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EDUCAÇÃO, ARTE E QUESTÕES DE GÉNERO Ana Pereira

No documento View/Open (páginas 102-107)

Valongo V. N de Gaia Maia Porto Matosinhos Gondomar Rio Tinto

EDUCAÇÃO, ARTE E QUESTÕES DE GÉNERO Ana Pereira

Universidade do Minho

ana.mfpp@gmail.com

RESUMO: Ao longo da minha atividade como profissional de ensino no 1.º Ciclo do

Ensino Básico deparei-me com duas formas antinómicas de se assumir a área das expressões artísticas: por um lado, o reconhecimento das potencialidades das artes no ensino; por outro, a secundarização da área das expressões pelo domínio de uma conceção pedagógica de linha académica. Esta consciência levou-me a questionar sobre a forma como as professoras do 1.º Ciclo do Ensino Básico percecionam a sua prática pedagógica em torno da área de Expressão Plástica. Também me interessou captar estas perceções em dois momentos históricos diferentes, isto é, que conceções sobre a teoria e a prática predominavam antes e depois do 25 de Abril de 1974. Para tal, recorri a histórias de vida que me permitiram obter dados sobre o mundo subjetivo das professoras, dando-me a conhecer as significações que elas foram construindo na interação com os outros, com a sociedade e com a realidade objetiva, bem como compreender o desenvolvimento do pensamento e da ação dos fenómenos sociais passados em relação aos fenómenos contemporâneos.

Introdução

O objeto deste artigo tem como enfoque o desenvolvimento das áreas de expressões artísticas, particularmente da Expressão Plástica, no 1.º Ciclo do Ensino Básico, procurando compreender, através de histórias de vida a forma como as professoras deste nível de ensino as interpretam no currículo escolar e as desenvolvem na sua atividade quotidiana.

As questões de partida foram: (i) Que ambientes de escola facilitam/dificultam o desenvolvimento das expressões artísticas no 1.º Ciclo do Ensino Básico? (ii) Como assumem as professoras as mudanças observadas no currículo do 1.º Ciclo do Ensino Básico e que meios utilizam para redefinir as suas estratégias pedagógicas em relação às expressões artísticas? As histórias de vida colocam o sujeito no centro da investigação revelando o domínio do subjetivo. As vivências apresentadas refletem a imagem da sociedade fechada que o regime ditatorial forjou durante cinquenta anos e que conduziram à construção de identidades de género marcadamente estereotipadas e diferenciadas. No entanto, as histórias de vida permitem também desvelar formas de resistência onde a ironia e humor têm lugar assinalável. Na vida das pequenas

divórcio entre professores e comunidades locais. Evidencia-se também o conflito entre a função de professora e mãe. Na história de vida da professora que começou a lecionar antes do 25 de Abril reconhece-se que a importância do desenho se situava no princípio da repetição de gestos e traços onde a criança se apropria de competências ligadas à escrita, apenas como auxiliar do pensamento racional. Através da história de vida da professora que começou depois do 25 de Abril denota-se que a tradição metodológica ligada ao desenho à vista e ao rigor deixa de existir, passando o desenho a incorporar uma vertente de complemento, onde a articulação texto/imagem era graficamente resolvida pela criança. A preocupação inerente à exploração das áreas artísticas tende a acentuar-se, contudo não se pode esquecer que persiste a ideia de que a arte é inata ao indivíduo e que só alguns sobredotados estão ligados a essa forma de expressão.

Desenvolvimento

A escola foi, durante muito tempo, um espaço de ensino, onde se valorizava, sobretudo, a leitura, a escrita e o cálculo. Ainda que em Portugal, a partir de 1836, se tivesse investido na instrução primária elementar, o estudo efetuado por Magalhães (1994) revela que “nem a preparação da generalidade dos mestres de primeiras letras, nem as instalações e materiais didácticos, nem as expectativas de boa parte da população escolar, favoreciam uma acção pedagógica para além dos rudimentos de ler, escrever e contar” (p.29). O professor considerado um agente do estado, possuidor de conhecimento teórico, tinha como função debitar matéria e saberes herméticos e inacessíveis que a criança memorizava, mesmo sem entender (Sousa, 2000; Roldão, 2003).

O Desenho, como área curricular essencial de aprendizagem, no ensino, foi afirmado no discurso de Machado de Castro em 1787, apresentado na corte. A ênfase do

Desenho, nessa época, e por um longo período, situou-se na racionalidade e apresentou-

se como “um processo estruturante do pensamento para além de um exercício de destreza manual” (Eça, 2000, p.82).

Durante muitos anos as disciplinas artísticas que existiam nos currículos do Ensino Primário eram o Desenho e o Canto Coral, fazendo apenas o primeiro parte das avaliações anuais para concluir este nível de ensino.

A designação de Desenho manteve-se até à reforma Veiga Simão (Lei n.º 5/73, de 25 de Julho), assumindo uma nova dimensão passa a ser titulado de Expressão Plástica.

Fica assim reconhecida a importância da linguagem plástica para o desenvolvimento harmonioso da criança.

Com a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86 de 14 de Outubro) verificou-se que, no ensino generalista, ao nível do 1.º Ciclo do Ensino Básico, no plano curricular, foi introduzida uma área pluridisciplinar que abrange as várias expressões: Drama, Movimento, Música e Plástica (Leite, 1995).

Os docentes do 1.º Ciclo do Ensino Básico marcados pelos rituais pedagógicos anteriores, observando as exigências da introdução destas áreas no currículo, demitem- se da sua exploração, assumindo que elas retiram tempo necessário às matérias ditas centrais. Actualmente são vistas como uma forma de colmatar “tempos mortos”, sendo pois verdade o que Oliveira (2003) diz: “esta área é ainda encarada na nossa sociedade mais como uma forma de distracção, do que uma área que possui uma importância determinante para o desenvolvimento pessoal, social e cultural da criança” (p.40).

Esta situação peculiar advém “de um conjunto de pressupostos ‘errados’ que se foram criando ao longo dos tempos e que passam essencialmente pela dificuldade em perceber a utilidade educativa desta área e pela dificuldade em determinar a sua estrutura curricular” (Oliveira, 2003, p.40). O certo é que a escrita sempre teve uma enorme influência na aprendizagem da criança, opinião partilhada pela maior parte dos profissionais de ensino do 1.º Ciclo do Ensino Básico. Enquanto, por exemplo, a Língua Portuguesa, considerada uma disciplina útil, serve, segundo Oliveira (2003, p.41), “para concretizar pensamentos e saberes”, a Expressão Plástica assume um “carácter lúdico muitas vezes próximo ao inútil”.

No entanto, existem alguns profissionais de ensino que estão conscientes que a educação artística desenvolve na criança capacidades expressivas, lúdicas, físicas, cognitivas e criativas. Contudo, nem sempre os professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico “estão preparados para uma operacionalização da forma mais adequada” e, como consequência, a Expressão Plástica é banida ou relegada para segundo plano (Vasconcelos, 2003, p.7).

A sociedade actual fala na alfabetização das artes (Santos, 2003; Vasconcelos, 2003; Oliveira, 2003) e o próprio Ministério da Educação assim o aponta. Também se fala numa inserção escolar adequada ao desenvolvimento harmonioso da criança, para a formação da sua personalidade, tendo em conta instrumentos e profissionais de

educação com formação específica. Mas, na verdade, no 1.º Ciclo do Ensino Básico impera o regime de monodocência, e o professor vê-se confrontado com um currículo multidisciplinar, o desenvolvimento de projetos curriculares, e um conjunto de responsabilidades que vão para além do seu papel como professor. Perante esta multiplicidade de papéis, Ferreira (2002) interroga-se se a monodocência deve “ser redescoberta e revalorizada como opção pedagógica” (p.14). O autor considera que sim, porque acredita que os problemas das escolas residem, não na monodocência, mas sim “na compartimentação disciplinar”. Perante esta situação, questiono-me, diversas vezes, se o saber generalista não colocará em causa algumas das áreas curriculares.

Método

No presente estudo utilizo, como recurso metodológico, histórias de vida para compreender o fenómeno das práticas de duas professoras do 1.º Ciclo do Ensino Básico. Isto, porque acredito, tal como Goodson (2000) que “o estilo de vida do professor dentro e fora da escola, as suas identidades e culturas ocultas têm impacto sobre os modelos de ensino e sobre a prática educativa” (p.72). Considero ainda que todo o ambiente sociocultural e as experiências de vida das professoras do meu estudo são, como qualquer outra história de vida seria, “idiossincráticas e únicas e devem, por isso, ser estudadas na sua complexidade” (Goodson, 2000, p.72).

As histórias de vida para Angélica Cruz (2002) são o método mais apropriado quando se pretende observar como as interacções sociais invadem vidas privadas e como cada sujeito toma consciência delas.

Problema, objetivos e questões do estudo

No meu contacto diário com escolas do 1.º Ciclo do Ensino Básico da cidade de Bragança confrontei-me com professores(as) que sobrevalorizam algumas áreas curriculares em detrimento das áreas das Expressões Artísticas. Assim, a problematização deste estudo teve a ver com vivências pessoais em contextos educativos. Ao longo da minha atividade como profissional de ensino no 1.º Ciclo do Ensino Básico deparei-me com duas situações antinómicas: se por um lado, temos o reconhecimento das potencialidades das artes no ensino, por outro, temos uma tradição pedagógica que coloca as artes num plano secundário em detrimento das disciplinas ditas prioritárias. Face a tudo isto, julgo ser pertinente o problema que levanto e que

equacionei da seguinte forma: como percecionam as professoras do 1.º Ciclo do Ensino

Básico a sua prática pedagógica em torno da área de Expressão Plástica? Em dois momentos históricos diferentes: que conceções sobre a teoria e a prática predominavam? Detetada esta problemática, enquanto professora do 1.º Ciclo do Ensino

Básico, esta investigação tem como objetivo geral analisar a relevância que a Expressão

Plástica tem adquirido ao longo dos anos na vida e nas práticas dos docentes deste nível

de ensino. Nesta linha, e para a concretização deste objetivo central outros se afiguraram. Proponho, assim, como objetivos específicos: (i) constatar mudanças entre dois momentos históricos (antes e depois do 25 de Abril de 1974) no que se refere às representações das docentes sobre a importância da Expressão Plástica; (ii) conhecer a articulação existente entre o discurso teórico das professoras e as práticas profissionais que se desenvolvem em contexto educativo; e, (iii) perspectivar a situação actual do ensino da Expressão Plástica, no 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Tracei ainda algumas questões chave que me serviram como pontos de orientação, conjugação e análise dos dados recolhidos através das histórias de vida que, teoricamente, me possibilitaram criar uma linha de orientação no processo de categorização dos dados, e que passo a explicitar:

Que ambientes de escola facilitam/dificultam o desenvolvimento das expressões artísticas no 1.º Ciclo do Ensino Básico?

Como assumem as professoras as mudanças observadas no currículo do 1.º Ciclo do Ensino Básico e que meios utilizam para redefinir as suas estratégias pedagógicas em relação às expressões artísticas?

Sujeitos do estudo

Na medida em que a questão do género é transversal ao ensino, quer na socialização, quer na formação dos docentes, a minha escolha recaiu sobre duas professoras com vivências pessoais, formativas e profissionais que ocorreram em momentos históricos diferenciados. Considero que o universo ideológico e cultural se reflete no universo pedagógico das professoras e, por tal, pretendo conhecer diferentes discursos que me ofereçam fortes possibilidades de realizar análises comparativas entre práticas educativas contextualizadas em momentos históricos distintos. Daí ter escolhido para o estudo uma professora que realizou a sua formação e início de carreira antes do 25 de Abril e outra após este marco histórico.

A seleção de mulheres está relacionada com a intenção de conhecer experiências de subjetividade de mulheres professoras do 1.º Ciclo do Ensino Básico. Então, ficou decidido que seriam duas participantes do sexo feminino, das quais uma teria de ter iniciado a sua actividade profissional ainda durante a ditadura salazarista e a outra após. Neste sentido considerei relevante elaborar uma lista onde constassem as habilitações e anos de serviço de todas as professoras do 1.º Ciclo do Ensino Básico a exercer a sua actividade profissional na cidade de Bragança. Nos dois Agrupamentos de Escolas existentes recolhi todos esses dados e a partir daí segui os seguintes critérios para a selecção de duas professoras: (i) que ambas tivessem realizado a formação inicial nas Escolas do Magistério Primário de Bragança; (ii) que no momento de recolha dos relatos de vida estivessem a trabalhar directamente com crianças, numa escola de Bragança; (iii) que tivessem efectuado investimento profissional; (iv) que manifestassem facilidade de comunicação, conhecimento pessoal e capacidade de reflectir sobre as suas práticas profissionais; e (v) que tivessem disponibilidade de tempo para serem entrevistadas. Nos quadros I e II seguintes apresento os dados biográficos das professoras selecionadas para o estudo.

Quadro I. Dados biográficos referentes à professora Isabel

DADOS BIOGRÁFICOS CODIFICAÇÃO:

ISABEL

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