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3 QUADRO TEÓRICO

4. REVELANDO O QUE DIZ O OLHAR, O ESCUTAR, O SENTIR E O VIVER

5.3 Educação e escola: o envolver-se político

Durante minha vivência na comunidade Tapeba, dentro de uma escola diferenciada, foi-me possível perceber a dimensão política da educação pensada e trabalhada por eles, dentro de uma formação ética. Como também participei de etapas do MISI-PITAKAJÁ, notei que a educação é tratada como um ato político não só pelos Tapeba, mas por todas essas tribos indígenas cearenses participantes do curso.

Os professores direcionam suas práticas educativas para o ensinamento dos direitos e deveres dos seus alunos, enquanto seres que precisam lutar pelo reconhecimento do seu povo, em um movimento incessante de reafirmação de sua identidade indígena. Além disso, esses alunos saem da escola sabendo a sua história, contada por seus parentes, professores, por meio de atividades que são realizadas dentro e fora da sala da aula.

A Educação indígena é um ato de responsabilidade e compromisso para com a formação dos indivíduos. A escola diferenciada vem (in)formando e estimulando seus alunos a fim de torná-los seres críticos diante da realidade. “Na verdade, os atos de educação da escola indígena diferenciada medram em um contexto de comunicação que produz significações norteadoras da sobrevivência e luta da resistência das etnias” (POVO TAPEBA, 2007, p. 5).

O povo Tapeba fala que “a escola indígena é o lugar da luta” (2007, p.64). Dessa forma, percebo que a escola diferenciada é fundamental para o fortalecimento da alteridade indígena, a partir do momento em que assume o papel de porta-bandeira da causa, do povo, da luta. Através e dentro dela, são pensadas, organizadas e realizadas retomadas, passeatas, eventos e discussões:

[...] depois que as escolas indígenas realmente em 2001 ela começou a se fortalecer mesmo, sabe, que a gente ia muito pra manifestação, a gente se trajava, se pintava, né. E aí, muita gente, a partir da escola indígena, começou a não ter mais vergonha de dizer que era Tapeba, né. Agora as pessoas se autoidentificam como Tapeba. Antes sabia que era Tapeba, mas não diziam porque tinham vergonha. Hoje, hoje não (Kelly).

[...] a gente não tinha essa, essa... eu não sei se é coragem de se identificar, né, de dizer realmente que pertencia a um povo indígena, que tem toda uma história de um povo, e hoje eu vejo assim, vejo a escola como uma base pra essa questão [...] (Iolanda).

Por meio do discurso supracitado da professora Iolanda, podemos perceber a importância da escola diferenciada para a sustentação da identidade indígena. A partir do

momento que a escola assume o papel de formadora de cidadãos críticos e sensíveis à realidade, ela proporciona a autoafirmação de seus alunos e professores enquanto seres indígenas de fato e de direito.

Segundo Freire, “o educador progressista é leal à radical vocação do ser humano para a autonomia e se entrega aberto e crítico à compreensão da importância da posição de classe, de sexo e de raça para a luta de libertação”. (2001, p. 46). Desse modo, percebo que a educação diferenciada indígena Tapeba, mostra-se uma educação progressista, sendo um ato político, ideológico e transformador, pois se compromete com o desocultamento político e social da realidade, levando em consideração os condicionantes históricos formadores de nossa sociedade.

Segundo Freire, “estar disponível é estar sensível aos chamamentos que nos chegam, aos sinais mais diversos que nos apelam”. (1996, p.134). Nesse sentido, professores e alunos Tapeba estão em um constante movimento de troca. Foi interessante perceber que os professores mostram-se abertos à experiência trazida pelo aluno, ou seja, eles estão disponíveis ao diálogo com o(a) outro(a), livres de preconceito, medo e cientes das diferenças existentes entre os seres. Graciana ilustra esta afirmação, quando diz:

Pra mim, um verdadeiro professor, quando ele tem no sangue ser professor, ele se envolve, querendo ou não ele se envolve com a vida daquele aluno. Ele vai buscar adentro para saber a real situação da aprendizagem dele. Eu acredito nisso, que muitas vezes o aluno não tem o progresso, não tem uma perspectiva boa de vida, porque alguma coisa tá faltando. E essa alguma coisa é o diálogo.

Esse envolvimento dos professores acarreta um não distanciamento entre eles e seus alunos, favorecendo a tessitura de um movimento educacional regido pelo respeito e pela ética, no qual alunos saem da escola sabedores de seus papéis na sociedade. Dessa maneira, escola e comunidade trabalham na produção de subjetividades críticas, que resistem à assimilação do discurso e da perspectiva do colonizador ou do opressor (AZIBEIRO e FLEURI, 2010).

O corpo docente – formado por indivíduos com maior ou menor entendimento dos jogos de poder da(s) colonialidade(s) presentes nas situações que tramam seu cotidiano - traçam algumas práticas educativas na tentativa da desconstrução da realidade oprimida. Eles questionam o discurso e buscam que elaboração do pensamento seja feita pela própria comunidade, ou seja, que aconteça internamente e não venha de cima para baixo ou de fora para dentro.

Como exemplo, tem-se a discussão bastante usual na aldeia e nas escolas acerca das palavras “índio” e “indígena”. Margarida aborda o assunto, dizendo: “Indígena na verdade não seria nem indígena, seria povos nativos né, essa história de índio inventaram aí, os portugueses, os holandeses, os franceses, todos esses, inventaram essa história de índio, indígena”.

Nesse caso, segundo Azibeiro e Fleuri, há uma abertura para o “questionamento das formas totalizantes e absolutizantes do pensamento hegemônico na modernidade” (2010, p.12). Dessa forma, eles questionam, desconstroem e buscam remontar a história e o discurso vigente a fim de reelaborá-los. Fazendo isso, eles dão voz a novas verdades e abrem espaço a pluralidades dos discursos. Assim, anunciam a descolonialidade na escola e na comunidade, já que, a partir de suas vivências, discussões e saberes, ressaltam lógicas, racionalidades e modos socioculturais de viver historicamente negados (WALSH, 2008).

Desse modo, eles demonstram, como dizem Azibeiro e Fleuri (2010), uma disposição intercultural a partir de uma perspectiva descolonialista, ou seja, entretecem relações de reciprocidade, nas quais sabem o que querem ao mesmo tempo em que se abrem para também saber (e considerar importante) o que querem as outras pessoas; em que, o tempo todo, aprendem, ao mesmo tempo em que ensinam.

Os professores indígenas são conscientes do seu papel formador e assumem uma posição crítica perante sua responsabilidade profissional. Na escola, os conteúdos estão conectados com a realidade vivida pelos alunos, ou seja, há uma conexão entre o que se aprende e o que se faz. “[...] estudar é, para a cultura indígena, continuar sendo como a gente é e ir aprendendo com o(a) outro(a) novas coisas, sem deixar nossa vida indígena” (POVO TAPEBA, 2007, p.6).

Como exemplo, cito a época da feira cultural, na qual pude vivenciar com eles esse momento. Todas as aulas da escola giravam em torno da feira. Alunos, professores e eu saíamos pelas matas para coletar carnaúba, a fim de fazer trajes e artesanatos. Alunos passavam tardes pintando telhas para vender no evento. Dessa forma, os alunos iam aprendendo e fazendo atividades condizentes com a sua realidade e a de sua comunidade. Assim, há uma clara consonância entre o vivido e o aprendido. “Então, aqui na escola a gente trabalha a questão realmente de saberes diferentes, de respeitar na prática, tanto na sala de aula nos alunos, como dos mais velhos” (Graciana).

Segundo a professora Kelly, mesmo os alunos que acabam seus estudos na escola do Trilho e têm que estudar numa escola estadual (não-indígena), não esquecem e não escondem sua cultura. “Mesmo os alunos que saem da escola indígena, né, que vai pra outra escola, ele

não tem vergonha. Então, os trajes, né eles usam e tudo” (Kelly). Isso revela o papel da escola de formar cidadão que lutam por uma transformação social, ou seja, por uma sociedade livre de preconceitos e reconhecedora da história.

Juntamente com o movimento indígena, que luta não somente pela demarcação da terra, mas pelo reconhecimento dos direitos dos índios, a escola diferenciada, portanto, assume importante função no reconhecimento de si enquanto indígena. Segundo a professora Priscila, o envolvimento é necessário para conhecer a si e a causa da luta indígena. “[...] eu moro lá no meio deles, mas agora que eu tô mais envolvida, quando eu só vivia em casa, de casa pra escola, eu não muito esse envolvimento, né, e agora que eu tô mais no meio é que eu tô conhecendo”.

A partir daí, podemos perceber que estar junto e engajado ética, política e afetivamente, percebendo-se como membro fazedor e constituinte da comunidade, do movimento, é imprescindível para uma ação mobilizadora. Não adianta apenas frequentar uma escola indígena diferenciada, mas vivê-la, experienciá-la em todas as suas situações, “por que escola é vida. [...] E a nossa vida tem essa luta. A luta pela terra e por nossos direitos” (POVO TAPEBA, 2007, p. 58).