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A consolidação do MST como organização encontra-se ligada à ascendência de certas categorias materialistas advindas da tradição do MOP, como a autonomia, a opção pelo enfrentamento de classe, as estruturas democráticas de tipo conselhos operários, o trabalho associado e a busca consciente de uma maior socialização da produção.

No entanto, seria uma simplificação da realidade afirmar que essa linha de ação é unívoca no MST. Encontra-se bem determinado que a Igreja, por meio da CPT e outros agentes, foi uma das mais importantes forças patrocinadora da formação do MST. E o fato de que o MST, num certo momento de seu percurso, tenha se tornado politicamente independente das forças ligadas à Igreja, não significa que esta não continue a exercer vigorosa influência nos integrantes do Movimento. Esta influência ocorre por meio da participação de militantes da Pastoral no movimento dos sem terra, de pensadores que mantém maior ou menor proximidade com a maneira de ser e pensar religiosa e outras formas. Mas ocorre, também, o que é um fenômeno da maior importância, por meio da ação evangélica, da religiosidade secular do povo do campo. Tomemos o caso exemplar da CPA Cooperunião, de Dionísio Cerqueira. A Cooperunião, cuja escola do assentamento é um dos sujeitos desta pesquisa como indicado, é uma das cooperativas de trabalho associado mais bem sucedidas do MST, o que segundo alguns críticos bem representaria a sua linha coletivista, em detrimento dos valores camponeses. No entanto, de acordo com as observações realizadas no assentamento, o povo que forma essa cooperativa se mantém fiel a suas tradições, de modo que cuida para que um sacerdote, que tenha empatia com o Movimento, compareça regularmente ao assentamento para o exercício de várias funções religiosas.

Há outras influências no Movimento que podem ter ou não afinidades com a concepção de mundo da Igreja, e que não é o caso de detalhar aqui. Digamos tão somente que essas influências, práticas e ou literárias, têm linhas de pensamento que tomam como referencial teórico fundamental a noção de cultura26. Essas correntes normalmente partilham de certos traços comuns, o que expressam em suas concepções humanistas nas

26 - Sobre o lugar estratégico do conceito de cultura em ampla gama de correntes nas ciências sociais ver

Göran THERBORN, Ciencia, clase y sociedad. Sobre la formación de la sociologia y Del materialismo histórico, 1980.

quais se valoriza a pessoa, aspectos do modo camponês de vida, a cultura e várias outras determinações.

No Movimento, atualmente, essas influências parecem encontrar-se concentradas, sobretudo, na esfera da cultura. É o caso da matriz educacional denominada de história- memória-mística que ora examinamos. Esta matriz educacional é inequivocamente uma influência cultural poderosa no MST, uma vez que ela encontra-se incorporada orgânica e molecularmente à vida da organização e em todos os níveis.

A valorização da história do MST, e de modo mais abrangente a dos trabalhadores, é um fato. Segundo Caldart (2001, p.234-235), a valorização da história na práxis do Movimento começou com o costume de olhar para trás, para a antiguidade do tema da Reforma Agrária no Brasil.

Essa prática foi se desenvolvendo e é elemento recorrente dos cursos de formação, e com a constituição das escolas do Movimento passou a ocupar um lugar estratégico em seus currículos.

Contudo, devemos observar a título de referência demarcatória, que podemos distinguir três variantes de história sendo cultivadas no MST: a) a história erudita; b) a história cronológica; c) a história memória. A forma erudita é a história como disciplina de tipo acadêmico, interpretativa, que se coloca segundo o estatuto de ciência. Ela é cultivada nas escolas, nos seminários, nos cursos de formação e nos trabalhos literários do MST. A história como cronologia, de uso mais prático e corrente, está, sobretudo, presente nos documentos de popularização do Movimento. A história memória é de uso cotidiano e comumente aparece ligada à mística. Sob esta forma popular, ela incorpora-se à percepção e mentalidade dos trabalhadores, ou seja, ao seu bom senso, o que ocorre por processo evocativo, intelectual e afetivo. Isso ocorre nos atos comemorativos, nos atos de protesto ou crítica a algum acontecimento social, nos festejos, nos momentos agudos de luta e no cotidiano dos acampamentos e assentamentos.

A mística tem impacto cultural sobre os membros do MST. Ela está ligada a milhares de pequenos e ou grandes atos, os mais diversos, praticados correntemente em todo o conjunto social do MST. Ela é praticamente indissociável da história memória, porque quase sempre aparece ligada à menção de algum acontecimento histórico do MST, dos trabalhadores em geral ou da nação, podendo ser uma encenação, um ato de repúdio a

uma violência cometida contra os sem-terra, uma cantoria, uma performance, uma cerimônia religiosa e tantas outras formas.

Tudo indica que a mística é uma influência advinda da Igreja. Caldart acredita que na mística conserva-se um necessário elemento de mistério, e que este é uma espécie de sal da vida. A autora é de opinião que a ligação dos sem-terra com a terra, que ela considera uma matriz pedagógica por sua influência no Movimento, tem a ver com uma relação mística entre o homem e a terra: produzir na terra; voltar à terra; morrer na terra. Afirma Caldart que: “[...] É de novo aquele mistério, aquela mística que em todos os tempos envolveu esta relação entre os seres humanos e a terra [...]” (2001, p. 222).

O mistério não é uma categoria que seja para nós objeto de considerações. Porém, isto não impede reconhecer que a prática generalizada da memória-mística no MST, por meio das mais diversas e imaginosas ações, sempre revestidas em maior ou menor grau de dimensão solene, cerimoniosa e reverencial é profundamente mobilizadora de energias afetivas e de auto-identificação e, nesse sentido, geradora de sentimento de devoção à causa.

5. Educação da cultura

O que expusemos sob a rubrica de história-memória-mística é naturalmente uma dimensão da cultura produzida na práxis do MST. Uma outra importante dimensão da cultura, a qual é emergente no Movimento, é a escolar, pois o MST chegou à conclusão de que não poderia continuar a desenvolver-se sem a instauração de uma educação de tipo escolar. Mas de qual educação escolar? Da educação ministrada pela escola oficial formatada para atender os requisitos operatórios do capitalismo?

A reflexão realizada sobre o tema, indicou-nos que o Movimento teve a necessidade de construir uma escola compatível com a sua disposição política e econômica. As matrizes educacionais arroladas anteriormente oferecem a pauta básica para a realização desse empreendimento. Contudo, o empreendimento educacional escolar tem suas próprias especificidades, que não é possível ignorar. Por outra parte, não se concebe dar início a um empreendimento desse tipo começando-se da estaca zero quando se encontra à disposição uma rica reflexão pedagógica que vem desenvolvendo-se através dos tempos.