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CAPÍTULO 3 FAMÍLIA, COTIDIANO E EXPERIÊNCIA

3.2 A experiência cotidiana como processo de formação da socialidade das famílias.

Para se compreender a dinâmica e o processo de reprodução dos homens particulares, é preciso observar a instância e o lugar em que estão inseridos.

Para Agnes Heller, essa reprodução se dá no cotidiano familiar que é o conjunto de atividades que caracterizam a reprodução dos homens particulares, os quais, por sua vez, criam a possibilidade de reprodução social (HELLER, 1987, p. 19). Para a autora, o homem nasce inserido em sua cotidianidade. O homem aprende no grupo (por exemplo, na família, na escola, em pequenas comunidades) os elementos da cotidianidade, como deve levantar e agir por sua conta; ou o modo de cumprimentar ou ainda como se comportar em determinadas situações etc. Assim, para Heller, as assimilações das coisas e dos comportamentos são sinônimas de assimilação das relações sociais, que se iniciam nesses grupos.

Heller (1987) mostra que é na esfera da vida cotidiana que se plasmam as relações sociais. Segundo a autora, as relações sociais são a substância da história, como a história é a substância da sociedade, não havendo, portanto, corte entre o cotidiano e a história.

Nesse sentido, o cotidiano é entendido pela autora como uma esfera muito particular da história, na medida em que configura o espaço onde se

dão as relações sociais, o espaço onde se desenrola a existência humana. A família tem um espaço, e um papel muito importante, pois é a instituição fundamental, segundo Heller, para o existir humano e para a objetivação do ser.

Assim, é na experiência cotidiana da família que o indivíduo coloca em funcionamento todos os seus sentidos, toda a sua capacidade intelectual, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideologias. Dessa maneira, são partes orgânicas da vida cotidiana, a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada etc (HELLER, 1987, p. 17).

Nesses termos, toda sociedade tem uma vida cotidiana e todo homem, seja qual for seu lugar ocupado na divisão do trabalho tem uma vida cotidiana. No entanto, isto não quer dizer, de nenhum modo, que o conteúdo e a estrutura da vida cotidiana sejam idênticos em toda a sociedade e para todas as pessoas (HELLER, 1987, p. 19).

Assim, a atividade individual é, poucas vezes, completamente individual. Em geral, é uma projeção das aspirações e dos interesses de uma camada ou classe. Até mesmo os:

Juízos de pensamento objetivamente representam os interesses da camada ou classe a que pertence o indivíduo e, desse modo, facilitam a esse a orientação ou a ação correspondente às exigências cotidianas da classe ou camada em questão (HELLER, 1985, p. 32).

Mas, o homem, segundo Luckács e Heller, não é só sobrevivência e singularidade. O homem é, ao mesmo tempo, singular e genérico. Apenas, na experiência cotidiana este ser genérico, co-participante do coletivo, da humanidade, encontra-se em potência nem sempre realizável. Portanto, a vida cotidiana, de todas as esferas da realidade (família, escola etc), é aquela que mais se presta à alienação.

Ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano- genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-genérica e a participação consciente do indivíduo nesta produção. O capitalismo moderno aprofundou este abismo desmesuradamente (HELLER, 1987, p. 38).

Luckács e Heller propõem algumas possibilidades de suspensão deste cotidiano alienado, através do trabalho, da arte, da ciência, da moral. Tais suspensões é que permitiriam a passagem do singular ao humano genérico.

Na suspensão (da heterogeneidade) da cotidianidade, o indivíduo se instaura como particularidade, espaço de mediação entre o singular e o universal, e comporta-se como inteiramente homem.

Quanto mais intensa é a motivação do homem pela moral, isto é, pelo humano-genérico, tanto mais facilmente sua particularidade se elevará (através da moral) à esfera da genericidade, ou seja, quanto maior é a importância da moralidade, do compromisso pessoal, da individualidade e do risco (que vão sempre juntos) a decisão eleva-se acima da cotidianidade e tanto menos se pode falar de uma decisão cotidiana (HELLER, 1987, p. 24).

No entanto, Heller coloca que não é possível distinguir, de modo rigoroso e inequívoco, entre as decisões e ações cotidianas e aquelas moralmente motivadas. A maioria das ações e escolhas tem motivação heterogênea; as motivações particulares e as genérico-morais encontram-se e se unem, de modo que a elevação acima do particular-individual jamais se produz de maneira completa nem jamais deixa de existir inteiramente, mas ocorre geralmente em maior ou menor medida. E conclui que não há uma muralha chinesa entre as esferas da cotidianidade e da moral (HELLER, 1987, p. 24-25).

Por isso Heller coloca que a suspensão não é fuga, é o circuito pelo qual se sai dela e a ela se retorna de forma modificada. A medida em que

estas suspensões se tornam freqüentes, a reapropriação do ser genérico é mais profunda e a percepção do cotidiano fica mais enriquecida.

Assim, o retorno após a suspensão supõe a alternativa de um indivíduo mais enriquecido e mais crítico, justamente porque alçou à consciência humano-genérica.

Netto, por sua vez, considera que a dialética cotidianidade/suspensão é a dialética da processualidade da constituição e do desenvolvimento do ser social (NETTO, 1987, p. 70).

Como podemos ver, a experiência cotidiana, além de ser o espaço de reprodução, alienação, é também o espaço de enfrentamento e possibilidades de transformação.

A interlocução com Agnes Heller (1987) possibilitou-me compreender a real dimensão do cotidiano, situando-o no espaço contraditório e complexo, no lugar de reprodução das relações sociais, mas, paradoxalmente, também no lugar de resistência e questionamento da realidade.

Assim, esse conceito, permitiu-me entender que é possível ocorrer mudanças no cotidiano das experiências de vida dessas famílias do PETI ou, até mesmo, no processo de intensa motivação, fazendo com que elas adquiram ganhos de consciência e possibilidades de viabilizarem transformações nos seus cotidianos. Esse processo, chamado de suspensão do cotidiano, impõe que os sujeitos mobilizem suas energias e avancem na compreensão de novos conhecimentos e consciência, que lhes possibilitem avançar na superação da reprodução das relações sociais.

A esse respeito, postula Thompson (1987) que a experiência sobre o cotidiano de vida reproduz as relações sociais em formações sociais concretas. No entanto, admite a convivência simultânea com outra experiência que possibilita a construção da consciência de classes.

Na sua formulação, a experiência é o elemento mediador entre as relações de produção e a consciência social. Indica a necessidade de ultrapassar a experiência vivida (o cotidiano) articulando experiência

percebida (a consciência) e estrutura.

Portanto, este autor reconhece que o processo de formação das classes é gerado nas experiências dos homens. Ele encara a experiência cotidiana como terreno de lutas de classes. Assim, reconhece que, numa sociedade de classe, a determinação estrutural não condiciona mecanicamente o agir humano, pressupõe a idéia de que se, por um lado, as estruturas objetivas têm efeito sobre a vida das pessoas, esses efeitos não são determinados aprioristicamente, mas dependem da forma como as pressões determinantes são manejadas pelas pessoas, a partir de sua cultura e de seus valores.

A noção de classe é uma das contribuições mais ricas de Thompson à tradição marxista, ao sustentar a idéia de que a classe é um conceito histórico e não apenas categoria sociológica estática. Propõe a releitura da noção de classe em si e classe para si em Marx, pois estabelece a distinção entre classe como categoria histórica e classe como realidade histórica. Para Thompson (1987), as classes são constituídas pelo conjunto de relações entre os homens e mulheres e as condições materiais de existência e de exploração em que se inserem; por relações de identidade estabelecidas entre membros da mesma classe; e por relações de aliança ou de conflito com outras classes. Portanto, existem através de relações e de antagonismos, que moldam suas identidades. Essas relações historicamente definidas são entendidas e trabalhadas em termos culturais (no sentido mais amplo do termo) compreendendo desde o habitus até a ideologia (não como falsa consciência, mas como visão de mundo).

Assim, a construção da noção de experiência de Thompson é inseparável da visão que o autor tem de classe.

No prefácio de Formação da Classe Operária Inglesa, Thompson escreve20:

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entrarem involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais” (THOMPSON, 1987, p. 10).

Nesse sentido, o autor vê a cultura como dimensão essencial na conformação da sociabilidade, como campo de expressão da alienação e da rebeldia, dos refúgios encontrados pelas classes subalternas para se preservarem do castigo do trabalho, presentes no seu universo simbólico e na organização da vida cotidiana. A cultura, sendo parte e expressão das forças políticas em luta pela hegemonia no seio da sociedade, em conjunturas históricas determinadas, contém elementos simultaneamente reprodutores e questionadores da ordem.

O conceito de experiência na perspectiva thompsiana permite que numa sociedade de classes se estabeleça a articulação entre objetividade e subjetividade, possibilitando ao homem, através das suas ações, fazer escolhas e, conseqüentemente, construir sua história.

Thompson (1987) também nos ajuda a compreender a relação dos trabalhadores com a dominação, que é relação ambígua e ambivalente, marcada tanto pela submissão e pela revolta, como pelo conformismo e resistência.

20

Esta discussão remete ao conhecimento da existência de determinação estrutural que não condiciona mecanicamente o agir humano enfatizado por Marx, em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, quando dizia: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas que se defrontam diretamente ligadas e transmitidas pelo passado” (Cf. BATALHA, 2000, p. 97).

Segundo Iamamoto é nos limites desta ambigüidade que se organiza a consciência na experiência da vida cotidiana. A ultrapassagem da ambigüidade dá-se a partir da teoria crítica da sociedade e da prática política que permitem avançar na apreensão dos fundamentos concretos da vida social (IAMAMOTO, 2001, p. 98).

Nesses termos, o que se observa nos discursos das famílias é o envolvimento dos responsáveis no desempenho escolar dos filhos, a satisfação de ver os filhos freqüentarem a escola em horário integral, coisa nunca vista no meio rural; de atribuírem à escola o principal meio de superar a precariedade das atuais condições de vida e trabalho através do ingresso dos filhos em profissões que garantam salário. Um outro aspecto importante é que para as famílias a escola, além de possibilitar o acesso à cultura letrada, permite aquisição de conhecimento e de regras de conduta pessoal.

Para Heller (1987), essa motivação por um ideário é a possibilidade de suspensão do cotidiano dessas famílias, pela qual a sua motivação particular se elevará à esfera da genericidade, ou seja, o sujeito se instaura como particularidade, espaço de mediação entre o singular e o humano- genérico, e comporta-se como inteiramente homem no exercício da cidadania. Isso não quer dizer que as famílias se tenham apropriado da realidade, avançado na compreensão de novos conhecimentos e consciência. Na verdade, através dos depoimentos, encontram-se colocações de forma paradoxal na medida em que, a um só tempo, reconhecem que o Programa media o exercício de direitos sociais, humanos e de princípios éticos, tal como o direito à infância protegida, à educação, à renda mínima de subsistência. Também se apóiam na ideologia da ajuda e do agradecimento personalizado nas figuras dos prefeitos e governadores e nas crenças religiosas conforme se observa na fala de uma das entrevistadas:

“Eu agradeço primeiramente a Deus, depois ao Presidente da República e ao Prefeito por estar no PETI”.

Essa ideologia reflete a cultura enraizada historicamente no Estado e na sociedade, que legitima o autoritarismo e a tutela dos dominantes e a subalternidade dos dominados. Com a ausência das condições materiais, de trocas culturais e sem acesso a serviços de educação, lazer e cultura, as famílias possuem poucas informações e ferramentas para romper com sua identidade de excluídos. Disso tratarei no próximo capítulo.

CAPÍTULO 4 O PETI E SUAS INFLUÊNCIAS NAS EXPERIÊNCIAS