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Podemos pensar a fotografia “Sombras do Frevo” como uma incaracterística

fotografia, fazendo um empréstimo da expressão de Tadeu Rocha quando se referia aos

novos edifícios que despontavam no horizonte do Recife. Talvez, por isso, por dificuldade de compreensão, a fotografia “Sombras do Frevo”, de Alexandre Guilherme Berzin, não foi comentada em nenhum jornal apesar da relevância de sua proposta. Sabemos que resultou de uma pesquisa de AB – de sua paixão pela festa e pelo carnaval -, que perseguia passistas nos carnavais pelas ruas do Recife. Podemos imaginar que esta foto, de passistas que frevavam - que freviam -, foi tirada nas cercanias da Praça da Independência, entre os Bairros de Santo Antônio e São José – lugar de concentração popular559. Berzin era um folião passivo, vivia a folia fotografando a folia. Fotografava não somente os passistas do frevo, mas também maracatus, caboclinhos, e as fantasias criadas pela espontaneidade do povo nas ruas. Vejamos algumas de suas imagens do carnaval e do frevo:

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A aproximação de Berzin com a cena, todavia, não permite identificar marcas ao redor que poderiam indicar a hora exata do registro, nem o lugar. Ver a fotografia “Sombras do Frevo”. Catálogo do 1º Salão Nacional de Arte Fotográfica de Pernambuco, 1954. Coleção AB/FCCR – FJN, Recife – PE.

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“Sombras do Frevo” é uma das fotografias que esteve em exposição permanente nas paredes do salão principal do FCCR, mas também figurou no Catálogo do 1º Salão

Nacional de Arte Fotográfica de Pernambuco, em 1954561. Esta foto é resultado de um

corte horizontal, que Berzin fez em laboratório, quase ao centro da imagem, expondo aquilo que seria a parte inferior que se apresentava no negativo, cujos volumes e gestos indicam pessoas que dançam, e a dança é o frevo, como nos informa o título. Representam os passistas, suas sombras projetadas na rua contrastando com o brilho dos paralelepípedos, cujas texturas em tons de cinza e branco refletem a luz do sol com intensidade.

Mas, o que são as sombras em uma fotografia? São “... a menor intensidade luminosa” aquela “emanada pelas partes escuras”. “Sombras do Frevo” possibilita compreender o dispositivo de formação da imagem na câmara obscura, podendo ser usada, por exemplo, numa aula inaugural de fotografia, como nas aulas de “História da Fotografia” de Alexandre Berzin que, para melhor explicar o fenômeno de formação das imagens, descreve por duas vezes a câmara obscura. Numa destas descrições diz:

Quando, num dia de sol, nos encontramos em casa com as portas das janelas quase cerradas de modo que só penetre no compartimento uma estreita faixa luz, é frequente(sic) vermos perpassar pelas paredes ou pelo této(sic) as imagens das pessoas ou dos carros que passam na rua. Olhando com atenção veremos que essas imagens são invertidas. Se obscuressessemos(sic) bem todo o compartimento e práticassemos(sic) hum (sic) pequeno orificio (sic) na porta duma janela de modo que a luz do sol apenas (...)se penetrar por ai, veriamos(sic) formar-se, na parede fronteira, uma imagem mais

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Fotografias de Alexandre Berzin. Nas duas primeiras aparece Dona Santa do Maracatu Elefante. Não há datação nestas fotografias. Estimamos terem sido feitas entre 1945 e 1950. Coleção AB/FCCR – FJN, Recife – PE.

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ou menos nitida (sic), e invertida, dos objetos iluminados que estivessem fora de casa, defronte do orificio (sic) da janela562.

Se entre a parede fronteira e o foco de luz fosse colocado uma cartolina, aproximando ou afastando-a do foco de luz, chegaria um ponto em que a imagem se apresentaria cada vez mais nítida. Aí poderíamos identificar as sombras que, a início, poderiam ser percebidas apenas como uma mancha mais escura ao redor do vulto iluminado. As sombras de uma imagem, ou melhor, sua menor emanação de luminosidade, se projetariam, nesta cartolina, como o inverso do inverso.

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Mas, então, se pensarmos naquele terceiro momento que diz que a imagem é quem a olha, será possível supor que, nesta fotografia, algo Berzin quis mostrar e algo quis esconder: mostrando o inverso do inverso teria mostrado o próprio frevo? Ali está a dança em ato, sem o dançarino. Foi, no entanto, num segundo momento, depois do primeiro contato com as “Sombras” que encontramos a fotografia por inteiro e questionamos novamente a sua intenção do corte, já que a imagem como se apresentava no negativo

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Aulas de “História da Fotografia” por Alexandre Berzin. Anexo 1, desta tese. Coleção AB/FCCR – FJN, Recife –PE.

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“As Sombras do Frevo”, fotografia de Alexandre Berzin, como foi apresentada no Catálogo do 1º Salão Nacional de Arte Fotográfica de Pernambuco. É possível que tenha sido fotografada em 1950. Coleção AB/FCCR – FJN, Recife – PE.

parecia ser tão bem concebida564. É tanto que, em outras ocasiões, quando as referências da época se perdem - em homenagens posteriores a AB - a imagem é exposta por inteiro.

O corte propositadamente separou a parte iluminada (vivida) acima da parte obscura (as sombras), abaixo e, mais uma vez, constatamos que Berzin faz uma outra inversão – que ainda não poderíamos precisar, mas que pode ser representada pelo ato fotográfico em si mesmo -, mostrando a parte obscura de tão alegre, iluminada e contagiante dança. A história da fotografia é a seguinte: um grupo de quatro passistas, homens, dançam o frevo rasgado565. O frevo é uma dança que, outrora, era uma luta ou uma forma de defesa criada pelos capoeiras – os brabos do Recife – que saíam às ruas acompanhando bandinhas marciais em dias de solenidades ou, no carnaval; provocando aqueles com quem cismavam ou defendendo aqueles com os quais tinham ou não afinidades. A sombrinha, que hoje em dia já foi estilizada – inclusive no tamanho e nas cores de Pernambuco -, vai substituir o porrete que os brabos usavam para marcar presença e para “sentar” naquele que se enxerisse em enfrenta-los566. Muitos desses homens tinham “costas quentes”, ou seja, ou eram filhos e parentes de pessoas importantes, de políticos, ou eram como que seus

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O negativo desta fotografia é em vidro, tamanho 6X9 ou 6X6, como parte considerável da Coleção AB/FCCR – FJN, Recife – PE.

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Nos primeiros tempos as mulheres não praticavam o frevo, era uma dança masculina. Ver: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo, capoeira e passo. Recife: Ed. de PE, 1971.

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“Os Brabos”. Em: SETTE, Mário. Maxambombas e Maracatus. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1981, p. 85.

capangas, o que os tornava imunes às leis policiais567. A tonalidade predominantemente branca das roupas era comum entre os brabos, além do que são roupas muito usadas em regiões tropicais onde o calor é intenso, como no caso do Recife, – bonés brancos - contrastando com os tons de cinza escuro da pele, indicando pessoas queimadas de sol. Braços soltos, pernas que se cruzam na tesoura entre outros passos, saltitantes como numa

polca568. Os rostos estão virados em direções diferentes, acompanham o molejo do corpo. A sensação que temos é a de que o ritmo da música foi suspenso, mas que, se fizéssemos um esforço a mais, voltaríamos a ouvi-lo.

Um dos passistas, do lado esquerdo, está parado. É sua a primeira sombra, no canto superior esquerdo. Está ali como que para amarrar a cena das sombras e para dizer a direção do sol, cuja luz perpendicular, de um começo de manhã ou de um fim de tarde, penetra forte destacando a textura do chão. Ao fundo, algumas pessoas paradas das quais só vemos pernas, de frente para o fotógrafo, observam de ângulos de visão diferentes; do outro lado, o espetáculo de dança, a cena, o volume dos corpos desenhados na rua, as silhuetas do frevo em contorção, em movimento, congeladas no instante em que seus pés nem tocam o chão. O pé suspenso do passista e a primeira sombra do sujeito parado à esquerda amarram as duas partes da imagem que Berzin resolveu separar: a fotografia do frevo, onde a luz nos passistas é intensa, acima, e a parte de baixo, das sombras, em sua geometria – volumetria - nova e esquisita, imagem que Berzin, na posição em que estava em relação aos passistas, viu primeiro.

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“Os Brabos”. Em: SETTE, Mário. Op. cit., p. 85.

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A polca, de origem polonesa como a mazurca (mais aproximada do forró), era dançada por um casal. A tesoura, cruzando as pernas com agilidade e leveza, é um dos inúmeros passos do frevo. Ver: OLIVEIRA, Valdemar de. Op. cit.

Temos o privilégio de ver a fotografia inteira e seu recorte, mas o que poderíamos dizer caso tivéssemos visto apenas a imagem das sombras? Observando-a por inteiro, percebemos que as sombras parecem adquirir vida própria, daí talvez terem provocado, em Berzin, o corte. A desconcertante “Sombras do frevo” nos sugere algumas, outras, questões. Nos leva ao decalque – ação indicial primordial que é a própria fotografia -, àquele que teria sido o primeiro relato de registro de uma imagem projetada a partir de uma pequena luz, numa cabana no deserto quando dois enamorados se despedem; cena que teria

sido a precursora também da pintura569. Nos leva também, instintivamente, às cenas

pintadas nas cavernas pré-históricas. Pensando no encontro do claro com o escuro, que possibilita todo desenho e também a fotografia, as luzes e as sombras como são projetadas na imagem de Berzin são uma excelente metáfora da relação entre o verbo e a imagem

como nos lembra Eugen Bavcar ao nos contar histórias de sombras570. Diz Bavcar: As

trevas condicionam a instauração da luz, são sua pré-imagem lógica e indispensável na ordem das coisas visíveis. A obscuridade permanece um estado latente, a saber, a luz em potência de devir e de ser 571. Lembrando o primeiro ato de criação do Gênesis, por

exemplo, a imagem possibilita pensar que o verbo, que é manifesto na escuridão, antecede a luz. Com isso, podemos pensar também que, por mais luminosidade que uma fotografia possa nos brindar, sempre haverá aquilo que não alcançamos – uma distância impenetrável. Bavcar referencia então o quadrado negro de Malevitch – sobre a necessidade do esquecimento estético: Voltar para trás do quadro negro – sombras - ou ir além dele

significa, sobretudo recusar a positividade dos modelos repetitivos e se compromissar com o negativo. Cita também Franz Kafka, para quem: O que é positivo está dado, é então preciso descobrir o negativo.

Deste modo o negativo nos é fornecido já pela obscuridade do momento vivido, na perspectiva da antropologia de Bloch, isto é, pela experiência do existir no cotidiano, experiência tampouco alcançada, nem na clareira da memória que leva ao passado, nem naquela outra que cria uma luz de antecipação sobre o futuro572.

E, retomando a discussão de Walter Benjamin a respeito da perda da aura que se instaura com a reprodução fotográfica, nesse tempo moderno de exposição, Bavcar acentua que:

Com a fotografia enquanto imagem tem início a perda da aura, segundo a perspectiva de Benjamin. Uma foto é a imagem de alguma coisa já morta e permite apenas uma vaga

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ver cap.1 desta tese; DUBOIS, Philippe. Op. cit.

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BAVCAR, Evgen. A luz e o cego. In: ARTEPENSAMENTO. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 461 - 466.

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BAVCAR, Evgen. Op. cit., p. 462.

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ilusão a respeito da identificação do aqui e agora. No entanto, a câmara obscura nos permite compreender a obscuridade como tabula rasa, como esquecimento estético por excelência em relação às imagens que nós podemos criar. Com a câmara obscura o homem encontra um equivalente tecnológico para a experiência deste esquecimento573.

Poderíamos pensar com isso que o flagrante de rua que Berzin captura na fotografia inteira é transformado, na parte baixa que ele privilegia e expõe, em pintura, em jogo de volumes e proporções que ele viu como harmoniosos para constarem em Salões de Artes Fotográficas. Mas imaginemos que tipo de discussão teria surgido da visualização das “Sombras do frevo”. Será que sem o título da fotografia - a legenda que conduz a leitura - seria facilmente identificável que ali se dançava o frevo? Uma dança certamente seria reconhecida. E sobre a sensação da imagem invertida? Seria preciso fazer um exercício não muito demorado para perceber e identificar a dança, para identificar o corpo humano suspenso de um movimento. A inversão da imagem viabiliza ainda mais sua compreensão como composição – talvez como pintura rupestre - e talvez ainda essas tenham sido as únicas respostas que obtivemos a respeito da enigmática “Sombras do Frevo”. Podemos, no entanto, considerá-la como marco da fotografia moderna no Recife tendo em vista que ela sugere a ausência direta do referente, evidentemente que sem abolir a câmara fotográfica, e também propõe um esquecimento estético retomando os primeiros atos de projeção de imagens quando o homem, ainda na caverna, acreditava na realidade das sombras.

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Idem, p. 464.

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3. 3. 3. ENTRE HISTÓRIA E FOTOGRAFIA,A ARTE FOTOGRÁFICA