• Nenhum resultado encontrado

P RIVATIZAÇÃO : A E XPRESSÃO C ONCRETA DA C RISE DO T RABALHO

3.3. A economia política da privatização

A política de privatizações que atingiu a CSN, Cosipa e Usiminas se estendeu para todas as outras empresas formadoras do complexo estatal do aço. O PND havia cumprido a meta de entregar à iniciativa privada todas as companhias siderúrgicas, ao levar a Aço Minas Gerais S.A. (Açominas) a leilão em setembro de 1993. Pois, à semelhança do que ocorrera em Ipatinga, o Sindicato dos Metalúrgicos de Ouro Branco, então sob o domínio de uma diretoria atrelada à Força Sindical, apoiou fortemente a privatização da siderúrgica mineira e convenceu os trabalhadores dos benefícios financeiros que eles lograriam com a venda da empresa. Além disso, tendo em vista que se tratava da última siderúrgica a enfileirar a lista do bloco estatal do aço e que, àquela altura, a privatização já se tornara quase um lugar-comum, praticamente inexistiu qualquer resistência à alienação daquela empresa.

Na Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST), localizada no Espírito Santo, e noutra siderúrgica mineira, a Companhia Aços Especiais Itabira (Acesita), ambas privatizadas respectivamente em julho e outubro de 1992, apesar dos trabalhadores estarem representados por diretorias sindicais de extração cutista, a exemplo do que se sucedeu depois na CSN e na Cosipa, a resistência oposta pelos sindicatos dos metalúrgicos do Espírito Santo e de Timóteo não foi capaz de obstruir a influência da Força Sindical no meio operário. No caso da Acesita isso fica evidente, uma vez que exatamente após um ano da venda da siderúrgica vizinha (Usiminas), além da pressão do governo federal, os trabalhadores sucumbiram ante a contumaz pregação a favor da privatização de um dos arautos da Força Sindical no estado e presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Ipatinga, Luiz Carlos de Faria.

88

A participação acionária dos empregados das siderúrgicas como uma espécie de retribuição à complacência deles com o PND foi, como vimos, uma constante nas desestatizações da Usiminas, CSN e Cosipa, mas não se limitou a elas. Todas as demais empresas siderúrgicas privatizadas sob os governos Collor e Itamar Franco também passaram invariavelmente pela formação dos chamados Clubes de Investimento. À primeira vista, ao irem em busca da ampliação do financiamento subsidiado e das cotas maiores de ações para os trabalhadores, pode parecer que a estratégia desenvolvida pela Força Sindical se restringiu ao mero jogo de interesses econômicos, conferindo assim coerência com o discurso seminal dessa central sindical, segundo o qual aos sindicatos caberia o papel de lutar tão-somente pelo bem-estar imediato dos trabalhadores.

Entretanto, mais do que amealhar dividendos para os trabalhadores das siderúrgicas, o propalado “sindicalismo de resultados” assumiu uma importância que permitiu ao governo deslanchar e consumar as privatizações das siderúrgicas em um espaço relativamente curto de tempo. As negociações estabelecidas entre a Força Sindical e o governo federal em torno da participação acionária a que fizemos referência era apenas a camada mais epidérmica do entrelaçamento inextricável de interesses que deu sustentação à política embutida no programa federal de desestatização. Assim, o alinhamento político entre ambos os atores foi vital para o sucesso do PND-Siderurgia porque permitiu remover, até certo ponto, o seu principal obstáculo: a “cultura” de combatividade sindical que havia se enraizado nos meios operários onde se encontrava a maioria das empresas siderúrgicas estatais.

A mutualidade de interesses que consolidou a aliança entre o governo Collor e a Força Sindical, nas figuras de Medeiros e Magri, teve início antes do processo de privatizações iniciar o seu curso. Na verdade, como dissemos, ela tem origem ainda durante o governo Sarney por ocasião da construção do Pacto Social, quando tem lugar a projeção do “sindicalismo de resultados” na cena nacional. Entretanto, tal aliança foi construída sobre bases movediças durante a Nova República, pois faltava a essa nova vertente sindical, surgida na segunda metade dos anos 80, uma base real de sustentação no seio da classe trabalhadora. Mesmo assim sua tessitura começava a ser plasmada pelas elites políticas no poder, que precisavam de um interlocutor da classe trabalhadora que conferisse representatividade, pelo menos nos planos retórico e simbólico, àquele malfadado entendimento nacional (Cardoso, 1999).

Mas a entrada de Medeiros, futuro fundador e presidente da Força Sindical, enquanto ator privilegiado do “trabalho” na arena política da proposta de pacto social, lhe rendeu durante o

período o controle da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas (CNTM) em abril de 1988 e a sua oficialização a partir de agosto do mesmo ano, por meio de um decreto do presidente Sarney, expedido sem o aval do Ministério do Trabalho. A entidade na qual Medeiros dali por diante passou a presidir abrigava 120 sindicatos e, em pouco tempo, conseguiu a adesão orgânica dos trabalhadores, ampliando a sua base social; inclusive conseguindo atrair para a sua órbita sindicatos não-filiados, como fica patente no “Segundo Congresso Nacional dos Metalúrgicos”, quando a Medeiros foi delegado o direito de representar cinco federações sindicais e mais de uma centena de sindicatos.

Esse primeiro passo certamente foi determinante para Medeiros ver a influência do sindicalismo de resultados, até então confinado ao campo macro-institucional e ao reduto do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, crescer e se capilarizar no meio sindical. Isso trouxe sérias implicações para a condução da privatização das siderúrgicas. Basta lembrar as lutas sindicais em torno da privatização da CSN, que se fez sentir mais fortemente na campanha salarial de 1991 em Volta Redonda, quando Medeiros, com a anuência do TST, assumiu o direito legal do SMVR de representar a categoria na mesa de negociação e o repassa para o Formigueiro, constituindo na prática um duro golpe sobre a diretoria cutista do sindicato e, com isso, precipitando o destino da empresa.

O estreitamento dos laços entre o sindicalismo de resultados e o poder executivo vai ganhar vulto no governo Collor, quando Medeiros indica o seu “braço direito”, Magri, para ocupar o cargo de ministro do Trabalho. Essa aliança reforçou a estratégia de formação da Força Sindical porque permitiu a inserção de um dos quadros mais importantes da nova vertente sindical no topo da hierarquia do Ministério do Trabalho. Em meio à profusão de sindicatos criados na gestão de Magri, das 145 cartas sindicais concedidas, a maioria quase absoluta delas (132) foi entregue a grupos afinados com Medeiros, enquanto as entidades vinculadas à CUT receberam apenas 13. Muitos dos novos sindicatos, aliás, eram criados em favor de grupos de “sindicalistas de resultados” a partir da divisão e desmembramento de bases territoriais maiores, anteriormente controladas por diretorias cutistas (Giannotti, 1994:84-85).

A Força Sindical, sem qualquer sombra de dúvida, experimentou um crescimento relevante da sua base no período que compreendeu a sua fundação em março de 1991 até o ano de conclusão da privatização das indústrias siderúrgicas, vindo a se tornar em pouco tempo, depois da CUT, a maior central sindical do país. Para se ter uma idéia concreta do que estamos afirmando, o número

de entidades sindicais filiadas à Força Sindical passou de 192, em 1992, para 1.541, em 2001, ano em que a CUT abrigava 3.187 sindicatos (Oliveira, 2002:275). Apesar da disparidade considerável entre as duas centrais sindicais, a central de Medeiros assumiu sindicatos em setores importantes da economia e representativos. Oliveira (2002:274) sintetiza de forma oportuna o caráter e dimensão tomada pelo engrossamento das fileiras dessa nova central no universo político-sindical brasileiro: “A CUT passou, então, a enfrentar a concorrência de uma adversária com maior grau de coesão interna, com um projeto político contrário ao seu – apesar da proximidade de suas propostas sobre relações de trabalho – e que contava com um grande apoio de empresários e governantes”.

E, de fato, o amplo apoio dado por Collor à estruturação da Força Sindical não se cingiu ao terreno político. Interessados no aplacamento do sindicalismo de resultados, a nova central, antes e depois de criada em março de 1991, contou ainda com o patrocínio financeiro de organizações empresariais e do próprio governo federal, que abriu os cofres do Estado para financiar a montagem do aparelho da nova central sindical. As relações íntimas entre poder público e a Força Sindical neste âmbito, por pouco, não acabaram por freqüentar as páginas policiais da grande imprensa. Em outubro de 1991, por exemplo, a Justiça Federal do estado do Rio de Janeiro concedeu uma liminar a uma ação popular suspendendo o financiamento concedido pela Caixa Econômica Federal, Inamps e o Ministério da Educação de Cr$ 1,5 bilhão ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e à Força Sindical, processo no qual ficou determinado ainda que Collor fosse citado como co-responsável89.

Assim, a conformação da máquina burocrática da Força Sindical e a montagem da estrutura assistencialista que lhe é típica, concomitantemente com a radicação do seu ideário em bases cada vez mais crescentes do meio operário, pavimentou o caminho do amadurecimento da ideologia própria dessa central sindical que nascera ainda nos idos dos anos oitenta e, por outro lado, proporcionou ao governo Collor a chance de conduzir o programa de privatizações nos moldes liberalizantes propostos originalmente no Plano Brasil Novo, o qual logrou sucesso ao final da onda de siderúrgicas privatizadas. Nesse sentido, o governo encontrou no “sindicalismo de resultados” um dos elos que faltava na corrente das reformas do Estado, tal como vimos nos casos de Volta Redonda e da Baixada Santista. Sob o pretenso rótulo de apolíticos, governo federal e Força Sindical desenvolveram uma parceria em torno da privatização que, a nosso ver, se revelou nefasta para os trabalhadores porque inseriu um discurso que até então não tinha espaço na sociedade brasileira,

89

nem tampouco no mundo sindical, sobretudo aquele habitado pelas correntes sindicais do “novo sindicalismo”.

A despeito do juízo simplista que faz das causas que levaram os trabalhadores a aderir à privatização da CSN, ao se referir especificamente às eleições sindicais de 1992 no bojo do processo de privatização da siderúrgica de Volta Redonda, Medeiros (1992:283) revela, em boa medida, a profundidade do seu significado: “essas eleições, ao contrário de uma disputa paroquial entre as duas maiores centrais sindicais, constituíram o mais marcante embate no terreno das concepções (...) O que esteve em jogo em Volta Redonda, e por clara maioria se decidiu, foi a opção dos trabalhadores pela privatização da Companhia Siderúrgica Nacional – a principal do país e símbolo de um modelo que já se esgotou. De um lado, a CUT fez da defesa do estatismo o mote de sua campanha. De outro, a chapa da Força Sindical, que viu, ao defender a privatização, a possibilidade de ampliar a participação dos trabalhadores nos destinos da empresa e impedir o sucateamento da CSN”.

A prática do “sindicalismo de resultados” antes da ascensão da Força Sindical, fortemente potencializada a partir da segunda metade do governo Sarney, era praticamente ausente das teses e das práticas correntes no movimento sindical brasileiro, limitando-se aos metalúrgicos da cidade de São Paulo, laboratório no qual seriam lançadas as bases estratégicas e teóricas da Força Sindical. Se voltarmos às eleições sindicais para a direção dos sindicatos dos metalúrgicos de Santos e de Volta Redonda ocorridas em fins dos anos 80, constata-se uma derrota inegável da tentativa, vã, do sindicalismo de resultados de se arraigar entre os trabalhadores de ambas as regiões. A chapa sintonizada com a CGT de Medeiros conquistou 7,7% dos votos nas eleições do SMVR90 em abril de 1989, ao passo que no mesmo ano o pleito para o STIMMMES a chapa de mesma filiação obteve 8,2% dos votos.

O alinhamento de interesses costurado entre Collor e Medeiros, centrado na privatização, produziu uma sinergia política que, diversamente do quadro apresentado nas eleições sindicais supracitadas, foi capaz de conquistar a concordância da maior parte dos trabalhadores das siderúrgicas, não apenas a fórceps (com ameaças aos empregos e até mesmo de fechamento de usinas pelo governo federal), mas também por meio da busca do consentimento dos empregados, oferecendo-lhes em troca uma alternativa ao sindicalismo vigente à época. Correlativamente, tal como vimos de perto na análise dos acontecimentos de Volta Redonda e de Santos, a penetração da

90

Força Sindical em redutos da CUT e da CGT-central mediante a cooptação de lideranças sindicais historicamente identificadas com bandeiras e práticas sindicais combativas, independentemente das nuanças ideológicas que as diferençavam, consistiu na peça fundamental que faltava ao pleno funcionamento da engrenagem do PND.

O intento da Força Sindical de lançar mão de novos elementos para ocupar a imaginação social dos trabalhadores com a possibilidade da privatização, escudado no discurso da ineficiência empresarial do Estado e no fato da perspectiva dos operários poderem vir a se tornarem co- participantes nos dividendos das empresas por meio da participação acionária, todavia, teve que se haver com gerações de operários forjados num ambiente impregnado de lutas, como foram os anos oitenta em Volta Redonda e na Baixada Santista. Para tanto, não bastava somente aos grupos ligados à Força Sindical, a partir da formação de chapas estranhas aos trabalhadores, se lançarem de fora nas eleições sindicais com propostas financeiras supostamente sedutoras para a categoria. A concretização do PND só se tornou exeqüível quando lideranças sindicais credenciadas pela categoria romperam com o próprio “passado” e rumaram em direção à privatização.

Assim sendo, pelo menos no que diz respeito ao campo das relações industriais específico às grandes siderúrgicas estatais, a privatização certamente preparou o caminho para o PND ser levado a efeito de acordo com os propósitos que a motivou desde a chegada de Collor à Presidência da República, ao emascular o capital político acumulado pelos trabalhadores que, em finais dos anos 80, já haviam atingido um grau razoável de organização e de autonomia sindicais, bem como colecionado conquistas substantivas referentes à melhoria das condições gerais de trabalho.

A fragmentação dos interesses dos metalúrgicos, subjacente às lutas travadas entre os dois grandes pólos do conflito que marcou o embate assimétrico entre, de um lado, a CUT e outras forças progressistas do país, e de outro, o espectro formado pela Força Sindical, a direção das empresas, o governo federal e, por que não dizer, a maior parte da opinião pública, foi a expressão concreta da derrota dos trabalhadores. Se no âmbito das lutas sindicais entre as facções locais, como vimos, a combinação entre a Força Sindical e o governo federal, venceu a tese anti-estatizante, no que se refere às outras instâncias de conflito, principalmente na Justiça, a batalha contra a privatização seria perdida novamente. Almeida (1999) mostra que os mais de 90 casos apresentados ao judiciário (inclusive no Supremo Tribunal Federal) pelos partidos e organizações sindicais de oposição implicaram no máximo o retardamento do processo de desestatização de algumas das siderúrgicas, o que demonstra que, para usar a expressão da autora, havia se rompido de vez o “consenso estatista”.

CAPÍTULO 4