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R EDES , ATORES E CONFLITOS : DE UMA PERSPECTIVA CENTRADA NO ATOR AO ENFOQUE DAS INTERFACES

CAPÍTULO 1 TERRITÓRIO, CONFLITOS, ATORES E

1.1 D ESAFIOS TEÓRICO METODOLÓGICOS DO PESQUISADOR E DA PESQUISA : REVISITANDO A NATUREZA E O SOCIAL

1.1.2 R EDES , ATORES E CONFLITOS : DE UMA PERSPECTIVA CENTRADA NO ATOR AO ENFOQUE DAS INTERFACES

As noções de rede e ator social também são realçadas nas abordagens conhecidas como “perspectiva orientada ao ator” (POA) e “enfoque das interfaces”. Para fins desta pesquisa, nosso foco recai sobre a última. Entretanto, o enfoque das interfaces não pode e não deve ser desconectado da perspectiva orientada ao ator, haja vista sua importante contribuição ao campo de estudos das redes.

A POA é uma perspectiva antropológica originada a partir da Escola de Manchester, em meados do século XX. Ela surge como um contraponto aos métodos clássicos da antropologia britânica, centrados no estudo de pequenas comunidades africanas a partir das relações de parentesco, e introduz um método etnográfico renovado para a compreensão das novas problemáticas vividas naquele período. Segundo Reynoso (2011), esta Escola foi pioneira na produção das primeiras contribuições britânicas à antropologia urbana, quando foram usadas, pela primeira vez, as redes antropológicas como ferramenta de análise. O autor explica que foi o fundador dessa escola, Max Gluckman (1911- 1975), quem cunhou o termo “estudo de caso”13

e o aplicou à pesquisa social, instaurando uma denominação largamente reproduzida em diversas disciplinas do conhecimento. O método de estudos de caso foi uma das mais importantes ferramentas de análise empregadas por esta Escola e baseava-se em estudos aprofundados de determinadas problemáticas para, delas, inferir princípios e pressupostos sociais ativos.

Com isso, o objeto da antropologia deixa de ser os nativos isolados ou os sistemas tradicionais africanos e passa a incluir situações sociais mais complexas. Temas como trabalho assalariado, conflitos de classe e o Apartheid africano, faziam parte desse repertório analítico. Ademais, bastante influenciados pela literatura marxista, os pesquisadores dessa Escola incorporam muitas das preocupações relativas aos conflitos sociais e às tensões entre a agência individual e a

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Reynoso (2011) explica que Gluckman absorveu as influências da nomenclatura jurídica, com a qual também estava familiarizado mediante sua formação em leisassociando-a à pesquisa antropológica.

estrutura social. Assim, conflito e poder passam a fazer parte do repertório de componentes inerentes aos processos de manutenção e transformação das estruturas sociais em uma abordagem antropológica em que a própria estrutura social é percebida como uma rede de relações entre atores (SCOTT, 2000).

De acordo com o antropólogo Norman Long, bastante identificado com essa perspectiva, embora a POA tenha incorporado algumas das preocupações marxistas, ajustando o foco de análise para um enfoque menos individualizado e mais preocupado em capturar as tensões sociais e demais interações entre o indivíduo e o ambiente, ela mantém um olhar avesso à determinações externas, típicas da abordagem marxista. O autor explica que, em especial no campo de estudos da sociologia do desenvolvimento, a POA surge como uma alternativa às perspectivas estruturalistas baseadas no conceito de determinação externa14:

Todas as formas de intervenção externa se introduzem necessariamente nos modos de vida dos indivíduos e grupos sociais afetados, e desta maneira são mediadas e transformadas por estes mesmos atores e suas estruturas. (LONG, 2007, p. 42) (tradução nossa).

Sendo assim, a POA se desenvolve com um interesse explícito nos atores sociais e na sua capacidade de oferecer respostas diferenciadas às situações permeadas por circunstâncias estruturais similares e em condições aparentemente homogêneas. Para os estudiosos dessa abordagem, os modelos sociais diversos que resultam dessas situações são, em parte, criação coletiva dos atores mesmos. Eles emergem a partir das negociações, interações e estratégias individuais e coletivas que tem lugar não somente nos atores que atuam diretamente

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Para Long (2007), o conceito de determinação externa constitui o fundamento de dois modelos estruturalistas que, até recentemente, vinham ocupando a cena central na sociologia do desenvolvimento: a teoria da modernização e a economia política. Ambos os modelos partem da premissa de que o desenvolvimento e a troca social são o resultado de determinações originadas em centros de poder externos mediante as intervenções dos corpos estatais ou internacionais.

nesses contextos, mas também nos atores sociais “ausentes”. Em outras palavras, aqueles que influenciam essas realidades sem, contudo, estarem materialmente presentes (LONG, 2007).

Entretanto, para Norman Long (2007), mais do que um enfoque teórico de natureza abstrata e inoperante, a POA está assentada em alguns fundamentos conceituais e metodológicos que tornam possível o seu uso para examinar problemas de mudanças e continuidade social em geral. Dessa forma, apresenta uma abordagem organizada em nove pilares ou, para usar sua terminologia, nove “pedras angulares”, sem as quais, não seria possível a operacionalização da POA.

A primeira “pedra angular” de uma perspectiva orientada ao ator é o pressuposto da heterogeneidade. Ainda que em circunstâncias aparentemente homogêneas, a vida social abriga uma multiplicidade de formas sociais e repertórios culturais que não podem ser ignorados nas análises. Como se produz, reproduz, consolida e transforma essa multiplicidade social e quais são os processos sociais envolvidos nessa dinâmica – segunda pedra angular – são as perguntas que devem ser feitas por um pesquisador da POA. Ao invés de buscar explicações em condicionantes ou resultados estruturais dados, as descobertas a serem perseguidas devem apoiar-se no contexto vivido pelos atores. A terceira pedra angular refere-se à noção de agência e relaciona-se, por um lado, à capacidade de alguns atores de sistematizar e ordenar suas experiências e as experiências de outros e de atuar sobre elas. Por outro lado, está relacionada à aptidão para manejar tanto habilidades práticas relevantes, por exemplo, o acesso a recursos materiais e não materiais (como aqueles de cunho psicológico, religioso ou simbólico), quanto àquelas relacionadas a competências organizativas particulares associadas ao carisma e a capacidade de liderança.

O quarto fundamento da POA complementa este último e refere- se à ação social e ao conceito de rede. Parte-se do pressuposto de que a ação social não é um componente exclusivamente individual, centrado no ego. Ela tem lugar nas complexas redes de relações, onde estão presentes tanto influências diretas de componentes humanos e não- humanos, quanto influências relacionadas aos valores, convenções sociais e relações de poder. Daí resulta o quinto fundamento, que consiste em conceber que a ação social, as agências e as interpretações que os atores extraem da realidade estão localizadas em contextos específicos e se geram dentro deles. Por esta razão, os referenciais analíticos só podem ser aferidos mediante uma investigação aprofundada da realidade empírica e não a partir de categorias

sociológicas pré-estabelecidas. A sexta pedra angular refere-se ao caminho percorrido pela informação e pode ser sintetizada da seguinte maneira: os significados, valores e interpretações da realidade são forjados culturalmente e aplicados de maneira distinta, sendo reinterpretados e retroalimentados, produzindo, por vezes, novos padrões culturais.

A sétima e a oitava pedras angulares são, talvez, as mais importantes no que se refere à aplicação geográfica dessa perspectiva. Elas tratam, respectivamente, dos temas das escalas e das interfaces sociais. O tema das escalas na POA é abordado de forma articulada e refere-se ao modo como as arenas localizadas se articulam a fenômenos amplos de macro-escala para influenciar as mudanças sociais em ambos os níveis. Long (2007) defende que, nem as análises centradas em macro estruturas, nem aquelas focadas de forma exclusiva nos cenários localizados são capazes de capturar a totalidade do mundo vivido, haja vista que não conseguem preencher o hiato teórico existente no meio do caminho entre elas. Nessa perspectiva o tema das escalas é central, pois viabiliza a interação entre diferentes sítios de ação social, abordando a questão como uma trama coesa de relações entrelaçadas que se intercruzam e interpenetram nos vários espaços simbólicos e geográficos de atuação dos atores envolvidos, direta e indiretamente, com o dia a dia dos “cenários interativos de pequena escala” (LONG, 2007, p.132).

De acordo com o autor há outra noção capaz de complementar o tema das escalas no que tange a proposta de associar análises micro e macroestruturais. A noção de estruturas emergentes enfatiza a existência de certos padrões de interação social que emergem no meio do percurso, entre as situações sociais localizadas e seus reflexos na organização de macro-estruturas coletivas e relativamente estáveis. O seguinte exemplo apresentado por Long (2007) ilustra bem esta interação sublinhando a forma como a ação individual e/ou coletiva não intencional em nível micro pode afetar, inesperadamente, os espaços macro:

A pressão sobre um banco resultado do excessivo abandono dos credores (ocasionado por rumores de que o banco é incapaz de cumprir com suas obrigações financeiras) gera o aumento dos abandonos devido a crescente falta de confiança pública, que no final talvez o leve (o banco) ao colapso. As ações realizadas pelos clientes individuais do banco e pelos oficiais contribuíram, é claro, para esta situação de deterioração, mas é muito pouco provável que eles tivessem em busca deste resultado. (LONG, 2007, p. 135) (Grifo e tradução da autora).

Neste caso, nem os clientes do banco, nem os banqueiros buscaram ou previram este resultado. A falência do banco foi consequência da evolução de micro relações dispersas e construídas pouco a pouco entre os atores chave do sistema bancário. Das estruturas concretas que emergem paulatinamente das inúmeras interações promovidas pela intersecção entre espaços micro e macro de atuação social, surge o conceito de estruturas emergentes. Ele pode ser bastante útil para auxiliar na compreensão de situações particulares de intervenção social, onde a ação localizada de um ou mais atores extra- locais, desencadeia um efeito dominó em espaços sociais mais distantes, tanto para a esfera macro quanto micro, que criam, com o tempo, conjuntos emergentes de interações que organizam sistemas de escalas maiores ou campos distintos de atuação (LONG, 2007).

É nessa perspectiva de estudo que a presente pesquisa se insere. O quadro de referência analítica se inicia com a intervenção do Estado sobre um dado espaço geográfico, criando uma UC de uso sustentável. Essa ação tem um efeito imediato de estabelecer um novo conjunto de regras de uso do espaço e de instaurar um novo regime de relações entre os diversos atores (humanos e não humanos) desse espaço. A delimitação de uma área geográfica direcionada para conservação ambiental, embora admitindo amplo espectro de intervenção humana, gera outro campo de atuação dos atores envolvidos direta ou indiretamente com a área, o campo ambiental. Com o tempo, uma série de pequenos e grandes “contratos sociais” permeados por este campo ambiental emergem e passam a reorganizar o espaço original, transformando-o. É neste ponto que o enfoque da interface social – oitava pedra angular da POA – é mobilizado para evidenciar a

heterogeneidade social, a diversidade cultural e os diversos conflitos inerentes às situações que envolvem intervenção externa:

As interfaces tipicamente ocorrem nos pontos onde se cruzam diferentes, e frequentemente conflitivos, mundos de vida e campo sociais, ou mais concretamente, em situações sociais (...) nas quais as interações giram entorno dos problemas de mediar, acomodar, segregar, ou disputar pontos de vistas sociais, avaliativos e cognitivos (LONG, 2007, p. 136) (Tradução da autora)

Assim, a partir das novas intersecções sociais deflagradas ou fortalecidas pela criação desse campo ambiental, resultado em primeira instância da intervenção estatal, desprendem-se uma multiplicidade de situações sociais de interface compostas por relações de natureza tanto conflituosas quanto cooperativas, que contém em si uma enorme variedade de interesses, valores, projetos, racionalidades e formas de poder. Segundo Long (2007), a análise das interfaces sociais pretende destacar as descontinuidades e vinculações presentes nas situações sociais estudadas e identificar as formas organizativas e culturais que as perpetuam, reproduzem ou transformam. Além disso, permite entender melhor como ocorrem as transformações políticas, haja vista que confere especial destaque às respostas diferenciais dos grupos sociais locais frente as situações de intervenção externa.

Por fim, o nono fundamento da POA pode, agora, ser apresentado como um apanhado geral dos demais, pois apresenta, grosso modo, o objetivo e a função da POA. Long (2007) o descreve como sendo um horizonte analítico a ser perseguido pelo pesquisador, visando compreender a forma e o conteúdo dos sistemas sociais diversos, elucidando sua gênese, contemplando sua viabilidade real e sua capacidade autogestora, bem como suas formas de replicação e de irradiação para ramificações sociais mais amplas. Assim, o enfoque começa com problemas ou situações problemáticas definidas por qualquer ator social, desde os governantes que desenham as políticas públicas, passando pelos pesquisadores, até atores localizados. Assim, o dilema do pesquisador sempre passará por como representar as situações problemáticas ao ser confrontado com múltiplas vozes e realidades contidas nos espaços sociais localizados. Assim, a POA não ensina o quê representar, mas apresenta o caminho.

1.1.3 A INTERFACE COMO LÓCUS DO CONFLITO, DA