• Nenhum resultado encontrado

A postura firme diante das divergências

No documento EHPS Leonete Luzia Schmidt (páginas 64-73)

CAPÍTULO I FORMAÇÃO ACADÊMICA, TRAJETÓRIA PROFISSIONAL E POLÍTICA, E REDE DE

1.2 JOÃO JOSÉ COUTINHO EM SANTA CATARINA: DAS RELAÇÕES ÀS TOMADAS DE POSIÇÃO FRENTE AOS

1.3.1 A postura firme diante das divergências

Algumas das relações que Coutinho estabeleceu durante o período em que esteve governando Santa Catarina não eram bem vistas pelos

81 Ibidem, Ano II, n.72, p. 4, c. 3, 29/03/1854. 82 Ibidem, Ano I, n. 32, p.4, c. 1, 22/06/1853.

membros do partido Conservador. Uma delas era com Frederico Müller ou Fritz Müller, um alemão nascido em 1822 que havia chegado ao Brasil, na colônia Blumenau, em 1852 e que fora convidado por Coutinho para ser professor do Liceu. Conforme pesquisas de Schardong, Müller era filho de pastor protestante e neto de um químico muito conhecido naquele país. Era doutor em Filosofia pela Universidade de Berlim, médico naturalista, ateu e defensor de idéias liberais. Em Santa Catarina desenvolvia pesquisas sobre crustáceos, as quais deram origem a 248 trabalhos científicos e que culminaram na elaboração, em 1863, do livro “Für Darwin” sobre a evolução das espécies. Correspondia-se com inúmeros naturalistas renomados da época, entre eles Darwin, que o denominou de príncipe dos observadores83.

Müller tinha uma história de militância política desde os tempos de estudante, conforme pôde ser observado na carta de um colega anos mais tarde:

A respeito dos estudantes de Greifswald, onde figurava Fritz Müller como líder, escreveu Oehlschlaeger em 10-10-1897: "Fundamos uma Sociedade Antiduelo (Antiduellverein) e, conforme o modelo comunista, uma sociedade de crédito mútuo (Wechselsteuerverein), que progressivamente igualasse as grandes diferenças; foi organizada uma sala d e leitura, na qual, ao lado de jornais de livre pensamento encontravam-se os escritos mais novos e de livre pensamento, como os escritos de Bruno e de Edgar Bauer, as obras de Feuerbach e Strauss, de Max Stirner "O indivíduo e sua propriedade" (Der Einzige und sein Eigentum), de Biedermanns "O presente e o futuro" (Gegenwart und Zukunft), os escritos do comunista Marx. A esta associação estudantil pertenciam cerca de 60 estudantes, o que no conjunto de uma universidade de 180 representavam bastante. Uns 16 mais intimamente ligados por amizade fechavam-se em uma sociedade mais estreita sob a inocente

83 SCHARDONG, Rosmeri. A instrução secundária em Desterro – O Atheneu Provincial (1874 -1883), Florianópolis, UFSC, Dissertação de Mestrado, 1997.

denominação de "Coroazinha" (Kraenzschen). Fritz Müller era membro desta sociedade e logo pelo seu caráter resoluto um dos seus líderes.84

Müller havia sido apresentado a Coutinho pelo Dr. Blumenau, fundador da colônia Blumenau. Este, que tinha a intenção de edificar uma colônia profundamente religiosa, ficou com medo de que as idéias materialistas e irreligiosas de Müller fossem influenciar os colonos e, por isso, procurou afastá-lo:

Blumenau, que exultara quando o sábio veio para a colônia, uma figura já conhecida e respeitada no mundo científico, verificou com tristeza, pouco depois, que as idéias materialistas de Fritz eram muito perniciosas ao seu estabelecimento. E quando teve notícias da fundação do Liceu Provincial, interessou-se junto a Coutinho para que Fritz Müller fosse convidado a fazer parte do corpo docente.85

A relação de proximidade entre Müller e Coutinho pode ser percebida na leitura de uma carta biográfica que Fritz Müller escreveu para seu amigo Dr. Peter Vogel em Munique86 . Nela, Müller por várias vezes refere-se ao presidente Coutinho com respeito e admiração pelo que fez pela província. Com respeito ao convite que recebera para lecionar no Liceu, Fritz Müller diz que “acima de tudo me agradou a pessoa do

Presidente cujo caráter simples e despretensioso contrastava

agradavelmente, por um lado, com a burocracia prussiana, e por outro lado, com a cordialidade vazia dos brasileiros”.87 Em outro trecho diz que

84 www .cf h.uf sc.br/~ simpozio/Catar ine nse/ FRITZMU L

85 SILVA, J. Fereira da. Fritz Mueller e o presidente Coutinho. In: Blumenau em Cadernos, Tomo I, n. 8, junh/julh 1958, p. 143.

86

Esta carta biográfica foi publicada na íntegra na revista “Ausland”, uma revista semanal de Geografia e etnologia, de Stuttgart, Alemanha, n. 40, Ano 65, 1892, p.631-634. Foi traduzida pela Sra. Brigita Schmidt Humpel e publicada no Blumenau em Cadernos, Tomo 24, n. 25, maio de 1983, p. 129-136.

Coutinho “encontrou a caixa provincial em situação precária, mas em pouco tempo conseguiu colocá-la em ordem”.

Essas atitudes de Coutinho, membro do partido conservador, de preservar pessoas do partido liberal nos cargos públicos, mas principalmente trazer Fritz Müller para o único colégio secundário da província, podem, além do propósito de conciliação entre liberais e conservadores, ser indício de seu comprometimento com os ideais de constituição de um Estado Nacional Moderno. Ao mesmo tempo que buscava caminhos para a harmonização de grupos opositores na província, o germe da ciência, alicerce do desenvolvimento, ia sendo implantado na educação desterrense. Além disso, como na Alemanha, naquele momento, a educação escolar pública e gratuita já estava servindo de exemplo para outros países, talvez a aproximação de Coutinho com Müller e demais alemães que chegavam a Santa Catarina fosse também por reconhecer a importância do sistema de ensino daquele país e para buscar conhecê-lo. Fiori, apoiada nos estudos de Eby, mostra que a Prússia tinha um sistema de ensino orientado especialmente para inculcar os ideais nacionais e que “tornou-se um modelo considerado digno de ser seguido; um paradigma desejado por todos os países. A França logo mostrou que buscava, no modelo alemão de ensino, uma solução para as suas questões”.88

Segundo Fritz Müller, Coutinho dedicava atenção especial ao Liceu. O presidente assistia à maioria das aulas, principalmente nos primeiros tempos de funcionamento da instituição. “Quando certa vez

88 FIORI, Neide Almeida (org.) Etnia e Educação: uma escola “alemã” do Brasil e estudos congêneres. Florianópolis: Ed. da UFSC; Tubarão: Ed. Unisul, 2003, p. 247.

falamos sobre lulas, logo no dia seguinte ele me mandou um argonauta que ele pessoalmente anos atrás havia colecionado no Rio de Janeiro”89.

O empenho em fazer algo pela educação da província e a estreita relação que Coutinho mantinha com Fritz Mueller podem ser percebidos em outro momento da carta: “Quando eu falei ao Presidente que eu gostaria muito de lecionar Física e Química aos alunos mais adiantados, ele logo providenciou verba em dobro do que eu havia pedido”90.

Além de Müller, outro alemão, Dr. Ricardo Becker, também era pessoa de prestígio para o presidente Coutinho; além de professor do Liceu Provincial, foi nomeado por Coutinho diretor da instituição. Becker também era imigrante de Blumenau e protestante luterano. Com Dr. Blumenau, porém, Coutinho se restringia a relações cordiais.

Nesse mesmo período, Coutinho tinha como seu maior adversário na política e na educação em Santa Catarina o padre Joaquim de Oliveira e Paiva, mais conhecido como Pe. Paiva, que era um representante do clero secular e do antigo partido Cristão. Paiva foi deputado provincial por várias legislaturas pelo partido Conservador, era professor e, durante alguns anos da década de 1850, dirigiu o Colégio de Belas Letras, de sua propriedade. Pouco tempo depois da chegada de Coutinho à província, os dois começaram a ter desavenças e, mesmo sendo filiados ao mesmo partido político, o padre escrevia uma coluna no seu jornal onde fazia críticas severas ao governo e à pessoa de Coutinho. O padre combatia, com veemência, a presença de pessoas voltadas à ciência e pertencentes a outras

89 Blumenau em Cadernos, Tomo 24, n. 25, maio de 1983, p.133. 90 Ibidem, Tomo 24, n. 25, maio de 1983, p.133.

confissões religiosas, enquanto que Coutinho os incluía nas atividades ou funções a serem desenvolvidas na província.

Outro estrangeiro com quem Coutinho mantinha relações estreitas era Louis François Leonce Aubé, representante do príncipe francês François Ferdinand Philippe Louis Marie, casado com a princesa brasileira Francisca Carolina, filha de D. Pedro I. Aubé era responsável por cuidar das terras dotais do príncipe e por firmar contrato de colonização com o senador alemão Christian Mathias Schoroeder. Por cuidar das terras do príncipe, Aubé mantinha relações estreitas com a família imperial na Corte brasileira.

Outro homem forte da província na época de Coutinho era Jerônimo Francisco Coelho, que, mesmo sendo filiado e defensor do partido Liberal, não apresentou entraves para a administração de Coutinho; muito pelo contrário, foi favorável à manutenção deste no cargo da presidência de Santa Catarina quando ele (Jerônimo Coelho) havia sido indicado para assumi-la em 1856 e se dispôs a assumir a presidência da província do Rio Grande do Sul.

Além de Jerônimo Coelho, outro liberal de quem Coutinho se aproximou foi Marcelino Antônio Dutra, um homem simples, “matuto”, que se tornara professor de primeiras letras de Desterro na década de 1830, depois deputado provincial e, com o apoio de Jerônimo Coelho, escreveu um livro de poesias, “A Assembléia das Aves”, já referido neste capítulo. Dutra travava acirradas discussões através dos jornais com os conservadores, principalmente com o padre Paiva. Coutinho, sempre que

havia concurso para professor de primeiras letras, chamava-o para participar como membro da banca examinadora.

As intrigas políticas eram matérias constantes nos periódicos91 existentes na província. Em muitos momentos, havia um jornal oficial e o outro de oposição ao governo. As maiores críticas que apareciam nesses jornais ao presidente Coutinho eram, como afirmei anteriormente, oriundas de pessoas filiadas ao mesmo partido dele – o Conservador. Muitas vezes, as defesas a Coutinho eram feitas por membros do partido opositor, ou seja, pelos liberais:

O periódico Conservador tem por vezes procurado ferir a reputação administrativa de S. Exª. o Sr. Dr. Coutinho, atual Presidente desta Província, com artigos e motejos sem dúvida impróprios da imparcialidade que deve seguir um escritor ilustrado, que se preza de honesto; a reputação porém de S. Exª. como Presidente acha-se tão bem firmada; e colocada sobre bases tão sólidas, que tudo quanto o contemporâneo e seus adeptos possam dizer contra S. Exª. serão de certo – clamores sem eco. Se nos guiássemos pelo mesquinho espírito de vingança, talvez por motivos pessoais, nos devêssemos também declarar inimigos da Administração de S. Exª., e não obstante nossa humilde posição, procurássemos fazer-lhe a guerra: felizmente nossos sentimentos são outros, e temos por princípio – dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.

A presidência do Exmo. Snr. Dr. João José Coutinho tem sido de muita vantagem à Província; porque S. Exª. como é inegável, só tem procurado melhorar o seu estado material: contra fatos não há argumentos: a província vê-se hoje desafrontada da enorme dívida que sobre ela pesava há

91

A imprensa jornalística aparece em Santa Catarina em 1831 com a publicação do jornal “O

Catharinense”, de propriedade de Jerônimo Coelho, o primeiro jornal impresso na Província. Na mesma

tipografia surgiram vários outros periódicos, como o Expositor, o Benfazejo, além de uma série de folhetos e panfletos literários, religiosos e políticos, que concorriam para a difusão das novas idéias. Porém, pouco duraram estas publicações e, ao que tudo indica, somente em 1845 surgiu, com o Relator

Catharinense, novo órgão da imprensa, seguido, no ano de 1849, do Conciliador, editado por Emílio

Grain, defensor do Partido Judeu.

Entre 1850 e 186091 apareceram as seguintes publicações: em 1850, o Novo Íris, que em 1852 passou a chamar-se O Conservador; em 1852, o Correio Catharinense, de tendência liberal; em 1855, também liberal, O Mensageiro, permanecendo até 1857; no ano seguinte, 1856, surgia O Argos, dirigido por J.J.Lopes, que teve vida longa. Órgão conservador, em 1861 passou a ser editado diariamente de modo pioneiro. Em 1858, surgem o Cruzeiro de Sul, de tendência liberal, e o Botafogo e o Santelmo, ambos de tendência conservadora.

imensos anos, e em seus cofres, devido sem dúvida ao tino e conhecimento administrativo-econômico de S. Exª. existe, segundo nos consta, a pingue quantia de 11 contos e tanto! Como estes, outros serviços tem feito S. Exª. à província. Aí temos o Quartelamento do Campo do Manejo, essa obra majestosa e que tanta honra faz aos nossos antepassados, que desmoronado e quase de uma vez destruído, tantos e tantos contos de réis se tem nele gasto sem se levar a efeito sua reedificação, e que hoje existe no estado que se vê; aí temos essas duas estradas de Lages, que hoje quase em perfeito estado de transito e &c. &c.; negá-los, bem como as boas intenções que nutre S. Exª. importa nada menos do que dizer- se – somos injustos, respiramos somente raiva, rancor e ódio.92

A intriga que o padre Paiva nutria contra Coutinho parece estar relacionada à religião. Algumas das pessoas com quem Coutinho passou a conviver eram protestantes ou, no caso de Müller, ateu. E, segundo Pauli, o padre Paiva ao publicar seus "Ensaios Oratórios na Tribuna Sagrada" (1862) fez menção aos desvios da Filosofia em nossos tempos, fazendo referência à presença de Fritz Müller e de outros intelectuais avançados que se reuniram na Capital de Santa Catarina ao tempo em que funcionava o Liceu Provincial93. Por outro lado, o padre Paiva era do grupo dos Livramentos que, por sua vez, travavam sérias disputas com Coutinho por este não seguir suas determinações.

Percebe-se, a partir das informações encontradas, que Coutinho ao mesmo tempo que procurava seguir a política determinada pelo poder central, de centralização do poder e fortalecimento do governo geral, encontrava dificuldades na província principalmente junto daqueles que deveriam dar sustentação às suas ações. Os interesses locais eram

92 SANTA CATARINA. Correio Catharinense, Ano II, n.59, p. 3, c.1 e 2, Quarta-feira, 28 de dezembro de 1853.

93

PAU LI,Eva ldo, tese aprese ntada e apr ovada, no V III Con gres so Inte ra mericano de Filosofia, reunido em Brasília, em 29 de novembro de 1972, e impressa nos respectivos Anais, reimpressa em 1973, pela Fundação Casa Dr. Blumenau, Disponível em: www.cfh.ufsc.br/~simpozio/Catarinense/FRITZMUL

prioritários para os seguidores de Paiva. Contrariando interesses de seus correligionários, João José Coutinho criou vínculos com pessoas independentemente de partido político e tentou colocar em prática ações que tudo indica estavam articuladas com os interesses do governo central.

A formação acadêmica, funções exercidas no Rio de Janeiro após a conclusão do Curso de Bacharel em Direito e as relações estabelecidas durante toda essa trajetória certamente contribuíram para a introdução, em Santa Catarina, de novos elementos civilizadores na cultura desta província, entre eles a criação da biblioteca pública e de um colégio público secundário, dos quais trataremos no próximo capítulo.

No documento EHPS Leonete Luzia Schmidt (páginas 64-73)