• Nenhum resultado encontrado

TRAJETÓRIA HISTÓRICA DE ORGANIZAÇÃO DO CAMPO AMBIENTAL NO BRASIL: CORRENTES TEÓRICAS E DESDOBRAMENTOS

S ISTEMA N ACIONAL DE U NIDADES DE C ONSERVAÇÃO : CONEXÕES ENTRE ESPAÇO / TEMPO , TEORIA / EMPIRIA

1.2.1 TRAJETÓRIA HISTÓRICA DE ORGANIZAÇÃO DO CAMPO AMBIENTAL NO BRASIL: CORRENTES TEÓRICAS E DESDOBRAMENTOS

POLÍTICOS

O debate político e científico sobre o tema ambiental no Brasil pode ser dividido, para fins analíticos, em dois períodos históricos distintos. O primeiro coincide com as décadas da ditadura militar, dos anos 1960 a meados dos anos 1980, e foi marcado por políticas ambientalistas que refletiam um ideário preservacionista da natureza18. O segundo período tem início com o processo de redemocratização política e se estende aos dias atuais. Neste último, ganha destaque um tipo de movimento ambientalista mais preocupado com as questões

18

As correntes preservacionista e conservacionista são comumente usadas na literatura para identificar distintos referenciais teóricos e ideológicos, que dão suporte as ações sociais e políticas no campo ambiental. A corrente preservacionista está ligada a uma visão da natureza dissociada da sociedade. Nesse enfoque, a natureza assume uma função de contemplação e distanciamento, diferindo da corrente conservacionista onde sociedade e meio ambiente são tidos como inexcludentes (BARRETTO FILHO, 2001; MELO E SOUZA, 2004, 2006; CREADO, 2006).

sociais e em articular a conservação da natureza e seus usos com a presença humana. Os ideais ambientalistas nesse segundo período são, em grande medida, orientados pela visão “conservacionista” que emerge no bojo da redemocratização, logo após o fim da ditadura militar. Posteriormente, no início dos anos de 1990, o período passa a ser marcado pela penetração da noção de desenvolvimento sustentável na agenda pública, figurando como ideal civilizatório capaz de conciliar a vertente desenvolvimentista com a conservação da natureza.

O primeiro período, compreendido entre as décadas de 60 e 80 do século XX, representa uma fase de uso intensivo de recursos naturais destituída de maiores preocupações com as consequências ambientais. A sociedade sofre a influência do modelo de desenvolvimento forjado desde o segundo pós-guerra. A racionalidade dominante é a do Estado Keynesiano19 orientado pelo modelo de acumulação material. Nele, os Estados nacionais moldam suas políticas espaciais sob estratégias e escalas de ação específicas. O território nacional emerge como escala prioritária para ação e o planejamento territorial centralizado como principal instrumento operacional. O planejamento territorial no Estado Keynesiano objetivava organizar espacialmente a economia nacional, através de um sistema de regiões, tendo a macrorregião como a escala ótima para ação (BECKER, 2009).

Nesse período, o tema ambiental ganha maior atenção com a constituição do chamado Clube de Roma em 1968. Esse grupo era formado, sobretudo, por empresários e, em menor número, por pesquisadores interessados em debater um conjunto de assuntos relacionados à política, economia internacional e, em especial, às relações entre meio ambiente e desenvolvimento. Foi dele a iniciativa de encomendar um estudo pormenorizado sobre a real situação do planeta frente ao avanço do capitalismo. A produção do estudo intitulado “Os Limites do Crescimento” e seu desfecho na organização da primeira conferência mundial sobre o homem e o meio ambiente, a Conferência de Estocolmo em 1972, sinalizam a absorção de algumas das preocupações levantadas durante as manifestações públicas organizadas

19

Após a Segunda Guerra mundial, a teoria econômica de Keynes passou a ser adotada pela maioria dos países capitalistas ocidentais em crise de modelo de desenvolvimento desde os anos 1930. Para uma análise sobre como essa teoria se difundiu entre as nações capitalistas ver Hirschman (1996).

pela juventude francesa em maio de 1968, com destaque para aquelas relacionadas à degradação das bases biofísicas de sobrevivência da espécie humana (VIEIRA, 2005).

No Brasil, a lógica do crescimento econômico a qualquer custo associada ao modelo Keynesiano de intervenção estatal, centrado no controle do território nacional, teve rebatimento no campo ambiental com a criação oficial dos primeiros espaços naturais protegidos. Durante o período da ditadura militar, muitos desses espaços foram constituídos sob a égide do Estado totalitário e das políticas voltadas para a estatização de terras privadas. Medeiros (2003) explica que, ao perceber o aumento das pressões internacionais para a delimitação de áreas protegidas, o governo militar passou a associar o controle territorial às demandas específicas de conservação da natureza. Em 1985, mais da metade dos espaços protegidos federais hoje existentes já havia sido decretada. Contudo, a grande maioria deles, ainda obedecia a lógica do isolamento entre sociedade e natureza, típica da visão preservacionista que conduzia grande parte das ações políticas do campo ambiental no país.

Apesar dos avanços quantitativos na delimitação desses espaços, durante o período militar não houve nenhum esforço no sentido de formular um sistema nacional de meio ambiente, o que pode estar associado à baixa relevância atribuída pelos militares à questão ambiental (CASTRO et al., 2009). Se, por um lado, conforme já mencionado, o foco estava voltado para o aumento da concentração do poder estatal e para a consolidação de um território nacional, visto que as UCs representavam simplesmente mais terras sob o poder do Estado, por outro, o fato de ter sido criado um aparato de gestão específico para elaborar e executar a política ambiental do país, que historicamente esteve ligada ao Ministério da Agricultura, veio ao encontro das demandas de setores ambientalistas.

O ano de 1985 marca o fim do período militar no Brasil e a alteração do cenário geopolítico e ambiental. O relativo enfraquecimento do Estado Nacional, que deixa de ser concebido como única fonte de poder, e do território nacional como única escala de planejamento e de intervenção pública, abre espaço para a manifestação do que Becker chama de multidimensionalidade do poder. A descentralização do poder possibilita a emergência de múltiplas territorialidades, expressando, assim, a “nova estrutura das relações espaço-tempo, possibilitada pela conexão entre o local e o global” (2009, p.36).

Assim, a partir da redemocratização, o movimento ambiental ganha novo contorno e se fortalece no país. Caracterizado pela crítica à super-exploração dos recursos naturais e ao desenvolvimento altamente concentrador de renda, a nova geração do ambientalismo brasileiro, incorpora em seu corpus operandi as bandeiras dos movimentos sociais mais diretamente ligados ao tema ambiental, a exemplo das comunidades seringueiras da Amazônia, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e dos movimentos indígenas e de pescadores (JACOBI, 2003; MELO E SOUZA, 2004, 2006). A incorporação das reivindicações desses grupos sociais espelha uma nova forma de compreender a conservação da natureza mais permeável a ação humana. Mesmo que a corrente preservacionista continuasse, e ainda hoje continue bastante presente, sobretudo na arena de ações políticas, foi notória nesse período a inversão na correlação de forças, cuja balança começa a “pender” para a visão conservacionista das relações entre ambiente e sociedade.

Paralelamente, o contexto geopolítico nacional, sobre o efeito da abertura democrática, sofre alterações drásticas associadas à penetração do projeto neoliberal nas políticas econômicas do Estado Nacional. A Eco92 no Rio de Janeiro marca a entrada oficial da agenda “verde” nas políticas de governo e nos projetos empresariais e sela um acordo conciliatório entre desenvolvimento e conservação ambiental (ACSELRAD, 2010; JATOBÁ et al. 2009; RIBEIRO, 1991). A partir da difusão do relatório Brundtland, ou “Nosso Futuro Comum”, levado a público na ocasião, a noção de desenvolvimento sustentável ganha notoriedade e aderência alterando significativamente a percepção da problemática ambiental.

Contudo, conforme ressaltado por Jatobá et al. (2009), o relatório “Nosso Futuro Comum” inverte a lógica do discurso ambiental, que deixa de estar centrado na manutenção da natureza per se para focar na manutenção da qualidade de vida da humanidade. Ao pregar a necessidade de adaptação das técnicas que sustentam o modelo “hegemônico” de desenvolvimento para práticas menos impactantes, do ponto de vista socioambiental, o documento assume a postura de que a degradação ambiental, caso continue, poderá comprometer a continuidade do modelo desenvolvimentista devido à escassez de matéria prima e da consequente manutenção da qualidade de vida material das populações humanas. Para os autores, ocorre assim uma inversão de valores, pois o modelo desenvolvimentista é retirado de sua condição de “vilão”, conforme preconizado pelo movimento ambiental

até então, e alçado a uma posição de redentor, na medida em que, sob o novo rótulo de desenvolvimento sustentável, torna-se o maior responsável pela manutenção da vida no planeta garantindo, inclusive, as condições de sobrevivência para as futuras gerações.

A mudança de foco da discussão ambiental para a defesa da qualidade de vida humana tem como consequência nova alteração dos rumos do movimento ambientalista no país, inaugurando a lógica contemporânea do desenvolvimento sustentável20. O discurso ambientalista ancorado nos preceitos do desenvolvimento sustentável, objetiva conectar o mercado e as políticas desenvolvimentistas à conservação ambiental através da economia de recursos naturais para gerações futuras e da disseminação e emprego de tecnologias verdes nas indústrias, cidades e meio rural. As preocupações se voltam para ações de parcerias e cooperação multilaterais, entre Estado e instituições ambientais, e entre essas últimas e empresas privadas, visando avançar rumo a uma sociedade ambientalmente menos impactante (ACSELRAD, 2010; VIOLA, 1992; ZHOURI et al., 2005).

No bojo do ambiente sócio-político do período de redemocratização e com a difusão da noção de desenvolvimento sustentável, o debate sobre populações humanas e espaços naturais protegidos ganha publicidade e processa-se uma mudança de foco nas políticas de gestão territorial da natureza no Brasil. A admissão de alguns tipos de interações entre esses espaços e a sociedade começa a ser difundida e a criação de áreas protegidas ancoradas nos referenciais preservacionistas de paisagens intocadas perde espaço para outra estratégia de gestão territorial mais permeável à presença humana. O próximo item pretende aprofundar esse tema a fim de entender como a cisão ideológica do ambientalismo no Brasil, representada pelas correntes preservacionista e conservacionista, foi absorvida e transposta para o campo político da gestão territorial ambiental, resultando na elaboração do atual SNUC.

20

Note-se que o tema do desenvolvimento sustentável envolve um extenso e polissêmico debate teórico que sub-divide intelectuais e ambientalistas. Para um panorama do debate, bem como das correntes teóricas a ele associadas, ver Veiga (2010).

1.2.2 ATORES, ESTRATÉGIAS, LIMITES E DESAFIOS DE CONSOLIDAÇÃO