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Origens da moeda: a “fábula” da economia e os três lados da moeda

entre a Antropologia da Moeda e a Sociologia Econômica

3.1 O paradigma da dádiva e o fenômeno em si como base para a antropologia da moeda

3.2.1 Origens da moeda: a “fábula” da economia e os três lados da moeda

Conta-se que, nos primórdios, as sociedades viviam sob a égide de um comunismo primitivo, no qual se repartia as riquezas entre seus membros. A partir do desenvolvimento dessas comunidades, os contatos entre elas foram inevitáveis e, a consequência natural foi uma forma pura de troca, chamada de escambo, na qual os objetos (artefatos, produtos agrícolas, animais etc.) eram comparados uns aos outros de forma natural e trocados entre si. Em seguida, o escambo se tornou complexo e se ampliou de tal forma que surgiu um meio de troca para torná-lo mais cômodo e “justo”. Este meio de troca – a moeda –, então, tornou-se um mecanismo para expressar os

78 valores das coisas, sendo possível, inclusive, reservá-la para trocas futuras (AGLIETTA e ÓRLEANS, 1990).

Para alguns estudiosos, essa história resumida acima é uma “f|bula” contada pela economia para explicar o surgimento da moeda. Para alguns estudiosos especificamente da abordagem antropológica da economia, essa é a origem da moeda moderna, a que conhecemos hoje como moeda de mercado, mas não é a origem da moeda em si, como prática e como instituição (AGLIETTA e ÓRLEANS, 1990; CAILLÉ, 1995; ZELIZER, 2005).

Caillé (1995) é um dos estudiosos que se refere ao entendimento da economia sobre a origem da moeda como “f|bula” e n~o vê resultado no esforço da economia para entender que o que há por trás da moeda é a sede de riqueza (não haveria mistério nisso). Para a economia, é simples: a moeda é um “truque técnico” para que haja o desenvolvimento das trocas que são necessárias para o enriquecimento (que é intrínseco e desejável), porque dois bens valem mais do que um e assim por diante. Logicamente que tais técnicas foram se aperfeiçoando. Passando do boi e do camelo para as letras de crédito, a moeda escritural, o cheque e o cartão de crédito etc. Mas, para o autor, isso não explica o valor intrínseco da moeda. Ela vale o que nós cremos que ela vale.

Sendo assim,

as dívidas e as obrigações são fenômenos primitivos que existiam antes da existência do mercado, e as economias de galpões de estocagem da antiguidade conheciam previsões financeiras e a contabilidade bem antes da utilização da moeda como meio de troca se tornar importante (POLANYI, 2011).

Além disso, uma mesma sociedade se utiliza de uma pluralidade de modos de trocas e circulação de bens e serviços (SERVET, 1993, p. 1.135).

Citando o rico exemplo da Grécia antiga, Aglietta e Órleans (1990) explicam que os objetos e seus respectivos valores dependiam enormemente do reconhecimento mútuo entre pessoas, do tipo de objeto, e de status entre pessoas diferentes, formando- se categorias de valores de uso numa estrutura de relações solidárias relativamente complexa. Por exemplo, objetos que eram frutos de roubos de guerra (chamados

ktémata) circulavam em festas e jogos. Os objetos trabalhados por artesãos (os agalmata), como joias e vasos, eram muito valiosos e frequentemente serviam como

oferendas aos mortos e aos deuses. Ainda, “objetos” vivos como mulheres e escravos (os

79 geralmente usados em rituais de sacrifício. Outros objetos eram provenientes da terra, como os alimentos (os chrémata) e os metais (os keimélia). Os primeiros poderiam ser destruídos em festas e reforçavam a fraternidade significando as necessidades básicas da vida social de toda comunidade. Já os metais, utilizados para elaboração de armas, eram associados a coisas maléficas e deveriam ser cuidadosamente manipulados (eram geralmente sacralizados). Tais exemplos, como lembram Aglietta e Órleans (1990), eram vinculados à pessoa do doador, não contendo a impessoalidade, o anonimato e a homogeneidade da moeda moderna.

Vale ressaltar que, para os mesmos autores, antes mesmo de a moeda se tornar também um meio de troca mercantil, ela passou a ser “um atributo a soberania estatal”, pois

a imensa tarefa do setor público consistia em cobrar impostos, em centralizá-los, em formar reservas para a redistribuição e transformá- las em valores de uso, capazes de expressar a força incontestável da soberania política que devia parecer atemporal, indestrutível (AGLIETTA e ÓRELANS, 1990, p. 204).

Os mesmos autores acima lembram as gravuras feitas nas peças monetárias que indicavam a soberania do Estado e que permitiam desconsiderar o peso e o teor metálico das moedas nas operações de trocas. Para os autores, esta é uma importante inovaç~o, pois “define um tipo de objeto monet|rio cujo fundamento é fiduci|rio porque é garantido pela instituição política da qual a moedagem17 é parte integrante”.

No entanto, a crítica central da tese de Aglietta e Órleans (1990) gira em torno da teoria do valor da moeda que, para os autores, tenta esvaziar (purificar) as contradições, as lutas, os poderes e toda a arbitrariedade que é concernente a ela. Para os economistas da teoria do valor, os atos de trocas são realizados entre iguais, fundamentados pela racionalidade e na liberdade individual. Portanto, os referidos autores evocam uma teoria qualitativa da moeda, que pode permitir ao mesmo tempo uma análise unitária, mas sem desconsiderar a história e “as especificidades das formas de organizaç~o monet|ria” (AGLIETTA e ÓRLEANS, 1990, p. 31).

17 A moedagem, ou seja, a cunhagem de unidades de moeda surgiu no século VII antes de Cristo nas

cidades gregas de Jônia e no reino de Sardes, na Lídia, numa época (630 a 640 antes de Cristo) em que a Grécia vivia uma crise da soberania estatal, que tentava se legitimar em meio a conflitos entre nobres e camponeses e aos “destroços dos mitos religiosos” (AGLIETTA e ÓRLEANS, 1990, p. 211).

80 Embora a base teórica de Aglietta e Órleans (1990, p. 102) ofereça alguns posicionamentos valiosos na compreensão do nosso fenômeno de investigação, como a ideia de uma interpretação qualitativa sobre a moeda, para a antropologia econômica, a abordagem dos autores ainda falha ao articular teoria e história monetárias. Para Théret (2008), a ideia engendrada por Aglietta e Órleans acerca da soberania da moeda não rompe definitivamente com o caráter positivista da definição da moeda pelas suas funções. Nesse sentido, não seria adequado falar em “funções”, mas sim em “usos”, no sentido de qualificar as diferentes formas que a moeda toma em variados contextos sociais.

Na concepção de Théret (2008), a moeda é concomitantemente linguagem, objeto e instituição. É, ao mesmo tempo, sistema de contas, instrumentos de pagamento e regras de moedagem. Nesse sentido, está muito longe de ser apenas um meio de troca, como indicam os mais comuns significados na teoria econômica, ou um sistema de regras, como na economia institucionalista. “Ela é um fato social total que tem simultaneamente estas três dimensões, o fenômeno da moeda sendo ao mesmo tempo econômico, político e simbólico” (THÉRET, 2008, p. 21). Assim, a moeda é

um conjunto específico de relações que tomam variadas formas –

símbolos (unidade de conta, selo, assinatura), objetos (meios de

pagamento: moedas, notas, títulos), regras (de conta, de pagamento, de emissão, de moedagem). Ver a moeda como uma entidade estruturada em si leva assim, a priori, a considerá-la não mais a partir de seus múltiplos usos no contexto, mas como elo social universal tendo sua própria lógica de reprodução (THÉRET, 2008, p. 7) [grifo nosso].

Para o autor, a maioria das teorias sobre a moeda acaba por foçar apenas um dos seus dois lados: o simbólico ou o econômico. No primeiro, ela é vista como um aspecto das relações entre os indivíduos, operando como um símbolo que faz sentido com outros símbolos do sistema, dentro do qual os significados são compartilhados, trocados e fazem sentido. No segundo lado, ela é vista como algo desconectado das pessoas (HART, 1986 apud THÉRET, 2008). No entanto, Théret (2008, p. 16) sugere um terceiro lado: o de “uma forma institucional conectando pessoas e coisas, um sistema de regras que faz com que ‘a coisa distinta das pessoas’ que foi escolhida para representar certas relações entre pessoas, o faça legitimamente”. A moeda, então, pode ser vista como um emaranhado de dívidas e créditos na sociedade que a forma e a constrói. A moeda é

81 “uma representação ativa da sociedade como um todo, pois participa desde o início da sua construç~o” (THÉRET, 2008, p. 3).

Particularmente, este trabalho se interessa por este “terceiro lado” da moeda, n~o desconsiderando seus aspectos simbólicos e contextuais, por se aproximar da concepção antropológica sobre a moeda.

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