• Nenhum resultado encontrado

Ecléa Bosi: a relevância das lembranças para a coletividade

No documento Download/Open (páginas 36-39)

CAPÍTULO I – HISTÓRIA, MEMÓRIA E CULTURA

1.3. Ecléa Bosi: a relevância das lembranças para a coletividade

Outra contribuição importante acerca da memória e suas relações com a história se encontra na pesquisa realizada por Ecléa Bosi (1994) sobre as “lembranças de velhos”. Considera-se que essa pesquisa contribuiu para a inauguração de um novo olhar em termos de investigação científica em que, por meio de relatos orais, os idosos pesquisados puderam ser vistos como sujeitos. Dar voz a grupos que historicamente são relegados às condições de marginalidade, sobretudo nas sociedades modernas em que as pessoas devem ser valorizadas pela sua capacidade produtiva, como se os atuais idosos não tivessem contribuído com a sociedade. Recuperar as lembranças de idosos, a partir de seus próprios depoimentos, é, sem dúvida, um dos elementos positivos do trabalho de Bosi (1994).

Assim como em Halbwachs (2006), Bosi (1994) trilha pelo percurso teórico em que a memória é considerada de caráter pessoal, mas, como esses sujeitos estão inseridos num ou mais grupos, ela partilha da ideia que a memória também possui um caráter social, pois:

Nessa linha de pesquisa, as relações a serem determinadas já não ficarão adstritas ao mundo da pessoa (relações entre o corpo e o espírito, por exemplo), mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições sociais. A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo. (BOSI, 1994, p.54)

Bosi (1994) enxerga que a memória é uma vasta herança que os sujeitos possuem em si, de que, por sua dimensão infinita, mesmo sendo estimulada, somente seja possível obter certos registros de fragmentos. Esse entendimento tem a ver com a amplitude das experiências que temos constantemente no meio social. A autora busca na obra Matéria e memória de Bergson suas definições acerca da memória, em que ele faz distinções entre o ato de perceber e o de lembrar. Enquanto a percepção não requer tanta dificuldade de explicar, o desafio passa a ser como se dá a passagem do percebido para o nível da consciência, pois é daí que as

imagens e outras experiências sensoriais ficarão retidas nas lembranças, possibilitando que o sujeito as acesse. O ato de lembrar para Bergson, apud Bosi (1994), é descrito de tal maneira:

“Lembrar-se”, em francês se souvenir, significa um movimento de “vir” “de baixo” (...) vir a tona o que estava submerso. Esse afloramento do passado combina-se com o processo corporal e presente da percepção: “aos dados imediatos e presentes dos nossos sentidos nós misturamos milhares de pormenores da nossa experiência passada. Quase sempre essas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais retemos então apenas algumas indicações, meros ‘signos’ destinados a evocar antigas imagens”. (p.46) A partir dessa afirmação, nota-se que há um aspecto psicológico no ato de lembrar que possibilita a relação do presente com o passado influenciando como os sujeitos constroem suas representações. Ao se manterem no corpo essas informações e comportamentos gera-se, assim, o que Henri Bergson (1859-1941) reconheceu como “memória-hábito”, que envolve todo um conjunto de modos de agir, pensar e distinguir no meio social; portanto, “a memória- hábito faz parte de todo o nosso adestramento cultural” (BOSI, 1994, p.49).

O sujeito está tão imerso em suas ações corriqueiras que não percebe o quanto toda sua prática é marcada por hábitos incorporados. Mas quando a pessoa é estimulada ou levada por si só a recorrer às lembranças do passado, vê-se num grande desafio que é o da releitura. A reconstrução do passado jamais será plenamente satisfatória, nem mesmo para os historiadores; por isso a estratégia utilizada pelo ser humano de buscar nos grupos a recomposição dessa memória, novamente aparecendo a força do caráter social da memória. Pelo fato de Bosi (1994) tratar especificamente das lembranças de idosos, ela recupera Bergson para indagar se não seria a memória dos velhos, a memória por excelência. Para esse filósofo, a memória mais pura é a que se assemelha aos sonhos, pois sonhamos aquilo que está submerso em nossa consciência e não temos tanto domínio sobre suas evocações.

Ademais, para Bosi (1994) os idosos por serem portadores da herança do passado, assemelham-se a verdadeiros guardiões da história, assumindo a “função social exercida aqui e agora pelo sujeito que lembra” (p.63), posto que em nossa sociedade atual não restam outras funções para eles. Diante dessa compreensão da autora, podemos reconhecer o valor e a riqueza de experiências que os velhos possuem e que, ainda, não conseguimos enxergar, já que, dentro dessa lógica, as pessoas ativas não são levadas ao exercício de lembrar.

As experiências que Thompson (1992) apresenta em sua obra A voz do passado – história oral, também expõem exemplos de trajetórias de vidas anônimas que ganham visibilidade quando transcritas em pesquisas e livros de vidas que vieram à publicação. Por

meio dos estudos da história oral, houve uma busca de elementos próprios das classes sociais menos favorecidas podendo compartilhar seu modo de vida, seus costumes, linguagens, referenciais de conduta moral e ética, seus sonhos e anseios, suas dificuldades e alegrias, seus amores influenciados por romances de folhetins, suas influências formativas de líderes orgânicos, temas relacionados à questão de gênero, relações familiares sob a influência masculina, etc. A grande quantidade de estudos possibilitou que muitos relatos oriundos de pessoas das camadas populares fossem ouvidos e permitissem que o público conhecesse, como exemplifica Thompson (1992):

Pela influência conjunta de historiadores orais, especialmente em projetos de história de comunidade, e também do rádio, temos agora histórias de vida de uma gama muito ampla de autores: de líderes locais e nacionais, de gente do povo, e também de trabalhadores não-sindicalizados; tanto de mulheres quanto de homens; de operários, empregados domésticos, biscateiros e trabalhadores subpagos, bem como de aristocratas mineiros e sindicais (p.111).

Fica evidenciado que a história oral pode promover a realização de estudos nos quais em seu cerne sujeitos sociais marginalizados socialmente ganham relevância dentro das propostas. A contribuição dos relatos das vivências e experiências, com seu teor de amarguras, sofrimentos, injustiças, privações, etc. ganham espaço e passam a ser difundidos. Se não fossem essas pesquisas instrumentalizadas pela história oral jamais conheceríamos a história de vida de mulheres, imigrantes, idosos, lideranças sindicais, pessoas que passaram a vida toda em internatos, enfim, uma rica gama de vidas humanas que sobrevivem em meio aos desafios que suas condições particulares lhes impõem.

O conhecimento do dia a dia do mundo operário, de suas angústias e dificuldades materiais numa época em que as produções literárias mais se debruçavam sobre o cotidiano aristocrático abriu-se para que a sociedade percebesse qual era o quadro em que esses trabalhadores estavam envolvidos. A difusão dessas experiências foi, também, fundamental para se atingir mais uma função social da história oral, que é a de “ampliar a informação sobre acontecimentos específicos da história operária.” (Idem, p.112).

Mas, talvez, a afirmação que mais sintetiza a importância da história e suas contribuições ao campo da pesquisa historiográfica é a de Thompson (1992) quando escreve o seguinte: “em suma, estamos lidando com fontes vivas que, exatamente por serem vivas, são capazes, à diferença das pedras com inscrições e das pilhas de papel, de trabalhar conosco num processo bidirecional.” (p.196).

A memória, portanto, permite-nos reconstituir o passado de um grupo e se apresenta como recurso importante na produção historiográfica. A partir desses teóricos abordados, é possível compreender o quanto a construção histórica e social dos sujeitos de uma pesquisa é necessária para sua problematização como para identificar sua trajetória num processo dotado de grande dinamismo, por ser marcado por transformações e permanências internas e externas. E, ao se trata de grupos humanos, mais pertinente se torna esse reconstruir.

Para compreendermos o objeto proposto em sua relação com a construção, reconstrução e transmissão da memória de um povo, suas tradições, seus valores e seus processos de inovação, há que se analisar as categorias cultura e identidade, e sua constituição histórica. É o que propomos nas próximas unidades deste capítulo.

No documento Download/Open (páginas 36-39)