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EDUCAR OU CIVILIZAR: QUAL O PAPEL DA ESCOLA DE INSTRUÇÃO ELEMENTAR?

No documento EHPS Leonete Luzia Schmidt (páginas 185-190)

CAPÍTULO VI JOÃO JOSÉ COUTINHO E OUTROS ATORES

MATERIALIDADE DAS ESCOLAS DE PRIMEIRAS LETRAS EM SANTA CATARINA

4.3 EDUCAR OU CIVILIZAR: QUAL O PAPEL DA ESCOLA DE INSTRUÇÃO ELEMENTAR?

Através dos jornais que circulavam na cidade, editores, que geralmente eram integrantes da mesma elite que compunha os quadros do governo provincial, opinavam sobre a instrução mais apropriada para os pobres e para os ricos. No jornal O Mensageiro, de tendência liberal, publicado em Desterro na década de 1850, há um texto ilustrativo referente a esta questão:

Quando desejamos, por exemplo, que os homens destinados para a lavoura, para as artes fabris, para os vários misteres da sociedade saiba m ler (grifo do autor), não queremos que eles se habilitem para ler muitos livros, para gastar nisso a vida, para serem grandes letrados: não pretendemos encher o mundo de sábios e eruditos. (..) o nosso fim é tão somente que cada indivíduo tenha os meios de empregar com maior proveito seu e da sociedade, as faculdades que Deus lhe concedeu; (...) os meninos que freqüentam as escolas elementares, terão desde logo a grande utilidade de livrar-se da ociosidade, da distração e dissipação do espírito dos perigos de uma vida vaga e desocupada, da inclinação ao jogo e aos folguedos tumultuosos daquela idade. (...) a simples instrução de ler, escrever, e contar para os meninos pobres, desenvolve suas faculdades e lhes dá um certo grau

de cultura moral. Os meninos que freqüentam a escola dão o primeiro passo para o amor da religião.278

Essa distinção entre a educação do rico e a do pobre apresentada no jornal é representativa da mentalidade ilustrada e liberal dos dirigentes do país nas primeiras décadas após a proclamação da independência do Brasil. Conforme Hilsdorf, os traços dessa mentalidade “são responsáveis por um movimento racionalista em direção às massas, com duas características – uma responsabilidade pública, em vez de atribuição exclusiva das Igrejas, e ser ativo, no sentido de ir ao encontro dos pobres e infelizes para assisti-los e educá-los”.279

A preocupação com a preservação da ordem social estabelecida criava a necessidade de difundir a idéia, entre a população, das vantagens de uma escola diferenciada para os pobres, como pode ser visto em outra parte do mesmo artigo:

Temos visto pessoas, aliás sensatas, recear a propagação do ensino popular, por um bom estranho motivo. – Dai educação (dizem eles) ao filho do artífice, de um agricultor: ele deixará logo a profissão de seu pai. Quando a instrução se fizer comum, ninguém quererá exercer ofícios humildes e laboriosos. Se um homem rico (por exemplo) chamar a sua casa o filho do seu feitor, ou de um oficial pobre, o mandar educar com seus próprios filhos, o fizer trajar vestidos ricos e preciosos, lhe fizer aprender as línguas cultas, e as artes do luxo, naturalmente parece que o menino venha por tempo desdenhar o estado, a vida, o ofício do seu pai, que lhe seja penoso e repugnante lançar mão à enxada; que se não julgue igual, mas superior aos seus vizinhos, e até que venha a desejar e a pretender empregos elevados. Mas se aquele homem rico deve ter uma generosidade mais ilustrada; se em lugar de dar ao menino pobre uma educação brilhante, mais perigosa, estabelecer na sua Aldeia uma escola elementar, a que possam concorrer todos os meninos pobres, onde não se

278

SANTA CATARINA, jornal O Mensageiro, p.3.c.1 e 2, de 23 de fevereiro de 1856.

279 HILSDORF, Maria Lúcia Spedo. Cultura escolar/ Cultura oral em São Paulo (1820-1860). In: VIDAL, Diana Gonçalves, HILSDORF, Maria Lúcia Spedo (org.). Brasil 500 anos: Tópicos de História da Educação. São Paulo: Edusp, 2001, p. 70.

ensine estudos supérfluos, mas que recebam princípios religiosos, idéias e máximas morais, regras de bons e virtuosos costumes; todos aprenderão a ler, escrever e contar. Todos respeitarão as leis civis, religiosas e obrigações domésticas: nada os incitará a abandonar o ofício de seus pais, nada concorrerá para alterar essa igualdade que se deseja conservadora.280

Escola era preciso, mas teria que ser diferenciada para as crianças pobres, pois o conhecimento poria em xeque a permanência delas junto com os seus e as levaria a reivindicar posições até então asseguradas a um determinado grupo. A insegurança em relação à perda de privilégio fazia com que liberais e conservadores tivessem entendimento semelhante quanto ao tipo de educação escolar oferecido às crianças.

Para esse editor a educação proveitosa e perfeita deveria estar adaptada a cada povoação e a cada nível social. Sendo assim, a escola poderia e deveria existir, mas quando fosse direcionada à população pobre seria muito mais um espaço de formação de princípios morais, éticos, religiosos, do que um espaço de aprendizagem de conteúdos. As crianças que passassem pela escola deveriam aprender a respeitar as instituições do Estado, a pessoa do Imperador, as leis do Império e os princípios morais vinculados à religião católica.

Esses princípios anunciados eram garantidores da ordem e da tranqüilidade pública, portanto suficientes para os pobres. Daria a eles a noção de onde viviam e a quem deviam obediência e respeito e que valores morais e éticos seguir. Os conhecimentos para além disso eram destinados a poucos, àqueles que precisavam de uma educação distinta para seguir carreira especial, conforme outro jornal publicava:

(...) diversas são as profissões que os homens abraçam, e daí vem que a educação divide-se forçosamente em científica e em popular. A educação popular abrange quase todas as classes da sociedade, e todos os conhecimentos que competem à maioria dos cidadãos, é por isso a mais importante. A científica ou literária é só para limitado número dos que seguem carreiras especiais.281

Segundo Schafascheck, “o advento da ciência anunciava a possibilidade de progresso e, ao lado deste, colocava-se para a elite a necessidade de conservar a ordem. A partir daí, propunha-se a dualidade do ensino como garantia de generalização da instrução com manutenção das desigualdades”.282

Nessa discussão sobre a dualidade da escola, a imprensa jornalística desterrense busca o modelo de educação francesa como exemplo do que pode e do que não pode ser aplicado aqui, se não se quiser correr o risco de formar bárbaros e perturbadores da ordem.

Nos jornais de Desterro há uma série de artigos sobre as reformas de ensino ocorridas na França, tanto sobre a resultante da revolução de 1789 como a de 1833, promovida por Guizot283. O primeiro artigo escrito pelo Juiz de Direito de Desterro Manuel da Silva Mafra traz um relato sobre a organização do ensino na Europa e dos cuidados que este merece daqueles governos. Relata também a missão delegada a Victor Cousin, em 1831, pelo Ministro da Instrução Pública e dos Cultos, da França, de estudar a instrução pública da Alemanha, Prússia e Holanda e apresentar

281 SANTA CATARINA, jornal A Revelação, n. 9, p.2, c.1, 14/05/1852, Apud Schafascheck, op.cit, p.132. 282 SCHAFASCHECK, op.cit, p.132.

283 Guizot, François Pierre Guillaume (1787-1874). Político e historiador, defensor de idéias monarquistas e conservadoras. Um dos militantes do orleanismo e da Revolução de Julho de 1830, tornando-se Ministro da Instrução Pública da França de 1932 a 1937. Chefiou diferentes ministérios como representante dos conservadores, ocupando o cargo de Primeiro-Ministro da França entre 19 de setembro de 1847 a 23 de fevereiro de 1848.

um relatório detalhado sobre aqueles sistemas de ensino. Para Mafra, Cousin era um dos “maiores sábios” da França e “o maior dos filósofos do século”.284

No jornal liberal O Cruzeiro do Sul, num artigo dividido e publicado em partes nas edições nº 77, 78 e 79, em 1858, o editor mostra, entre outras coisas, que a reforma de ensino na França que instituiu outrora o ensino único, “um ensino que não era posto em relação com a posição na qual o menino era nascido, nem com a carreira que deveria percorrer, havia incitado esperanças e ilusões, criando transtornos à ordem do país”.285 E o maior problema de todos estava na ausência da religião.

Um dos grandes defeitos da instrução refinada, e da civilização quase excessiva da França, é de ter feito desaparecer o sentimento religioso, à proporção que a inteligência se desenvolvesse a instrução primária particularmente, sérvio de propaganda ao espírito de revolta, porque tem ela negligenciado de apresentar-se debaixo dos auspícios da religião.286

A discussão do modelo educacional francês era questão presente com regularidade nos periódicos impressos em Desterro, na segunda metade da década de 1850. A preocupação maior era mostrar os estragos que os princípios revolucionários haviam criado na educação francesa. A maioria dos professores franceses estava imbuída destes princípios; sendo assim, “todas as fontes onde as novas gerações irão beber a vida intelectual estavam envenenadas por antecipação!"287 Por isso, o editor chamava a atenção para a importância da moralidade religiosa dos professores

284

SANTA CATARINA, O Conservador, Ano IV, n.861, p.1, c.1 , 05/10/1855. 285 SANTA CATARINA, O Cruzeiro do sul, ano I, p.3, c. 1, 09/12/1858. 286 Ibidem.

primários, considerando que “as impressões da infância nunca se apagam”.288

Esta discussão sobre a educação francesa veiculada na imprensa desterrense parece direcionada ao presidente da província. Primeiro porque Manuel da Silva Mafra diz que as dificuldades presentes na instrução elementar da província não estavam relacionadas ao método nem à pouca aptidão dos professores, conforme havia mencionado Coutinho em seu relatório do ano anterior. Segundo, porque cuidaram de publicar no jornal o capítulo I do livro do Daligault, “Dignidade das funções do preceptor primário”.

4.2 AS ESCOLAS DE PRIMEIRAS LETRAS NAS COLÔNIAS ALEMÃS

No documento EHPS Leonete Luzia Schmidt (páginas 185-190)