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Economia Solidária e princípios econômicos polanyianos: os BCDs e as moedas sociais enquanto experiências mobilizadoras destes princípios no

entre a Antropologia da Moeda e a Sociologia Econômica

4.2 Economia Solidária e princípios econômicos polanyianos: os BCDs e as moedas sociais enquanto experiências mobilizadoras destes princípios no

território

Se, neste ponto, retomarmos as formas de integração econômica entre os princípios polanyianos, identificamos o potencial das ações em economia solidária tanto para construir novas relações entre reciprocidade e redistribuição e reciprocidade e mercado. Para Servet (2013), uma análise da economia solidária a partir da interdependência dos princípios da economia substantiva, principalmente aquela da reciprocidade, permite-nos compreender os laços com o mercado e com o Estado. Para isso, é importante reconhecer a economia solidária para além da forma reciprocitária (tipicamente relacionada ao dom maussiano), mas como campo que nos permite visualizar diferentes formas de interdependência entre os princípios econômicos polanyianos. Para esse autor, “de uma parte, a economia solid|ria integra um grande numero de práticas a priori mercantis e, de outra parte, ela funciona bem frequentemente em osmose com intervenções públicas” (SERVET, 2013, p. 199). O próprio Polanyi destacou que o princípio da reciprocidade, por vezes, se reforçava se associado àquele da redistribuição.

Como forma de integração, o princípio da reciprocidade ganha muito em eficácia do fato que ele pode utilizar a redistribuição e mesmo a troca

118 como métodos subordinados. Podemos alcançar a reciprocidade compartilhando os pesos do trabalho segundo regras precisas de redistribuição, por exemplo quando da realização de tarefas com rotação de papéis (à tour de rôle). E mesmo, a reciprocidade se obtém as vezes pela troca segundo equivalências fixadas a fim de dar vantagem ao parceiro que não conta com uma certa espécie de produtos indispensáveis – instituição fundamental dentro das antigas sociedade do Oriente. De fato, dentro das economias não mercantis essas duas formas de integração reciprocidade e redistribuição se praticam geralmente juntas (POLANYI, 1957a, trad. 1975, p. 247 apud SERVET, 2013, p. 205).

A relação reciprocidade-mercado também pode ser vista na economia solidária se levarmos em conta, como assinala Servet (2013), que o princípio da reciprocidade polanyiano não é oposto às trocas mercantis, uma vez que funciona reconhecendo o princípio do mercado.

Cada princípio de integração econômica contém em si mesmo, como idealidade, uma dimensão utópica. Ele é utópico no sentido onde ele é um projeto, um sistema de justificação, uma direção dada ao funcionamento geral da sociedade ou aquele de uma organização particular. Mas toda tentativa de lhe reduzir concretamente a um único princípio corre o risco de se tornar totalitário (SERVET, 2013, p. 203).

Isso porque a solidariedade deve ser entendida como elemento de um “todo” que inspire políticas de desenvolvimento que ultrapassam as dualidades mercado- Estado, por exemplo. No entanto, a interdependência entre os princípios não significa desconsiderar a hierarquia deles. Sendo assim, os princípios se articulam uns aos outros, mas uns dominam os outros. No caso da economia solidária, Servet (2013) aponta para o potencial de “mobilizar reciprocidade” mais o do que em ações de filantropia, as quais são para ele de outra natureza.

No mesmo intuito que Servet (2013) de transpor o entendimento polanyiano da reciprocidade para os dias atuais, Hillenkamp (2013) entende o princípio da domesticidade no seio da chamada economia popular (que muitas vezes no Brasil se confunde com praticas de economia solidária, podendo mesmo ser entendidas da mesma forma), marcando também a presença dos três outros princípios, embora a domesticidade se apresente como dominante. É no seio de uma economia popular, comumente informal, que surgem novas estruturas familiares e comunitárias que servem à subsistência (e sobrevivência) de grande parte da população28. Redes

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Hillemkamp (2013) compreendeu o princípio da domesticidade em El Alto, uma cidade nova na periferia de La Paz, Bolívia, que conheceu um rápido crescimento e recebeu imigrantes das regiões rurais

119 familiares, por exemplo, compartilham moradia e recursos (dividindo contas de água e energia, por exemplo). A domesticidade se integra ao mercado quando, por exemplo, a produção familiar (ateliês de produção em casa que utilizam mão de obra e conhecimentos dos membros da família) é orientada para o mercado, mas obedece a normas internas de compartilhamento no seio da família, tanto dos produtos quanto do resultado das vendas.

Para França Filho (2006, p. 58) “a economia popular diz respeito a um conjunto de atividades de produção e comercialização ou prestação de serviços efetuadas coletivamente (e sob diferentes modalidades de trabalho associado) pelos grupos populares”. Na América Latina, é comum ocorrerem no interior de bairros pobres de grandes cidades. França Filho e Silva Júnior (2006, p. 66) destacam que a economia popular é orientada pela necessidade de produzir para “garantir condições materais imediatas da vida das pessoas. [...]. Funciona, portanto, no plano de uma reprodução simples da vida, representando apenas uma extensão da unidade familiar”.

Neste ponto, é importante evidenciar a diferença de uma economia dita popular do entendimento de economia solidária. A capacidade da economia popular de construir e agir em espaços públicos é relativamente pequena e restrita ao comunitário. Na economia solidária, o nível de organização é maior, inserido num movimento político-ideológico que não se limita à reprodução simples da vida (FRANÇA FILHO e SILVA JUNIOR, 2006). O movimento da economia solidária busca soluções para os problemas econômicos e sociais, articulando atores e mobilizando, inclusive, instituições e recursos públicos.

Voltando aos movimentos de integração de princípios econômicos, interessa notar que a integração domesticidade-mercado na sociedade atual é contraditória do ponto de vista polanyiano, pois

o primeiro visa a satisfação das necessidades dos membros do grupo pelo compartilhamento de recursos e supõe a continuidade do aprovisionamento. O segundo se alimenta do horizonte de uma emancipação e de uma ascensão social graças às oportunidades do mercado, e supõe a adaptação dos produtos e quantidades aos jogos de oferta e demanda” (HILLENKAMP, 2013, p. 232).

do país e de comunidades indígenas aymarás do Altiplano. A autora remarca novas formas de produzir e de se relacionar, novas estruturas familiares e a construção de novas dinâmicas econômicas de subsistência.

120 Além desta tensão, a autora ressalta que a existência do princípio da domesticidade está relacionada com a proteção e a subsistência da família, e não implica necessariamente na ausência de relações de dominação (por exemplo, as fundadas sobre as relações de gênero). Seus estudos empíricos da domesticidade apontam para a atualidade do duplo movimento de imbricação e desimbricação (encastrement et desencastrement) da economia dentro da sociedade.

O campo da economia solidária no Brasil e a própria ação dos BCDs no território reconhecem práticas domésticas de produção. Por exemplo, existem linhas de crédito direcionadas à produção familiar (casa produtiva, a exemplo de uma das linhas do Banco Palmas) para venda no mercado. Além disso, a aproximação das políticas públicas e de órgãos públicos que se voltam ao apoio e à constituição deste tipo de experiência, como atesta a própria consolidação de uma política de finanças solidárias no Brasil, como visto no Capítulo 1 deste trabalho, apontam para a configuração da relação reciprocidade-redistribuição.

Em resumo, o campo e as experiências de economia solidária permitem, então, entender na nossa sociedade os princípios da reciprocidade e da domesticidade, restritos às sociedades primitivas e arcaicas nos estudos de Polanyi. Sendo assim, um conjunto amplo e diversificado de práticas e formas de produzir, consumir, trocar e financiar serve como realidade para analisar os princípios e suas formas de integração, tais como o comércio equitável, a produção e o consumo responsáveis, as hortas comunitárias familiares, as redes de trocas, as microfinanças, os BCDs e as moedas sociais e complementares. Estes e outros exemplos são formas de mobilizar reciprocidade das mais simples as mais complexas, de acordo com Servet (2013).

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PARTE III

Dimensão empírica: a

realidade dos BCDs e do uso das moedas

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