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CAPÍTULO 4 O PETI E SUAS INFLUÊNCIAS NAS EXPERIÊNCIAS COTIDIANAS DAS FAMÍLIAS

4.1 Os impactos econômicos, sociais e culturais do Programa no cotidiano familiar.

Na introdução da tese, explicitei as motivações que me impulsionaram a estudar este tema, definindo os objetivos que proponho atingir, assim como os fundamentos teórico-metodológicos utilizados para problematizá-los. Assim, a finalidade principal deste estudo é conhecer as interferências do PETI nas experiências cotidianas e na formação da sociabilidade das famílias nas três regiões pernambucanas pesquisadas, e igualmente refletir sobre a sua repercussão na formação e constituição de nova cultura de direitos que negue o trabalho precoce como instrumento formativo e educativo de crianças pobres.

Para atingir esses objetivos, trabalhei os dados da pesquisa avaliativa do PETI da qual participei, no período entre 2000 a 2001, quando ele foi identificado como o Programa governamental que apresenta característica particular capazes de enfrentar a problemática do trabalho infantil penoso de crianças pobres, de negar a ideologia do aprender fazendo e de incluir a família como o principal foco de intervenção.

O dado que me chamou a atenção, durante a pesquisa, foi a identificação de traços incipientes, mas potencialmente promissores, da formação de nova cultura e sociabilidade das famílias beneficiárias do

Programa na medida em que passam a perceber o trabalho infantil penoso como instrumento negativo para a formação de suas crianças, negando a ideologia historicamente enraizada na cultura brasileira, que é o trabalho como meio de socialização e aprendizado da criança pobre.

No diálogo com Heller e Thompson, busquei os fundamentos teóricos para compreender as experiências cotidianas das famílias beneficiárias do Programa, procurando analisá-las não só como instância de reprodução das relações sociais, mas como processo de relações que possibilitam a homens e mulheres fazer escolhas, criar cultura e valores gerando disposição de agir como classe.

Nas interferências do PETI na vida das famílias beneficiárias, as principais mudanças evidenciadas no cotidiano dessas famílias dizem respeito ao aumento significativo da renda familiar (92,2%) ocasionada pelo recebimento da bolsa.

Isso demonstra, o quadro de miséria e agravamento das condições econômicas em que vivem essas famílias.

Os proventos recebidos pelas famílias vêm sendo, na maioria dos casos, destinados à satisfação de necessidades básicas que garantem a sua subsistência, possibilitando as condições necessárias para a permanência da criança na escola. Foi identificado aumento de consumo (42,5%), a melhoria nas condições nutricionais da família (10,8%), investimento na pecuária (1,4%) e na agricultura (0,4%). O aumento de consumo refere-se a gastos com gêneros alimentícios, vestuário e material escolar. O aumento nas condições nutricionais da família (10,8%), refere-se ao fato dos filhos passarem a se alimentar diariamente, na escola e na jornada ampliada, com os nutrientes necessários ao crescimento saudável da criança, bem como passavam elas também a se alimentar melhor. Eram poucas as famílias que investiam na pecuária (1,4%) ou na agricultura (0,4%). Na Mata Norte, em alguns municípios em que os gestores se comprometeram com mais rigor

com o Programa, algumas famílias investiram na criação de cabras, bezerros ou galinhas para complemento do orçamento familiar. Só 2,6% das famílias não perceberam mudanças, e isso talvez se deva ao fato do Programa garantir a elas a mesma renda que recebia quando a criança trabalhava.

Esses resultados demonstram, apesar do pequeno valor, as bolsas modificaram a vida dos municípios que receberam o Programa. No dia do pagamento, anunciado previamente nas cidades, o comércio se abastecia para a venda que crescia significativamente, segundo o depoimento do comerciante:

“No dia do pagamento do PETI a gente se sente na Feira de Caruaru”; “a gente desmancha oito sacas de trigo em vez de quatro”; “O pessoal que vem dos sítios recebe o dinheirinho e sai comprando de tudo”.

Quando indagados sobre possíveis mudanças no comportamento das

crianças e dos adolescentes no relacionamento familiar, os pais

observaram maior facilidade de comunicação entre eles e os filhos, melhoria no relacionamento entre os membros da família e entre pais e filhos, considerando-se o universo de 67,05%. Estes fatos são explicados em razão da melhoria no comportamento das crianças e dos adolescentes e da diminuição das preocupações diante das dificuldades financeiras.

As famílias reconheceram atributos positivos no comportamento dos filhos. Destacaram que os filhos estavam mais motivados para o estudo, mais atenciosos, mais obedientes e disciplinados, menos agressivos e demonstravam maior facilidade na comunicação. Afirmavam que o Programa estimula os filhos a manifestarem seus pontos de vista e suas vontades, sobretudo devido ao reconhecimento e afirmação do direito de estudar e à negação do exercício de algum tipo de trabalho. A resposta que

como causa a dificuldade de expressão das mães ou porque as mudanças foram pouco significativas ao ponto de não ter chamado a atenção dos pais. Algumas famílias indicaram ter ocorrido mudança de atitude com relação à educação e ao cuidado com os filhos, demonstradas no fato de não mais forçá-los a trabalhar e de evitar bater neles. De certa forma, esses valores foram adquiridos com o acesso às informações que começaram a fazer parte das experiências cotidianas das famílias, principalmente a partir da participação no Programa e na vida escolar dos filhos. Pode-se concluir que a intervenção sistemática de professores, monitores e coordenadores do Programa no que diz respeito aos direitos da criança e do adolescente vem repercutindo diretamente nas mudanças comportamentais dos membros da família. Outra justificativa da mudança de comportamento dos pais deveu-se, também, ao medo dos responsáveis de perderem a bolsa se não cumprissem a exigência legal que proíbe algum tipo de violência contra a criança e o adolescente.

Outra mudança identificada no cotidiano dessas famílias refere-se à

organização do trabalho familiar. A maioria dos entrevistados (51,1%)

afirmou não ter havido mudanças na organização do trabalho da família pois, em função da pouca idade, os filhos não tinham obrigações domésticas. Outras respostas que apresentaram percentuais mais significativos foram as que se referiram à diminuição da participação da criança e do adolescente no trabalho familiar (21,1%) e à sobrecarga de trabalho da mãe (15,1%) (UFPE, DSS, Relatório Final do PETI, 2002, p. 42).

Tabela 10 Mudanças na organização do trabalho infantil das famílias beneficiárias do PETI, na Região metropolitana do Recife, na Zona da Mata Norte e Mata Sul.

Mudanças na Organização do Trabalho Familiar

Região Total

R.M.R Mata Norte Mata Sul

N % N % N % N % Sobrecarga de trabalho do pai 11 3,8 12 3,8 9 3,1 32 3,6

Sobrecarga de trabalho para mãe 40 13,8 52 16,4 43 14,9 135 15,1

Redução de trabalho do pai 1 0,3 0 0 2 0,7 3 0,3

Redução de trabalho da mãe 7 2,4 15 4,7 9 3,1 31 3,5

Diminuição da participação da criança e do adolescente no trabalho familiar

57 19,7 84 26,5 48 16,7 189 21,1

Outros 3 1,0 21 6,6 8 2,8 32 3,6

Não houve mudanças em termos de diminuição de trabalho para as mães

167 57,6 131 41,3 163 56,6 461 51,8

Não sabe 4 1,4 2 0,6 6 2,1 12 1,3

Total 290 262,0 317 100,0 288 100,0 895 100,0 Fonte: UFPE, DSS, Relatório do Monitoramento e Avaliação do PETI/PE, Recife

Julho/2002.

As famílias expressaram que houve diminuição da participação das crianças e dos adolescentes no trabalho familiar. No entanto, além de estudar, as crianças e os adolescentes continuaram ajudando os familiares em atividades as mais diversas, tarefas da casa (lavar e enxugar os pratos, varrer a casa, cozinhar, lavar a roupa no rio ou em casa, apanhar lenha no mato e água na cacimba etc); as tarefas com os familiares (tomar conta dos irmãos menores, enquanto os adultos estão ocupados ou ausentes); tarefas com a plantação (ajudar os pais, avós ou tios no roçado, de milho, de

feijão, de mandioca, de limpa do mato etc); as tarefas com os animais (apanhar capim, buscar água etc).

Pode-se perceber que, em alguns casos, não houve a diminuição da participação das crianças no trabalho familiar, mas a (re) organização dessa participação na família. As crianças e adolescentes continuam a manter carga de trabalho, só que de forma a não prejudicar aos horários da jornada ampliada e do ensino regular na escola, conforme o depoimento de uma mãe:

“Acorda 5:30 h, bota água para o gado e vai para escola às 11:00h, pega capim e vai para jornada, à tardinha leva a cabra na casa da avó, que fica longe”.

Em algumas famílias, houve, efetivamente, a interrupção do trabalho das crianças, já que os pais vêm encontrando resistências da parte delas em realizarem as tarefas por eles indicadas:

“A criança não faz mais nada, diz que está aposentada já que hoje, ganha R$ 25,00.”

O comportamento dessa criança revela a apreensão de nova sociabilidade, de nova cultura, negando a ideologia do trabalho precoce quando expressa que está aposentado para o trabalho e o seu direito enquanto criança não é trabalhar, mas estudar, realizar atividades lúdicas, artísticas e culturais, sendo responsabilidade do Estado, da família e da comunidade a sua proteção.

Em outros depoimentos, a família relata a interrupção direta do trabalho remunerado da criança e do adolescente:

“Antes de entrar no PETI, ela raspava mandioca na casa de farinha comigo (depoimento da mãe); agora a gente não deixa eles (os filhos) fazerem nada porque as professoras mesmo dizem que não é para eles fazerem nada. Antes do PETI, eles rebolavam para viver, carregando até frete na feira.”

Cerca de 15,1% das mães responderam que houve sobrecarga no seu trabalho, pelo fato de elas não poderem mais dispor da ajuda dos filhos em determinadas tarefas a exemplo de plantar milho, feijão, mandioca, assim como preparar a terra, lavar a roupa, ajudar nas tarefas de casa etc.

Paradoxalmente, outras mães responderam que a participação das crianças e dos adolescentes no Programa não resultou em sobrecarga de trabalho algum, ao contrário, trouxe tranqüilidade na ocupação do seu tempo, redução do cansaço físico, quando afirmaram:

“Enquanto as crianças estão na escola eu posso procurar emprego; melhorou para fazer o serviço de casa; as crianças já vêm alimentadas e tomadas banho; o tempo que ele está na escola eu não tenho que ficar atrás dele na rua.” Resumindo, o conjunto de relatos sobre as influências do PETI na experiência cotidiana das famílias participantes demonstrou três ordens de mudanças: mudanças materiais, no comportamento das crianças e dos

adolescentes no relacionamento familiar e na organização do trabalho familiar.

Quanto às mudanças materiais, foram identificados o aumento no consumo de gêneros alimentícios, vestuário, material escolar e o aumento de renda. Em face do agravamento das condições econômicas das regiões pesquisadas, sabe-se que, fora o recebimento da bolsa, poucas famílias têm algum rendimento mensal e constante. Dos trabalhadores rurais das três regiões pesquisada, a maioria trabalha no plantio da cana de açúcar e não tem emprego ao longo de todo ano. Para essa maioria, a bolsa é o único rendimento.

No que se refere às mudanças no comportamento das crianças e dos

adolescentes no relacionamento familiar foi informado, nas entrevistas,

que as crianças estão mais motivadas para estudar, mais atenciosas, mais obedientes, disciplinadas, demonstram maior facilidade de comunicação e menos agressividades. Quanto às mudanças no comportamento dos pais,

foi verificado que há mais interesse no acompanhamento dos filhos, na escola, e principalmente se mostram menos violentos para com os filhos.

Quanto às mudanças na organização do trabalho familiar, foi estabelecida reorganização familiar para se adaptar à nova situação, que foi a obrigatoriedade dos filhos freqüentarem a escola em tempo integral, o que ocasionou a diminuição da participação deles no trabalho doméstico. A maior mudança verificada foi a interrupção do trabalho penoso e desgastante das crianças e adolescentes no plantio da cana de açúcar, no trabalho em casas de farinha e em pedreiras etc.

4.2 O trabalho infantil, educação e sociabilidade das famílias