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A TORES , ESTRATÉGIAS , LIMITES E DESAFIOS DE CONSOLIDAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE GESTÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO : O

S ISTEMA N ACIONAL DE U NIDADES DE C ONSERVAÇÃO : CONEXÕES ENTRE ESPAÇO / TEMPO , TEORIA / EMPIRIA

1.2.2 A TORES , ESTRATÉGIAS , LIMITES E DESAFIOS DE CONSOLIDAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE GESTÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO : O

PROCESSO DE CRIAÇÃO DO SNUC

O termo unidades de conservação tem sido usado no Brasil para referir-se ao conjunto de espaços naturais protegidos que, hoje, integram o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. As UCs são uma especificidade de um conjunto mais amplo de áreas ambientalmente protegidas dentre as quais podemos citar, ainda, as Áreas de Proteção Permanente (APP), as Reservas Legais (RL) e as Reservas Indígenas (RI). De acordo com Creado (2006), o conceito de unidades de conservação é uma criação brasileira e foi cunhado por técnicos governamentais e conservacionistas, para delimitar sua especificidade no campo ambiental. Internacionalmente, estes espaços são referenciados de forma mais genérica sob termos como áreas naturais protegidas, áreas silvestres ou, simplesmente, parques.

Medeiros (2003) define três períodos históricos para a evolução da delimitação de áreas ambientalmente protegidas no mundo, partindo de seus componentes geográficos e relações de poder. De acordo com o autor, até meados do século XIX a delimitação de áreas naturais resguardadas sob a administração estatal, detinha uma conotação de controle e gerenciamento espacial. Entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, a preocupação central era com a manutenção da paisagem e do patrimônio natural coletivo. A partir da segunda metade do século XX os objetivos voltam-se à conservação dos recursos naturais para a manutenção e bem estar das gerações futuras. Mais recentemente, já no século XXI incorporam-se preocupações com a conservação da biodiversidade. Note-se que o segundo e terceiro período descritos pelo autor coincidem com fases de inflexão nas ideologias ambientalistas ligadas, respectivamente, às correntes preservacionistas e conservacionistas, já discutidas no tópico anterior.

O marco institucional apontado como a origem dos modelos atuais de conservação natural, foi o Parque Nacional de Yellowstone, criado em 1872 nos Estados Unidos. Yellowstone foi concebido sob a influência dos ideais de preservação e objetivava manter os remanescentes naturais intocados para contemplação cênica e o deleite das gerações vindouras. Este modelo foi progressivamente adotado em diversos outros países da América (dentre eles Canadá, México, Argentina, Chile, Equador, Venezuela e Brasil), África do Sul, Austrália e Nova Zelândia. A Europa já desenvolvia um modelo distinto, onde a

proteção da natureza estava atrelada as leis específicas de uso do solo. Nesse continente, a regulamentação dos primeiros parques foi a partir da década de 1960 (CASTRO JÚNIOR et al., 2009).

No Brasil, apesar da primeira proposta para criação de uma UC datar de 187621, foi somente em 1937 que tivemos o primeiro parque nacional efetivamente implantado no país, o Parque Nacional (PARNA) do Itatiaia. A criação do PARNA do Itatiaia foi o resultado de um longo processo de debates e negociações entre ambientalistas e Estado durante o período do governo Getúlio Vargas.

Nas décadas de 1930 e 1940, o ambiente político-intelectual brasileiro era marcado por um intenso nacionalismo aliado ao desejo de modernização da sociedade e do Estado. O país passava por um período de transição de um modelo societário dominado pelas elites rurais para outro urbano-industrial, sobretudo na região sudeste. Temas como educação, saúde, trabalho, indústria, manifestações culturais, patrimônio histórico, proteção da natureza dentre outros, foram objeto de debate. Setores expressivos da sociedade mobilizaram-se em torno dessas questões. No campo ambiental, as articulações entre Estado e ambientalistas culminaram com a realização da primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza, em 1934, que teve como uma de suas principais reivindicações a criação de um aparato legal para criar e regulamentar espaços de proteção da natureza (FRANCO, 2002; MEDEIROS, 2003; CASTRO JÚNIOR et al., 2009).

Este período representou um avanço nas políticas de cunho ambiental. Foi a partir da Constituição de 1934 que a conservação da natureza passa a fazer parte da lei máxima do país como princípio básico assegurado pelo Estado. Também é nesse ambiente que os principais dispositivos legais de proteção ambiental, que levaram à criação das primeiras áreas protegidas, são instituídos no Brasil. A primeira referência legal a parques nacionais, estaduais e municipais apareceu no Código Florestal de 193422 (Decreto 23793/1934). Além dele são

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O engenheiro André Rebouças, sob a influência do modelo de Parques Nacionais Existentes nos EUA, propôs a criação de Parques Nacionais em Sete Quedas e na Ilha do Bananal.

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Contudo, Creado (2006) explica que a definição de parques nacionais do Código florestal de 1934 era superficial e ambígua, pois apareciam como

criados, contemporaneamente, o Código de Águas (Decreto 24643/1934), o Código de Caça e Pesca (Decreto 23672/1934) e o decreto de proteção aos animais (Decreto 24645/1934). Mais tardiamente, o ano de 1946 merece menção pela implantação da primeira UC que permitiria o uso direto dos recursos florestais: a Floresta Nacional de Araripe-Apodi no Ceará (MEDEIROS, 2003).

Entre as décadas de 1940 e 1980 muitas unidades de conservação foram constituídas, sendo que grande parte delas ainda sob o modelo preservacionista. Durante o período da ditadura militar, muitas áreas naturais ganham proteção legal23, porém sob a égide de um estado totalitário e de uma política voltada para a estatização de terras privadas. Segundo Medeiros (2003), curiosamente, apesar das profundas mudanças estabelecidas pelo militarismo no sistema político brasileiro, os principais instrumentos legais que possibilitariam a criação de um sistema nacional de áreas protegidas foram mantidos e, posteriormente, aperfeiçoados. A primeira metade do decênio de 1980 representa um marco histórico para a criação de UCs, com 44 unidades decretadas nesse período. Para Castro Júnior et al. (2009) foi a necessidade de controle territorial e gestão dos recursos nacionais, somada a baixa relevância atribuída pelos militares à questão ambiental, que possibilitaram o avanço de uma política de implementação de áreas protegidas no país nesse decênio.

De acordo com Rylands e Brandon (2005), até meados de 1986, o Brasil ainda sofria com uma política de objetivos confusos e categorias de espaços protegidos mal definidas. Ademais, as funções e responsabilidade pela gestão de áreas protegidas estavam divididas e, por vezes, duplicadas entre o antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), autarquia federal do Ministério da Agricultura e a Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA), ligada ao Ministério do Interior.

Por um lado, a sobreposição de competência de gestão entre estas duas instâncias, em um primeiro momento, gerou tensões e impasses na

espaços destinados à conservação, embora o código permitisse seu uso para extração florestal e desmatamento.

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De acordo com Medeiros (2003), em 1985, mais da metade das UCs hoje existentes, já haviam sido decretadas.

arena político-administrativa, impactando negativamente a conservação e a fiscalização dos recursos naturais. Por outro, criou um ambiente político/institucional que, posteriormente, resultaria na ampliação e variação das funções de conservação dos espaços protegidos do Brasil. Medeiros relata que uma das principais funções do IBDF era “gerir todas as áreas protegidas existentes no país” e que com a subseqüente criação da SEMA24:

esperava-se que esta fosse acumular todas as funções de gestão das áreas protegidas, deixando ao IBDF somente a responsabilidade de fomentar o desenvolvimento da economia florestal. Por razões de cunho político isto não ocorreu, uma vez que todo o conjunto de áreas criadas até então havia sido mantido sob gestão do IBDF. Com isso, a SEMA acabou estabelecendo um programa próprio de áreas protegidas que ficariam a ela subordinadas (MEDEIROS, 2003, p. 52-53, apud MERCADANTE, 2001).

Medeiros (2003) relata ainda que, após alguns anos, esse processo teve como resultado a proposição, pela SEMA, de novas tipologias ou categorias de áreas protegidas sendo que, em algumas delas, havia sobreposição de funções ou objetivos de conservação com categorias já estabelecidas pelo IBDF. O autor cita o exemplo das Estações Ecológicas (ESECs) da SEMA e das Reservas Biológicas (REBIOs) do IBDF como categorias de UC com objetivos bastante próximos.

Essa tensão só foi diluída com a criação, em 1989, do IBAMA, gerado a partir da fusão da SEMA com o IBDF e mais duas superintendências a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE) e a Superintendência do Desenvolvimento da Borracha (SUDHEVEA). O IBAMA incorporava os objetivos e funções político- administrativas desses quatro órgãos de governo, dentre eles a incumbência de encaminhar a tramitação do anteprojeto de Lei para criação de um Sistema Nacional de Unidades de Conservação. O

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O IBDF foi criado pelo Decreto-Lei Federal n°289 de 1967. A SEMA foi instituída em 1973 a partir do Decreto n°73030 (Medeiros, 2003) .

anteprojeto fora elaborado pela Fundação Pró-Natureza (FUNATURA) em 1988, a pedido do IBDF e repassado ao IBAMA em 1989.

Entre os anos 1937 e 2000, o cenário de impasses e disputas territoriais em torno das áreas protegidas se agravou, significativamente, devido a três fatores centrais: 1) a delimitação de novas áreas protegidas, em especial daquelas que admitem a presença de populações humanas dentro de seus limites; 2) o avanço da racionalidade política neoliberal de privatização de espaços e recursos e; 3) a ausência de uma política nacional que regulamentasse as UCs e ampliasse a capacidade de fiscalização e gestão do Estado. Castro Júnior, et al. (2009) explicam que o caráter particularmente conflituoso das UCs no Brasil originou-se ainda nos anos 1930, a partir da transposição do modelo de paisagens intocadas dos Parques Nacionais dos E.U.A. para a realidade extremamente diferente do Brasil. Enquanto que naquele país os parques nacionais foram criados em locais preferencialmente inabitados pelos colonizadores, no Brasil, as UCs, em especial as categorias que incluem o manejo dos recursos associados à presença humana, encontram-se em áreas de elevada densidade populacional.

Após um longo e conflitante processo de tramitação no Congresso Nacional25 caracterizado por embates constantes entre as ideologias preservacionistas e conservacionistas26, o Projeto de Lei do SNUC (Lei nº 9.985) foi aprovado em 18 de julho de 2000. A proposta final de um sistema único e integrado de ordenamento territorial de áreas protegidas é apresentada com um texto conciliatório, no qual ambas as ideologias estão contempladas dentro de dois grandes grupos de UCs: o grupo das UCs de Proteção Integral e o grupo das UCs de Uso Sustentável.

A criação do SNUC inaugura no país uma nova fase de gestão dos espaços territoriais de relevante interesse ambiental. Esse Sistema

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Para uma síntese da origem e tramitação do Projeto de Lei do SNUC ver Mercadante (2001).

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Mercadante (2001) descreve dois tipos de interesses e ideologias tramitando nesse processo, a saber: os preservacionistas e os socioambientalistas. Nesta pesquisa, entendemos que conservacionismo e socioambientalismo referem-se ao mesmo conjunto de pressupostos teóricos e características normativas que definem uma concepção de natureza voltada para harmonizar a conservação da natureza com a ação humana.

organiza e integra o aparato normativo que regia as unidades de conservação, até então pulverizados em distintos dispositivos jurídicos distribuídos em diferentes esferas governamentais, e estabelece critérios e diretrizes para criação de novas áreas. Contudo, apesar dos ganhos relativos à proteção da natureza per se e ao fortalecimento do poder de gestão e fiscalização do Estado, o SNUC trouxe consigo o agravamento das disputas territoriais e por recursos nessas áreas. Em espaços historicamente utilizados pelo homem sem maiores preocupações com os aspectos ambientais, passam a vigorar um conjunto de regras e mecanismos de controle do território mais restritivos e em muitos casos, a exemplo das UCs de Proteção Integral, bastante coercitivos, pois as populações residentes têm de ser realocadas para fora dessas áreas. Ou seja, na medida em que a política de criação de áreas protegidas se estrutura, fortalece e expande nacionalmente, aprofundam-se as tensões entre Estado e alguns setores da sociedade civil em torno da disputa por espaço e recursos naturais.

Dessa forma, a criação de uma unidade de conservação, de uma forma ou de outra, sempre altera a dinâmica societária local, pois dispara uma sequência de ações e reações frente a essa nova realidade que tende a reorganizar a postura dos atores mediante velhas e novas disputas por esses espaços e seus recursos. O Estado, na figura do órgão ambiental responsável pela gestão da UC, interfere na dinâmica social local como um novo ator que, dependendo dos interesses, valores e projetos de cada ator, individual ou coletivo, pode representar um inimigo ou aliado. É dessa maneira que o estabelecimento de uma UC modifica também o jogo de forças e consequentemente, as relações de poder, não só nas esferas locais, mas também nas diversas escalas de atuação dos atores ligados direta ou indiretamente a essas áreas. Assim, a tendência é a conformação gradual de novos territórios marcados pela identidade ambiental que deflagrou a criação da UC.

Entender os meandros e particularidades das relações que regem as sociedades e sua área de vida não é tarefa fácil, sobretudo quando são permeados por rígidos mecanismos legais de controle de uso do espaço instaurados com o surgimento de uma unidade de conservação. No capítulo que se segue iremos penetrar no cotidiano empírico de uma UC de uso direto.

Inicialmente conheceremos o espaço onde se estabeleceu a Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca, objeto empírico de nossa pesquisa, acompanhando a trajetória histórica de sua organização territorial, desde a chegada dos primeiros habitantes na costa centro-sul

catarinense, até o presente. Em seguida, trataremos do processo de articulação política que deu origem a APA BF, destacando os elementos sociotécnicos, econômicos e simbólicos que lhe deram corpo. Apresentaremos os principais atores envolvidos buscando desvelar seus interesses, discursos e formas de atuação, mas sempre atentos às articulações entre as escalas local e extra-local que influenciaram e receberam sua ação.

É necessário sublinhar que, para não correr o risco de uma análise apressada do leitor sobre nossa pesquisa, diante da nossa pretensão de mobilizar tantas variáveis explicativas em níveis de organização espacial diversos - situação em que, com frequência se descreve muito, mas se explica pouco - organizamos as observações que se seguem dentro de um nicho teórico-prático muito preciso, a saber: o campo ambiental. É ele quem conduzirá todas as discussões e análises empíricas daqui para frente e que tornará possível a mediação entre o cotidiano vivido da APA BF e aquele apreendido por nossa investigação.