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O sentido atribuído à comunidade

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CAPÍTULO I – HISTÓRIA, MEMÓRIA E CULTURA

3. CAPÍTULO III – AS COMUNIDADES KALUNGAS DO ENGENHO II E VÃO DE

3.6. Os jovens kalungas a partir dos elementos constituintes da identidade

3.6.5. O sentido atribuído à comunidade

O sentido que os jovens atribuem a sua comunidade é marcado por contradições entre permanências e transformações. Aparecem mais nos relatos dos jovens a permanência das virtudes e dos valores do povo kalunga, seguido pelas belezas naturais da região e a tranquilidade que há no local. Embora os jovens reconheçam e valorizam as belezas naturais da comunidade, também têm consciência de que muitas coisas poderiam mudar, pois ainda faltam investimentos em infraestrutura.

Segundo os relatos de alguns jovens e nas conversas informais com professores, ambos os grupos comentaram que uma das principais características do povo kalunga é a solidariedade de uns com os outros. Para eles, todos os moradores da comunidade fazem parte de uma grande família, que é justificada pela ancestralidade comum e o parentesco presentes nos principais sobrenomes deles.

Ungarelli (2009) verifica que foi por meio das relações de parentesco que a divisão das terras para morada e para as roças foi realizada, pois os filhos, depois desse casarem recebiam de seus pais uma fração da terra pertencente ao núcleo familiar para terem condições de sustentar sua família. Sobre o parentesco e os sobrenomes mais comuns nas comunidades kalungas, a autora ainda afirma que:

[...] existem poucos troncos familiares no quilombo Kalunga, sendo os sobrenomes Francisco Maia, dos Santos Rosa e Paulino da Silva muito representativos sobre os nomes dos avós, bisavós e tataravós. (UNGARELLI, 2009, p. 34)

Com relação ao modo de vida kalunga, os jovens creditam a tranquilidade, harmonia e sossego que existe em suas comunidades a virtudes desse povo, pois:

Eu gosto mais da educação do povo, assim, tipo assim, todo mundo, na hora, por exemplo, na hora que você está doente todo mundo tá lá se preocupa com você e todo mundo tá ali unido na hora que tipo assim morre alguém, todo mundo tá unido, sabe? É todo mundo nessa união, tipo assim, a união, a educação, tudo isso, eu acho que... [Rosa, 17 anos, Engenho II]

Uai, a comunidade é um lugar bom. Não tem quase briga, esses trem ai. Muito sossegado... É muito bom, porque sempre é livre, a gente pode passear aqui bastante. [Francisco, 17 anos, Engenho II]

Uá! É vida boa... Sossegada, ninguém fica perturbando o outro, não tem bandido aqui. (risos) [Sebastião, 17 anos, Vão de Almas]

As belezas naturais da região chamam a atenção dos visitantes e os impressionam, mas também elas são fatores de orgulho para os kalungas, pois reconhecem e exaltam o valor desse patrimônio. Os jovens também expressam esse pensamento compartilhado pela coletividade e afirmam que, além da natureza bela, há outros elementos que eles veem como grandes vantagens que a comunidade possui, mesmo no comparativo com outros centros urbanos:

Eu acho top demais. Porque assim eu não gosto muito de barulho, que a gente vai pra uma cidade, é carro pra lá, é coisa assim, nossa. A gente aqui fica de boas, não tem barulho muito assim. É por isso, aqui é um lugar calmo, assim de boa, sem muita briga, sem muito bandido chegar e roubar, acho por isso ai...só. Uai, porque aqui... igual eu falei, aqui é bom, calmo, sabe? Eu quero fazer a faculdade e votar pra aqui de novo. [Rosa, 17 anos, Engenho II]

Ah, o que eu penso, é que é um lugar muito bom de viver, de construir as coisas, né. De, assim, uma maneira boa de viver, porque a gente...é poucas coisa que precisa tá pagando, tipo conta de luz... só. [Cássia, 17 anos, Engenho II]

Uai, a vida aqui? É bom viver aqui dentro, porque você planta um pé de trem ali nasce, outro ali, é miór porque aqui, até eu penso que gente come aqui é mais saudável que da cidade. Que as melancias e esses trem que a gente planta aqui, mais saudável que da cidade. É bom pra viver aqui. [Pedro, 17 anos, Vão de Almas]

Para o olhar desses mesmos jovens a comunidade não é na sua totalidade um local perfeito, pois nela há também alguns elementos que eles reconhecem como negativos e, portanto, que, segundo eles, não deveriam existir, pois foi-lhes solicitado que dissessem aquilo que menos gosta em sua comunidade são:

Das igrejas, das igrejas evangélicas. [João, 16 anos, Vão de Almas]

[...] assim, é de brigas dessas coisas de boteco, né porque faz que as pessoas briga muito, né? Bebe e briga. [Cássia, 17 anos, Engenho II]

Eu acho aqui meio esquisito porque não tem venda, esses trens...de gente comprar, né...que não é igual na cidade. [Pedro, 17 anos, Vão de Almas]

Aquilo que foge aos valores mais importantes dos kalungas, sobretudo em termos de atitudes e condutas, sobretudo dos visitantes, são vistos pelos membros dessas comunidades como algo que deve ser rejeitado por se tratar de um desvio que desestabiliza a tranquilidade do local que lhes é característico.

Ai eu não gosto que tem hora que tipo assim, vem alguém, algumas pessoas de fora, que não é da comunidade, chega desaforando, sabe? Com sonzão ligado às vezes caçando encrenca com as pessoas, tipo assim, acho que é isso... [...] Mas tipo assim, de vez em quando acontece, as pessoas chega, às vezes chega assim, tem vez mesmo que chega com sonzão tá pousado em um lugar e chega com sonzão ai alto até altas horas. Ah eu não gosto disso não, acho... [Rosa, 17 anos, Engenho II]

Em dois relatos identificados em categorias de análises diferentes, observou-se a menção ao alcoolismo. Uma jovem, ao ser questionada sobre esse tema, reafirmou que tem observado não somente nas festividades do calendário dos eventos das comunidades kalungas, mas no cotidiano, a presença do álcool na comunidade, mas, principalmente o consumo dos jovens, majoritariamente do sexo masculino tem sido cada vez mais notado e gera preocupação.

Menos gosto? [pausa] De ver as pessoas bebendo pingas, assim fumando, isso que eu não gosto. [...] Tem uns jovens. [Divina, 16 anos, Vão de Almas}

O consumo de álcool nas comunidades tradicionais tem se revelado um problema, pois se inicia de forma imperceptível e até aceitável, mas, por ser visto como elemento presente nos processos de socialização e confraternização, pode migrar para uma situação de uso contínuo gerando sérios problemas para a comunidade. O álcool está dentro das festividades e dos rituais kalungas, como nas folias, nos sambas de roda e nas grandes festas dos padroeiros. A pergunta que pode ser feita é: até que ponto o alcoolismo pode contribuir para a descaracterização desses eventos? Qual o significado do álcool nessas festividades e no cotidiano dos membros das comunidades kalungas?

A princípio, pode-se notar que, ao menos em público, o consumo de álcool está ligado ao gênero masculino. Não se viu e nem foi relatado que as mulheres fizessem uso abusivo dessas bebidas, ao passo que foram vistos muitos homens, velhos e jovens consumindo álcool nos pequenos bares espalhados pelas comunidades.

Ademais, os jovens, ao promoverem um olhar crítico para o que poderia mudar em suas comunidades, e, sobretudo, se tivessem força para transformar, eles afirmaram que seus principais pontos de mudança seriam esses:

Ixe... é meio difícil de dizer, porque aqui tudo pra é bom, né? Mas, tem algumas coisas assim, que pode melhorar né? Que nem a...o colégio mesmo. Poderia ter uma reforma, poderia estar melhor, né. O posto de saúde, também poderia tá... por mais que tenha... a gente tem que agradecer que tem, mas poderia ser melhor. [Rita, 18 anos, Engenho II]

As estradas daí. Que é tudo ruim. Fazer ponte no rio ai. [João, 16 anos, Vão de Almas] Uai, acho que aqui tinha que surgir mais várias oportunidade de emprego. Porque tem muito jovens ai a partir de 20 anos assim, que já terminou, mas não tem emprego. Que ter um emprego assim, que envolvesse cada comunidade... pra mim ajudar aqui bastante... [Francisco, 17 anos, Engenho II]

Mas em meio aos desafios concretos e visíveis que as comunidades apresentam em termos estruturais, os jovens na sua grande maioria defendem a ideia e o desejo de permanecer morando no local, mesmo que tenham que buscar fora uma formação melhor, ainda afirmam seu intuito de retornar às origens, como nesses relatos a seguir:

Pretendo continuar morando aqui no Engenho. A não ser se eu vou fazer tipo faculdade, ai eu saio, mas... Quero voltar pra comunidade. Pretendo continuar morando na comunidade. Ah, porque na comunidade eu acho que é um lugar muito legal, bom e divertido. Então, assim eu pretendo continuar morando na comunidade, acho que é muito difícil eu sair daqui da comunidade. [Lucas, 17 anos, Engenho II] Porque aqui é bom demais, mais sossegado... [Francisco, 17 anos, Engenho II] Mesmo depois de formada. Porque aqui é um lugar bom, que nem eu falei, que não precisa pagar assim, essas outras coisas, conta de água, de luz, a água pra todo lado tem, tem os rios, né. Que a gente a hora que quiser vai que é pertinho da casa, assim é bom. [Cássia, 17 anos, Engenho II]

Quando expressam esse desejo, alguns jovens o afirmam em função do forte laço que os mantêm ligados às suas origens, percebendo que talvez não encontrem a tranquilidade e a mesma segurança que sua comunidade lhes oferece, pois

Ah, aqui é minha vida (risos) Aqui minha mãe e meu pai tudo mora aqui. Não tem assim muito o que procurar. Tem algumas coisas que posso procurar lá fora e trazer pra cá, não ficar apenas lá. Eu nasci aqui, tenho que buscar melhorias pra aqui. Por isso que eu pretendo. [Rita, 18 anos, Engenho II]

É, mas eu não quero ficar muito pra lá não, véio. [Sebastião, 17 anos, Vão de Almas] A comunidade kalunga exerce não somente sobre os jovens esse poder de referência e segurança. A princípio, parecenos que, na verdade, eles têm é um grande temor de sair do seu local de origem, mas da maneira como relatam e dão fundamentos a esse desejo, percebemos que a identidade desses jovens e de seus membros está intimamente ligada ao território, pois o território é mais que um espaço físico. É o território que define e dá sentido ao modo de viver e conviver do povo kalunga.

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