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M EDIAÇÃO : O P APEL DO D OCENTE DE E NFERMAGEM NO P ROJETO P EDAGÓGICO

P OSSIBILIDADES E L IMITES DA I NTERDISCIPLINARIDADE

3. M EDIAÇÃO : O P APEL DO D OCENTE DE E NFERMAGEM NO P ROJETO P EDAGÓGICO

Neste eixo, pretendo avaliar as falas dos docentes com o intuito de captar nelas indícios que revelem o compromisso ético e político do educador na mediação do Projeto Pedagógico. Em outras palavras, tomar a prática pedagógica dos docentes da Faculdade de Enfermagem como mediação vincula fortemente o Projeto Pedagógico do docente-cidadão ao projeto político do

cidadão-docente e situa a função deste profissional, seja como intelectual criador, organizador ou

socializador, numa dimensão de intervenção no processo de formação do homem novo, num terreno que é palco de uma luta contínua entre o velho e o novo, entre a conservação das certezas do que deve ser ensinado ou a revolução, a mudança.

É preciso, porém, enfrentar, nesta reflexão, a complexidade que representa a opção de mudar de um ensino reprodutivista, caracterizado pela passividade, pela transmissão de conteúdo

já elaborado, para um ensino dialógico, emancipado, transformador, em que os espaços para a criatividade possam aflorar sem a preocupação com as instâncias burocráticas.

Antes de tudo, uma prática pedagógica traduz-se na relação entre Projeto Pedagógico, trabalho pedagógico e educador, como visualizamos a seguir nas falas de D4:

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“Eu compreendo o Projeto Pedagógico. Ele prevê um aluno crítico, comprometido, mas como docente acredito que o aluno não tem obrigação de entender. Acho que através da minha disciplina tenho que oferecer, tem que estar implícito como é a Faculdade.” D4

“ O Projeto Pedagógico nos dá diretrizes dos alunos que queremos formar.”D4

Do ponto de vista de D4, a disciplina ministrada pelo docente carrega toda a gama de significados que fundamentam o Projeto Pedagógico, ou seja, todo o seu credo. No caso da Faculdade de Enfermagem da Puc-Campinas, cada disciplina deve, por sua vez, implicitamente, prever um aluno crítico, como almeja o Projeto Pedagógico. É através, portanto, de cada disciplina que a prática mediadora pode ser concretizada, pois ela é o canal da viabilização.

É interessante apontarmos que, consequentemente, cada disciplina também carrega a visão de mundo, os valores, a formação, a filosofia de vida do docente que a ministra para, a partir destes, o docente fazer o “recorte” desejado e/ou necessário em função do objetivo estabelecido em sua disciplina, conforme nos atesta D3:

“Eu trabalho exatamente com isso. Eu me dediquei a isso. Porque eu tenho de ter um olhar onde sempre faço esse recorte. Outra pessoa que tenha outra formação, que é trabalhar com gestantes, por exemplo, com o nascimento, com a vida, vai trazer outro.” D3

O compromisso com o acadêmico no que se refere a sua inserção na sociedade é um dos aspectos que nos ajuda a visualizar o trabalho pedagógico do docente como uma prática mediadora, podendo ser ilustrado pelo depoimento abaixo:

“ O nosso compromisso com a construção do SUS e de nosso compromisso com a transformação da sociedade. Com a transformação da população, com a melhora das condições de saúde e com a diminuição do sofrimento da população. Porque nós trabalhamos basicamente com o sofrimento, lidamos com o sofrimento no cotidiano.” D4

D4 mostra-nos que o Projeto Pedagógico tem caminhado em direção a um ensino comprometido com a saúde da população, tem estimulado a curiosidade intelectual, através da inserção do aluno em pesquisa. Outro trecho que ilustra a questão do compromisso do docente é o seguinte:

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“ O objeto do meu trabalho é o indivíduo que foi marginalizado por essa sociedade que não encontra espaço (e é através dos séculos), para essa pessoa que tem uma doença muito triste, dura para ele e para quem convive com ele. Então, minha referência hoje é minimizar a discriminação que esse indivíduo tem. Todo o meu ensino, meu discurso, minha abordagem, minhas reflexões são para mostrar que esse indivíduo simplesmente teve uma doença que não escolheu, que não queria e que é muito ruim. Portanto, como, o que fazemos para tornar a vida dele menos ruim? Como eu tenho chance de reintegrá-lo, com os limites que ele tem, o que é possível fazer com esse limite para ele ser produtivo, ser funcional, melhorar sua auto-imagem, ele ter chance de se tornar bem quisto ? O meu eixo é diminuir a discriminação que esse indivíduo está tendo.” D5 (grifos meus)

O compromisso de D5 com sua prática pedagógica se traduz na incidência de expressões como “meu trabalho”, “minha referência”, “meu discurso”, “minha abordagem”, “minhas reflexões”, as quais revelam enfaticamente que o docente toma posse do papel que lhe compete para a concretização do Projeto Pedagógico. Notamos, claramente, nesta fala, que o resultado do trabalho pedagógico em parte depende do engajamento do docente de modo a mediar tal processo. Nesta perspectiva, não interessa ao docente se o doente tem ou não a chance de recuperação, o que lhe é relevante é a possibilidade que ele (docente), enquanto um agente transformador, tem de mudar os limites do doente para que este seja produtivo, funcional, enfim, para que tenha a “chance de se tornar bem quisto”. Em uma visão geral, a prática do docente serve como mediação para a busca de uma sociedade mais justa.

Posso acrescentar, ainda, que o mundo da necessidade, ao qual uma visão histórica e crítica do conhecimento sempre os reporta, exige um constante apelo à situação real para o encaminhamento da utopia. O mundo da liberdade ainda é utopia e agir, neste momento, como se esta utopia pudesse ser já o ponto de partida, expõe uma situação certamente equivocada para o desenvolvimento de um processo consciente de transformação.

Para que a prática seja mediadora, esta precisa ser repensada tal como D5 propõe abaixo:

“ O Projeto Pedagógico está esmorecendo, foi plantado mas não foi cultivado, parece que já está morto! Quem está perguntando quê aluno queremos formar? Estamos mais preocupados com a modulação!”

Há, por parte dos docentes entrevistados, uma preocupação quanto ao seu papel dentro processo educacional, na medida em que eles se mostram interessados em repensar a organização do trabalho pedagógico a fim de alterar a lógica do ensino excessivamente centrado na figura do professor.

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Reconhecida a pertinência do Projeto Pedagógico, D6 revela-nos que, para a adoção de qualquer proposta educacional, isto não se dá de forma linear e muito menos impositiva, pois depende do educador estar em constante questionamento, o que vem ao encontro com o pressuposto de que o saber sempre tem de estar em constante estado de desequilíbrio, de reflexão, assim, no caminhar desta proposta, ou seja, no seu longo e lento processo de construção, não há um simples ponto de chegada, mas sim um constante chegar ao conhecimento.

“ Eu tenho dúvidas se existe um trabalho coletivo, o Projeto Pedagógico foi um trabalho coletivo que hoje está muito longe da prática.” D6

Considerando que o desenvolvimento de uma nova hegemonia não se dará sem um processo de transformação em que os elementos da velha hegemonia precisam ser desmontados, ao mesmo tempo em que os novos elementos precisam ser construídos, o atual momento pedagógico é sempre um momento de transição, de passagem de uma hegemonia para outra. A transição de uma prática para outra exige, necessariamente, uma atitude de questionamento, como demonstram as falas abaixo:

“ O Projeto Pedagógico é muito bonito no papel, mas na prática é outra coisa, na realidade não sei se acontece.” D3

“O projeto pedagógico nos dá diretrizes dos alunos que queremos formar, mas, às vezes, ficamos longe do papel.” D1

É importante lembrar que predominam, na atual concepção do ensino superior, incoerências, anacronismos e contradições. Mas, ao mesmo tempo, também identificamos os elementos críticos de bom senso que já estão presentes neste nível de ensino, como os docentes acima revelam por exemplo a necessidade de questionamento. Esta atitude é uma marca fundamental dentro da prática pedagógica, sem a qual o trabalho do docente não serve como mediação.

Se o momento é de transição, não pode existir a ilusão de que o possível de agora já pode ser confundido com a nova hegemonia, com uma pedagogia para a sociedade regulada; o possível de agora ainda é repleto de contradições, mesmo que já se coloque como um caminhar no sentido da superação destas contradições, conforme fica evidenciado no depoimento de D6:

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“ Eu acho que o Projeto Pedagógico não dá conta de formar um profissional mais criativo, tem algumas concepções filosóficas que prevalecem mas não é realizado, está fora da realidade.”

A sua ação não é e nem pode ser considerada como uma ação transformada, como uma nova metodologia e, sim, como uma ação transformadora a caminho de uma nova metodologia de trabalho. E quanto mais se constata uma postura ideológica definida e sedimentada com relação à utopia pretendida, tanto mais perceptível nas representações dos docentes a sua confiança no método que estão desenvolvendo, na ação que estão praticando. Isto se justifica pelo fato de que eles não afastam a contradição, convivem com ela e dela tiram partido. Do ponto de vista político, uma prática mediadora necessariamente estabelece uma dimensão social do papel do docente, como visualizamos abaixo:

“ Temos que propiciar ao nosso indivíduo/doente uma aproximação mínima do conceito de cidadania. Dar ao menos o direito dele se ver como cidadão.” D5

Além de uma dimensão social, uma prática mediadora também requer, dentro de um mundo globalizado cada vez mais competitivo, um comprometimento do docente quanto à sua constante atualização, conforme elucidam-nos os depoimentos abaixo:

“ A outra marca que eu vejo, que aí é na minha prática, é de seriedade no compromisso. Não só político como também técnico, com o aperfeiçoamento permanente, com a busca pelos novos conhecimentos, com o saber se colocar, saber se expressar de forma oral e de forma escrita.” D4

“ (...) carente de informações, de formação prévia, então você está tentando trazer um projeto pedagógico, da pretensão nossa, não é fácil. Isso exige de você também leitura crítica própria, enquanto professor, do aluno...mas não só, uma leitura também de transformação, o que é transformação? vamos ser felizes, vamos investir no que a gente tem de transformação! É importante isso até para a profissão de enfermagem.” D4

Se o momento é de mudança, não se pode perder tempo, devemos problematizar as circunstâncias sociopolítico-culturais-econômicas que perpassam pelo processo ensino- aprendizagem, para, neste cenário, propiciarmos condições para formar nos nossos alunos um espírito crítico, criativo e aberto para a construção de um saber que dê conta destas transformações.

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Em uma prática mediadora, a opção ideológica amarra as decisões a determinados compromissos de amplitude social e epistemológica, como os depoimentos têm apontado. Mas não deve prender a ação com fios curtos no imediatismo pragmático que somente acaba favorecendo a manutenção de condições já estabelecidas. Ao amarrar o essencial à ação cotidiana do docente, ao mesmo tempo que a prática pedagógica adquire espaço e flexibilidade, torna-se também menos insegura e mais livre, como ilustrado na fala a seguir:

“ O Projeto Pedagógico nos direciona para um aluno crítico, competente, todos sabemos disso, eu acredito que todos os docentes trabalham tendo ele como base.” D2

Os depoimentos dos docentes remetem-nos, também, para a análise da relação profunda que os mesmos devem estabelecer entre os conhecimentos novos e aqueles que o aluno já possui. Para que os conhecimentos sejam efetivamente assimilados, há necessidade de que sejam reconhecidos como socialmente relevantes, interpretados e organizados em conjunto com os conhecimentos anteriores. Ao estabelecer uma relação profunda com a experiência dos estudantes, com as suas crenças, com o conhecimento deles, enfim, é que o docente poderá efetivamente mediar a ampliação destes conhecimentos, dentro de uma visão mais sistemática e, sobretudo, coerente.

Tais reflexões consistiram numa tentativa de montar um quadro e visualizar-se até que ponto o docente faz de sua prática pedagógica uma mediação entre teoria e prática. Notamos que há clareza entre os docentes consultados acerca do direcionamento do Projeto Pedagógico, embora apontem dificuldades para a sua realização, como revela o depoimento abaixo:

“ O Projeto Pedagógico foi um grande avanço, mas estava atrelado a um outro momento vivenciado pela Universidade, como esta mudou não cabe mais o nosso Projeto.” D5

Sabemos que a prática pedagógica não é transformada com base em propostas bem escritas. Necessariamente, a transformação exige um certo aval da comunidade. É desta que emana a vida do projeto, é ela que propicia a solidificação e dá início à sua caminhada.

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Pelos depoimentos, posso deduzir que o importante é a caminhada, o espaço de resistência, a busca pelo entender, melhorar e transformar. Trabalho urdido artesanalmente cujo objetivo é superar a dicotomia entre o discurso e a prática, sustentado por um Projeto Pedagógico cujas pilastras estejam assentadas em nossas utopias e que propiciem o seu aperfeiçoamento.