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7. FORMAÇÕES DE PROFESSORES E A ARTE DE UM FAZER(SE) EM

7.2 A arte de um fazer(se) em intervalos

7.2.2 Efeito de vertigem: tempo de recomeçar

A oralidade é como abrir sulcos no ar (LARROSA, 2004, p. 43).

Este segundo tempo possui este título em função de apresentar dois movimentos importantes e delimitantes no rumo da discussão, apontando nitidamente dois giros, ou pontos de torsão, surpreendentes no processo do grupo justamente pela intensidade com que essas viradas acontecem no discurso no que se refere a dois posicionamentos específicos do grupo.

O primeiro deles trata-se de uma ressignificação do ser professor e o segundo de um reposicionamento frente aos lugares de aluno e de professor.

O que podemos destacar por agora do conceito de efeito de vertigem trabalhado por Pereira (2008) é a idéia de torsão, pontos de passagem e rompimento de uma continuidade. Também as origens do termo vertigo, que indica deslocamento, movimento; movimento de rotação, giro, tontura. Da derivação do verbo latino vertere: voltar(se), desviar, mudar, traduzir. A autora então descreve o

efeito de vertigem como um “deixar-se aspirar pelo abismo, pela entrega; um abandono comandado pelo fascínio que aliena” (p. 60); no qual o homem é tomado pelo lado que causa seu temor sem nenhuma espécie de luta.

Partindo desse conceito considerado fundamental para acompanhar este segundo momento do processo do grupo, vamos apontar a fala que marca o primeiro ponto de torsão:

Tem que trabalhar mais intensamente a tua vontade de ensinar, teu espírito de ir atrás... Por que eu vejo assim... Fiquei assim até, como eu posso te dizer, surpresa com a atitude da professora que eu tô orientando. Ela tem um engajamento social grande, ela pega meninos na praça, esses meninos de rua, ela leva, ela vai na escola, faz matricular, leva pai, leva mãe, dá escova de dente, dá tudo sabe, se mexe pra isso. E na sala de aula, é bem o que a gente tava falando daqueles “alunos-problemas”... Os que estão prontos, ela diz ‘estão prontos, eu vou chegar aqui e eles estão prontos de casa, eu vou passar o negócio, ele vai copiar, eu vou passar a atividade, ele vai corrigir’, sabe?! (...) Então ela tá pegando naqueles assim ó, que estão com os problemas, sabe: “Ah, tu não veio ontem, por que tu não veio ontem? Eu posso ligar pra tua mãe pra saber se o que tu ta me falando é verdade? Ou tu voltou lá pra praça pra vender droga?”; é... “Tu não fez a tarefa porque tu esqueceu o livro aqui ou porque tu deixou o livro de propósito pra não ter que fazer as coisas?”. (...) E eu vejo assim, faz vinte e oito anos que ela tá no magistério e ela não abriu mão disso, sabe. Ela não perdeu o gás e ela não ganha bem, ela não tem celular, ela vai de ônibus, ela caminha oito quadras pra ir até a parada, depois mais pra descer na casa dela e todo dia ela ta lá, ainda vai pra praça, faz isso, faz aquilo, sabe. É uma pessoa super engajada. E eu acho que com isso ela conseguiu, como eu posso dizer... O maior salário da vida dela, sabe, porque ela é realizada com aquilo, com os quatrocentos reais que ela ganha, porque ela tá mudando um monte de gente, ela não perdeu o gás por causa disso. Foi o que ela disse: ‘Se no momento que eu visse que não ia ter resultado...’, ela ia ter desistido. Mas tá vendo resultados assim, incríveis, sabe. Teve aluno dela que entrou na universidade, sabe. Então... o cara tava vendendo droga na praça há quinze anos atrás e agora tá na universidade, sabe.

Para além do conteúdo da fala, o que nos interessa aqui é o movimento de torsão que ela representa, um movimento de ressignificação do ser professor, no qual esse fazer é, pela primeira vez desde o início das discussões, visto de uma forma diferenciada das anteriores, talvez uma visão mais romântica ou talvez mais realista... Mas de qualquer forma, apontado de um outro lugar. Um lugar que tropeça no desejo, que faz emergir a responsabilização por uma escolha que, independentemente de ser qualificada como boa ou ruim, carrega o peso das conseqüências dessa. Essa fala subjetiva o ser professor, coloca em cena o desejo, o “gostar do que faz”, questiona os “resultados” e as próprias dificuldades discutidas

exaustivamente há pouco. Amplia a dimensão e a significação do retorno social, ou seja, a professora é realizada com o que faz mesmo ganhando pouco, esse é o “maior salário da vida dela”.

É preciso que se faça um rompimento inaudito da formação, permitindo que se escute, no âmago do processo formativo, um sujeito do desejo. O mais significativo a ser apontado na tradição pedagógica é a dimensão de uma educação formativa e humanizante baseado nos conceitos de cultura literária e humanística do conhecimento. Sendo assim, a idéia de formação surge a partir de um ato de pluralidade e criação evitando uma idéia prescritiva, normativa e autoritária que levaria, inevitavelmente, ao impedimento do que a tradição chamaria “ser plenamente humano”.

O processo de formação de “si mesmo” poderia obedecer a uma operação metamórfica, fazendo-se sempre acompanhada de um outro. Essa experiência produz o rompimento com sistemas habituais engendrando no “em si mesmo” a possibilidade de construção e desconstrução da experiência formadora (LARROSA, 2001).

Este movimento de passagem, de travessia, de metamorfose que a formação implica atinge o seu ápice na fala seguinte quando a aluna realiza o giro em torno do próprio eixo da discussão “olhando por um outro viés” o ser professor. O ponto de torsão se dá no momento em que é realizada uma convocatória a problematizar o lugar que eles, enquanto futuros professores/educadores, podem vir a ocupar diante da realidade em questão. Esta fala carrega em si a dimensão de um outro lugar que os desvela e os compromete, trazendo à tona um posicionamento de responsabilização com esse lugar e com o próprio fazer.

E eu acho que, se ela que tem vinte e poucos anos de magistério não desistiu, nós que estamos recém começando o estágio, a gente não pode nem pensar em desistir. Se a gente tiver pensando em desistir, então que a gente não seja um educador, que desista agora antes de se formar, porque se não, não tem... não vai ter função... (...) E eu acho que o que a gente tá falando, a discussão tá indo muito pro lado de o que os alunos fazem de errado. E eu acho que nós aqui, enquanto... nesta situação, se vendo como futuros professores, educadores, a gente tem que pensar de um outro viés, né?! O que que nós estamos fazendo de errado ou o que os nossos professores estão fazendo de errado, e o que que pode ser feito pra melhor, pra mudar.

Outro ponto interessante a destacar é a forma como é nomeado o ser professor: o “professor” passa a ser acompanhado pelo “educador”. Não pretendemos aprofundar essa discussão sobre a diferença ou não desses conceitos, mas apontar para a necessidade que surge a partir de então de ir um pouco mais além de onde se estava. Assim, podemos nos arriscar a pensar que há mais do que se pôde dizer implícito nestas duas nomeações.

Nomear o que fazemos em educação ou em qualquer outro lugar, como técnica aplicada, como práxis reflexiva ou como experiência, não é somente uma questão terminológica. As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras (LARROSA, 2004, p. 153).

Por enquanto, já está de bom tamanho nos determos no surgimento do “educador” neste percurso e neste “novo olhar”.

Um educador lê com seu próprio corpo, pois lê com os olhos, mas também com todos os sentidos: olfato, audição, tato, ventre e etc. O corpo inteiro está neste jogo de ler e fazer-se ler, ou seja, “Ler bem é olhar ativamente, olhar com olhos múltiplos e interessados” (LARROSA, 2005, p. 31).

O olhar do qual falamos aqui carrega uma dimensão que ultrapassa a noção básica de visão, pois não se trata de ver com os olhos, mas de ir além do que a visão pode alcançar, ir mais além do que nos é visível e aparente, é ir em direção ao que nos escapa, nos atravessa, ou que nos toca. É olhar com a carne, olhar com o corpo. O olhar se depara sempre com o inelutável volume dos corpos humanos, como nos diz Didi-Huberman (2006). Então é preciso fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete a um vazio que nos olha, nos concerne e, de alguma forma, nos constitui.

Esse desejo ou necessidade de “ir além” e de se fazer presente no processo diz também de uma entrega, uma entrega de si e do seu corpo ao que lhe convoca, e que ao lhe convocar, lhe desloca para um voltar-se a si, buscando fissuras no que já é e no que já tem.