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CAPÍTULO 4 O PETI E SUAS INFLUÊNCIAS NAS EXPERIÊNCIAS COTIDIANAS DAS FAMÍLIAS

4.3 Educação e perspectivas futuras das crianças e dos adolescentes ao saírem do Programa.

Como foi analisado anteriormente, o ingresso das crianças e adolescentes na escola representa, para as famílias beneficiárias, a possibilidade de mudanças na vida futura dos filhos. Assim, a formação escolar seria capaz de viabilizar o acesso dos seus filhos a melhores condições de vida e de trabalho. As atuais condições a que estão submetidas às famílias não lhes permitem realizar projetos e sonhos para o futuro dos filhos sem a intermediação da escola. Para elas, a escola é capaz de operar mudanças, realizando impactos em suas experiências cotidianas e em sua situação sócio-econômica, viabilizando o acesso dos seus filhos a melhores condições de vida e de trabalho.

Como o trabalho, especialmente as condições em que ele se realiza, é tido como negação da liberdade e marca da inferioridade social, e não

em que se gesta outra perspectiva, possibilitando os filhos sua inserção futura no mercado de trabalho e obtenção de posições de prestígio social, como revelam estas afirmações:

“Se eu tivesse estudo eu tinha meu dinheirinho e não vivia nas águas que vivo. Digo aos meus filhos que se interessem em estudar porque tem condições de melhorar de vida”; “eles não querem limpar mato. Eu também não quero. Vou deixar eles estudar, pra vê se eles pega uma fase melhor da vida”; “quem sabe ler vai pegar um emprego melhor para não estar na palha da cana”; “estudar para não sofrer o que os pais sofreram, de não ter emprego, ficar 6 meses sem trabalho;vai sobreviver mais fácil. Vai trabalhar menos do que como agricultor, sem nunca ter um dia que não trabalhe”.

Este último depoimento se transporta para o cotidiano do trabalhador no qual a jornada de trabalho no plantio e colheita da cana avança sobre os domingos e feriados, que passam a ter existência apenas quando decretada pelo usineiro, transfigurado num poderoso legislador no interior de seus domínios privados. As exigências da produção regulada pelo poder privado sobrepõem-se à ação normativa do Estado: Os feriados passam a existir quando a usina admite (IAMAMOTO, 2001 p. 227).

As famílias esperam que os filhos se realizem em profissão que permita desenvolver mais o seu intelecto, profissão bonita e menos suja e que exija pouco ou nenhum esforço físico, como expressam alguns entrevistados:

“Eu nunca estudei, mas faço muito gosto que meus filhos estudem”; podem ser um médico, um enfermeiro pra não cortar cana, limpar mato”; “Imagino que eles trabalhem numa loja comercial, num supermercado, numa repartição, num compartimento de tecido” (UFPE, DSS, Relatório Final do PETI, 2002, p. 54).

Pelas respostas dos pais entrevistados, nota-se que nenhum cita profissões vinculadas à área rurícula (como agronomia, zootecnia etc), que permitam aos filhos permanecer na zona rural. As escolhidas são

atividades exercidas no contexto urbano, as quais, para eles, oferecem melhor remuneração e exigem o cumprimento da escolaridade básica ou mesmo de nível superior. Além disso, garantem direitos trabalhistas nunca usufruídos: estabilidade, férias, salário fixo, aposentadoria, entre outros.

Isto se justifica, talvez, pelo fato de as famílias idealizarem tipo de trabalho para os filhos que rompa com as suas trajetórias de vida, particularmente quanto ao trabalho no campo e nas condições em que se realizam. Dessa forma, há uma verdadeira negação da sua realidade objetiva e uma crença na educação como redentora de mudança que apenas depende do acesso dos filhos ao saber escolarizado. Demais, numa conjuntura de grande desemprego e de precariedade nas relações de trabalho, reconhece-se o valor do estudo até mesmo para a inserção em postos de trabalho menos reconhecidos:

“Até para trabalhar na casa de uma pessoa, cuidar de um menino, tem que saber ler”; “O analfabeto hoje sofre. Quem sabe ler vai pegar um emprego melhor, para não estar na palha da cana... E depois, se não souber ler, nem mesmo na palha da cana vai conseguir”.

Portanto, há possibilidade desse ideário ser mobilizador de uma nova sociabilidade, pautada na superação do fatalismo da reprodução da pobreza e na esperança de que o conhecimento e a informação são componentes da mudança no horizonte de suas experiências cotidianas de vida.

Para as famílias, a situação dos filhos já demarca diferença muito grande com relação aos pais, que tiveram nenhuma ou raras oportunidades de ingresso e permanência na escola, em função do trabalho ou da inexistência de condições necessárias para o estudo, a exemplo de infra- estrutura, recursos humanos, transporte, entre outras. Repare nesses depoimentos:

“Eu não pude avançar depois da 4ª série porque tinha que ir para a rua”; “Se o marido e eu tivesse se formado, assim

eles não vão sofrer como os pais sofrem. Se na minha época eu tivesse tido essa ajuda...”

Para muitas famílias, o simples fato de seus filhos terem alcançado o primeiro grau completo já parece indicar trajetória diferente da sua, ou seja, a de cortador de cana, de trabalhador de casas de farinha, de pedreiras ou de qualquer atividade que exige o trabalho físico desgastante e insalubre. A participação das crianças na escola e na jornada ampliada, aprendendo e evoluindo nas letras e nos números, não deixa de trazer estímulos para as expectativas dos pais, alimentando o sonho de verem seus filhos desfrutar de condições diferentes das suas.

Dessa forma, a educação, para as famílias participantes, é o mais importante, senão o único meio de ascensão social, posto atribuírem as precárias condições de vida e de trabalho em que vivem ao fato de não terem estudado e, conseqüentemente, não lhes restar outra opção.

Para as famílias, a escola, além de possibilitar o acesso à cultura letrada, permite a aquisição de conhecimento ético e de regras de conduta pessoal para além de seus limites culturais. A escola também fortalece o senso de responsabilidade, ensina regras básicas de convivência e modos de conduta e de ação valorizados socialmente, porque são próprias das

pessoas educadas e bem comportadas, que sabem entrar e sair em qualquer lugar.

No entanto, o que percebi em muitos dos Municípios investigados, foi a visível falta de estrutura e qualidade das escolas, freqüentemente improvisando espaços para receber novos alunos. Diante desse problema, são criadas, por exemplo, classes multisseriadas (que aglutinam estudantes de diferentes períodos escolares em um só espaço), para desenvolver as atividades pedagógicas, o que tem prejudicado a qualidade do ensino público municipal. O Coordenador do Programa do Município do Cabo, em entrevista realizada na ocasião da pesquisa, argumentou que essa

situação não era a ideal, mas, dada a particularidade da área rural, marcada pelo distanciamento e precariedade das escolas que atendem a uma população de idades e níveis de conhecimentos diversos, naquele Município, as escolas estão organizadas em formato didático- administrativo reunindo múltiplas séries, múltiplos níveis de aprendizagem e múltiplas idades para atendimento em espaço e tempo único, o que justifica o nome de classes multisseriadas, para as quais existe uma proposta pedagógica específica, elaborada pela Secretaria de Educação do Município.

Mesmo com as precariedades das escolas e de seus métodos de ensino, considero que as famílias participantes não tardaram em perceber que o único meio de ascensão social para seus filhos é a educação, buscando romper a sua cotidianidade e passando a projetar um ideário para os filhos, um trabalho dignificante que trará futuro promissor. Esse processo de intensa motivação por um ideal, por projeto que convoca a inteireza das forças dos sujeitos, pode resultar no processo de suspensão do cotidiano, como expressa Heller (1987), que possibilita ganhos de consciência tornando o cotidiano mais enriquecido.

Outro processo de ganhos de consciência, lembrado por Thompson (1987), afirma que experiência percebida se explicita quando a maioria das famílias entrevistadas nega o trabalho infantil penoso e insalubre (socialmente condenado), contrariando a ideologia que ainda permeia os valores da sociedade capitalista, ou seja, que o trabalho precoce traz benefícios para a formação moral e educativa das crianças pobres.

A maioria das famílias pretende que seus filhos se dediquem aos estudos, mesmo cientes das dificuldades do projeto ser concretizado, seja por intermédio do PETI ou mediante outro programa social, já que o número de vagas, por exemplo, do Programa Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano mostrou-se insuficiente em relação à

demanda. Esse Programa se propõe a atender jovens de 15 a 17 anos possibilitando a sua permanência no sistema educacional para proporcionar-lhes experiências práticas que os preparem para a inserção futura no mercado de trabalho. Como os demais programas de assistência social no Brasil, ele é igualmente focalista, de caráter temporário, e atende jovens que vivem abaixo da linha de pobreza. Mesmo diante dessa cruel realidade, ouça o que dizem algumas famílias:

“Enquanto eu puder bancar, eles não saem de uma sala de aula”; “continuarão os estudos apesar das dificuldades”; “continuarão os estudos até enquanto a família puder sustentar”.

Assim é que as experiências das famílias participantes do PETI permitiram-me entender que é possível acontecer mudanças no que concerne ao surgimento de traços pontuais, da cultura de direitos revelada quando os pais expressam que a educação é direito para todos, possibilitando às famílias alimentar expectativas sobre uma vida futura mais promissora para os filhos. Thompson (1987) assinala que esse processo faz com que os sujeitos adquiram consciência social, criando possibilidades de transformações nas suas experiências cotidianas no momento em que articulam interesses comuns e traçam um ideário de vida. Como explicita Agnes Heller:

A vida cotidiana não está fora da história, mas no centro do acontecer histórico: é a verdadeira essência da substância sócia [...]. As grandes ações não-cotidianas que são contadas nos livros de histórias partem da vida cotidiana e a ela retornam. Toda grande façanha histórica concreta torna-se particular e histórica precisamente graças a seu posterior efeito na cotidianidade [...] (HELLER, 1977, p. 20).

A preocupação quanto à saída dos filhos do Programa mostra aos pais que pode ser interrompido o projeto de assegurar o estudo para os