles relacionados. Por meio da figura 1 é exemplificada uma classificação das unidades figurais elementares:

Figura 1 - Classificação das unidades figurais elementares

Fonte: Duval (2004, p. 159).

Ao observar na figura 1 anterior, encontra-se uma descrição do triângulo, quadrado e retângulo. Esses objetos visíveis, são de dimensão 2 com formas retilíneas e fechadas. Os valores dimensionais, por exemplo do retângulo incluem: a dimensão 2 (2D), a dimensão 1 (1D) referente aos segmentos de retas e mais além, pode-se dizer que os quatro pontos de intercessão dos segmentos de reta que formam o retângulo possuem a dimensão 0 (0D). Duval (2004, p. 159, tradução nossa, grifos do autor) explica que “uma figura geométrica é sempre uma configuração de ao menos duas unidades figurais elementares.”. Esta atividade cognitiva, que consiste em ver essas unidades figurais, é denominada de desconstrução dimensional.

Desse modo, a visualização de uma figura geométrica deve contemplar, segundo Duval (2011, p. 87, grifos do autor), a “[...] desconstrução dimensional das formas que reconhecemos imediatamente em outras formas que não enxergamos à primeira vista, e isso sem que nada mude

195 na figura afixada no monitor ou construída no papel.”. Esta mudança de olhar é um salto cognitivo considerável e pode ser fonte de dificuldades para os alunos, no entanto, trata-se de um processo essencial para o entendimento de propriedades geométricas. Por exemplo, quando se pensa em um triângulo qualquer que é formado pela união de três pontos não colineares pertencentes a um mesmo plano, por meio de segmentos de reta é requisitada uma desconstrução dimensional de 2D0D1D.

Além da desconstrução dimensional, Duval (2004, 2011, 2012a, 2012b) estabelece que outras atividades cognitivas são requisitadas na aprendizagem da Geometria, sendo por ele chamadas de apreensões. As apreensões são de quatro tipos: a apreensão perceptiva, a apreensão operatória, a apreensão discursiva e a apreensão sequencial.

O primeiro nível de apreensão é a perceptiva que permite o “reconhecimento das diferentes unidades figurais que são discerníveis em uma figura dada”. (Duval, 2004, p. 162, tradução nossa). É o modo como se percebe e entende uma figura num primeiro momento. As Figuras 2a, 2b e 2c ilustram diferentes maneiras de interpretação visual de uma figura independentemente de um enunciado:

Figura 2 - Exemplos de diferentes organizações perceptivas das figuras

De acordo com Duval (2012a), por meio da apreensão perceptiva, a Figura 2a de maneira imediata é identificada com a superposição entre um retângulo e um quadrado, a Figura 2b mostra duas formas iguais com um lado em comum, enquanto a Figura 2c mostra um retângulo dividido em duas partes.

Retomando o exemplo da Figura 2a, pode ser feita outra decomposição, em que a figura poderia ter sido formada por, ao invés de um quadrado e um retângulo, dois triângulos, dois pentágonos e um hexágono justapostos. Esse ato de pensar em diferentes modos de organizar as figuras geométricas, como o exemplo dado, mobiliza uma outra apreensão, chamada de apreensão operatória.

A apreensão operatória é mobilizada de modo controlado e está “centrada nas modificações possíveis de uma figura inicial e nas reorganizações possíveis destas modificações.” (Duval, 2012a, p. 125). Essa apreensão faz parte do processo heurístico de uma figura, “de descoberta da resolução do problema.” (Moretti & Brandt, 2015, p. 604). Na apreensão operatória, há três tipos de modificações em uma figura geométrica, sendo elas: a modificação mereológica, a modificação ótica e a modificação posicional.

A modificação mereológica, Duval (2004) explica que é uma decomposição da figura de partida em outras subfiguras de dimensão 2; essas subfiguras podem ser homogêneas, de mesmo formato, ou heterogêneas, em que as subfiguras podem possuir formatos diferentes. Do exemplo dado anteriormente, a Figura 2a teve uma modificação mereológica heterogênea pois poderia ser formada por diferentes polígonos.

197 A modificação ótica segundo Duval (2012b) ocorre pela variação de tamanho de uma mesma figura, conservando a forma e orientação no plano fronto-paralelo. É uma modificação que “consiste em ver em profundidade”. (Duval, 2004, p. 166). Já a modificação posicional, é aquela em que na figura são preservados o tamanho e a forma, porém, ocorre a variação de orientação: rotação ou translação (Duval, 2012b). Nas Figura 3A e 3B a seguir, ilustramos essas duas modificações:

Figura 3 - Exemplos de modificações ótica e posicional

Fonte: As autoras.

A apreensão operatória, composta pelas três classes de modificações apresentadas acima, permite que as figuras geométricas cumpram a função de suporte intuitivo, favorecendo a interpretação das atividades de geometria. Dependendo do número, heterogeneidade e das posições das unidades figurais que compõem a figura ocorrerá um custo de tempo para a efetivação desta apreensão (Duval, 2004). Mas, é por meio desta apreensão e da articulação de um discurso de inferências com a utilização de uma rede de conceitos e teoremas é que ocorrerá o êxito na exploração de uma figura.

Por fim a outra apreensão, denominada de sequencial, segundo Duval (2012a, p. 120), “é explicitamente solicitada em atividades de construção ou em atividades de descrição, tendo por objetivo a reprodução de uma dada

figura.”. É uma apreensão exigida para o seguimento correto de um passo-a- passo de uma construção geométrica.

Na resolução de um problema de Geometria é possível que as quatro apreensões  perceptiva, operatória, sequencial e discursiva  sejam requisitadas, sendo que algumas dessas apreensões serão mais necessárias que outras.

Além das apreensões, Duval (2005) destaca tipos de olhares mobilizados em atividades de geometria. Sendo eles: o botanista, o agrimensor, o construtor e o inventor. Os dois primeiros  botanista e agrimensor  são olhares icônicos, em que as formas que se observam podem se relacionar com objetos da realidade. Segundo Duval (2005, p. 18, tradução nossa), “a visualização icônica é totalmente independente de qualquer enunciação explícita ou implícita. Em outras palavras, não é de modo algum subordinado ao conhecimento de propriedades geométricas”. Uma visualização icônica prioriza, portanto, o reconhecimento e a diferenciação de formas.

No olhar botanista está presente o reconhecimento tanto dos contornos das formas focalizando os aspectos qualitativos quanto da nomeação dada para a figura a partir de suas características perceptivas. As atividades que privilegiam esse olhar consistem na observação de semelhanças e diferenças e não relacionam as figuras com propriedades. No entanto, este olhar é o que prepara o aluno para os demais.

O olhar agrimensor tem a finalidade de trabalhar com medidas, trabalhando com escalas de grandezas. Por exemplo, um arquiteto, ao efetuar as medidas de um cômodo em uma casa, precisa passá-las para o papel.

199 Os outros dois olhares: construtor e inventor são caracterizados por Duval (2005) como não-icônicos, por se relacionarem diretamente a objetos matemáticos. O olhar não icônico permite a identificação de variância ou invariância de certas características presentes em uma determinada figura. Essas variações ou invariâncias são resultado de propriedades implícitas que regem as figuras geométricas.

No olhar construtor, a partir do uso de instrumentos, como a régua não graduada, o compasso ou algum programa computacional, é feita a tomada de consciência sobre uma propriedade geométrica que ocorre não apenas pela característica perceptiva. Por exemplo, para construir um polígono regular é preciso compreender que as medidas de todos os lados são iguais, bem como as medidas dos ângulos.

Por fim, o olhar inventor, que percebe a necessidade de reconfiguração da figura de partida ou o acréscimo de traços, a fim de modificá-la para descobrir um procedimento de resolução de determinado problema proposto. Por exemplo, como dividir um paralelogramo para obter dois triângulos?

Assim como as apreensões, esses olhares também estão presentes em atividades de Geometria e são em maior ou menor intensidade privilegiados, dependendo da atividade proposta. A intenção desse trabalho foi de propor atividades no ambiente dinâmico GeoGebra, para isso, algumas considerações sobre esse tipo de recurso foram analisadas.

De acordo com Duval (2013, p. 31) a importância dos ambientes informatizados se dá de tal modo que “se tornaram os ambientes que comandam tão poderosamente todos os setores da atividade humana que se adaptar à realidade e ao mundo, é hoje se adaptar às telas via utilização de softwares.”. Para Duval (2011), o computador não produz um novo tipo de

registro de representação semiótica, pois as imagens que exibe são as mesmas que podem ser produzidas no papel. O autor complementa ainda que, por exemplo, para a interpretação das figuras geométricas, a necessidade de modificação mereológica ou desconstrução dimensional permanece inalterada.

No entanto, o computador é visto como uma ferramenta com potencial de tratamento ilimitado e imediato, com a possibilidade de que um registro se torne manipulável, arrastando-o, rodando-o ou mesmo estendendo-o a partir de um ponto. Essa característica favorece a “exploração heurística de problemas matemáticos.” (Duval, 2011, p. 137).

Duval (2011) pontua que as atividades cognitivas necessárias de acordo com cada software estão relacionadas com o menu de comandos. O menu de comandos corresponde ao modo de controle que é feito pelo indivíduo sobre o software. Cada item do menu de comandos exigirá ações e atividades cognitivas diferenciadas. Duval (2015) destaca que, para uma autonomia intelectual em Matemática, é necessário considerar as variáveis pertinentes, articular a representação do monitor com os enunciados, propriedades e teoremas. Considera que, com o uso do computador, as atividades matemáticas se tornam mais acessíveis e tornam as representações semióticas automáticas, o que caracteriza o recurso como inovador e interessante.

ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA: ATIVIDADES PROPOSTAS NO

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