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7. FORMAÇÕES DE PROFESSORES E A ARTE DE UM FAZER(SE) EM

7.2 A arte de um fazer(se) em intervalos

7.2.3 Um estranho silêncio: tempo de calar

É preciso virar estrangeiro na própria terra para reaprender a ver. É pelo exílio interno que se pode escapar.

(PEIXOTO, 1988, p. 363).

Este terceiro momento do percurso que temos percorrido vai se utilizar mais dos escritos dos envolvidos nesta pesquisa do que propriamente de suas falas, pois essas foram, em um determinado momento do processo, contidas e preservadas por um silêncio difícil de explicar, justamente porque não se tratou de um silêncio de privação ou de negação, mas de um silêncio de preservação e de um certo cuidado com as palavras, o que podemos interpretar aqui como uma suspensão de saberes e, até mesmo, dos sujeitos em questão. Talvez uma parada providencial, na qual o sujeito está ali onde não é e no que não se sabe, está no espaço dos intervalos. E isto não significa que não estejam presentes, pelo contrário, porque podemos ser e estar também na ausência e na falta. O escrito a seguir traz um pouco disso do que “não é” e do que pode vir a ser e o quanto isso nos desacomoda e incomoda, nos tira do lugar e, até mesmo, nos esgota:

Meu Deus, o que posso relacionar desse filme com o meu estágio??? Talvez eu pudesse chamar a atenção para a questão da AIDS ou das drogas e tudo isso com a prostituição misturada com homossexualismo. Mas isso já tá muito maçante, né? Muito batido, já tá dando nojo! Acho que prefiro falar sobre o relacionamento que pode ser muito frágil entre mãe e filho e como essa relação pode ser transferida para professora-aluno em sala de aula.

Larrosa (2004) nos apresenta a noção de experiência como sendo algo que possa nos tocar, nos atravessar, e que diz de uma descontinuidade de um processo, de um gesto de interrupção que exige uma parada para pensar, para olhar, para escutar, para ir mais devagar... E é disto mesmo que se trata aqui, de uma parada para sentir, para suspender a opinião, o juízo, a vontade, o automatismo da ação, podendo demorar-se nos detalhes, aprender a lentidão, a calar, a ter paciência, a dar-se tempo e espaço e a cultivar a arte do encontro.

Justamente por isso é que se faz indispensável analisarmos este momento partindo desta questão central do silêncio ou da “parada”, ou melhor, do tempo de calar e, consequentemente, do tempo de parar, e olharmos para este intervalo como um cuidado de si, em que as incertezas nos guiarão.

O viajante vem de longe para interromper a comodidade do habitual e do acostumado, para produzir a diferença entre o que se é (e agora se está deixando de ser, porque começou a ser estranho e insuportável, radicalmente alheio), e o que se vem a ser (LARROSA, 2005, p. 59).

A experiência é um passo, uma passagem, uma viagem. Contém o “ex” do exterior, do exílio, do estranho, do estrangeiro. Contém o “per” de percurso, do “passar através”, em uma travessia na qual o sujeito se prova e se ensaia a si mesmo. No periri (de experiri), o periculum, o perigo, o risco. Portanto, a experiência da formação é uma aventura, e por se tratar de uma aventura não é normatizada por objetivos prévios e não possui garantias à priori, mas coloca em jogo o sujeito sem identidade real ou ideal, capaz de assumir a irrealidade de sua própria representação e submetê-la a um movimento incessante e contínuo de desconstrução e construção; um sujeito que já não se vê como uma substância dada, mas como forma a compor, em constante transformação e reinvenção de si (LARROSA, 2005).

Nos deparamos muitas vezes com pessoas totalmente diferentes dos padrões exigidos pela sociedade, então está em cada um tentar olhar para estas diferenças, não com preconceito, e sim como outra forma de olhar o mundo, que é o que cada pessoa pode oferecer. Cheguei na aula e um aluno estava com os dedos cortados - ‘bem cortados’, então perguntei e ele disse que o pai dele tinha dado uma facada em sua mão, pois estava drogado. Bom, é claro, fiquei totalmente sem reação. Depois pensei e vi que a qualquer momento pode acontecer coisas que mudam a percepção, o olhar que você pode ter do mundo.

A dimensão do estranho colabora para pensarmos esses encontros e desencontros, e os intervalos no qual uma experiência de formação se dá. Diz de ambivalência e movimento. Freud (1919) vai abordar a relação entre aquilo que é

estranho, angustiante, e ao mesmo tempo, familiar, íntimo. Afirma que o estranho se remeteria sempre a uma circunstância em que cada um se encontra perdido, desconcertado e aponta dois rumos possíveis: ou se vai em busca da descoberta das significações que se ligaram à palavra estranho ao longo da sua trajetória, ou se reúne tudo o que desperta em nós o sentimento de estranheza, as impressões, sensações, experiências. De qualquer forma, a conclusão é a mesma: o estranho é a categoria do assustador que remete ao que já é conhecido, há muito familiar, mas que inicialmente parece distante. O estranho assinala no visual uma implicação do sujeito que põe em questão o lugar do eu.

Na inquietante e estranha situação de olhar e sermos olhados, o sujeito deixa de ser o mestre de seu olhar, sendo desalojado, para se ver tornado estranho (RIVERA, 2005).

È incrível a forma como muitas vezes somos manipulados pela mídia, por empresas, e ao invés de nos darmos conta do que acontece permanecermos coniventes com isso. Não buscamos formas de mudar as coisas, apenas damos continuidade a esse imenso ciclo o qual sem saber já nascemos viciados.

Esse escrito revela uma exposição desse sujeito que escreve e que se põe a olhar-se de um outro lugar, mesmo estando ele em uma posição passiva diante desta cena/realidade que lhe choca e paralisa. Trata-se de um depoimento contido, mas não imparcial, tampouco acomodado, mas talvez surpreso com sua própria passividade. Larrosa (2004) afirma que o sujeito da experiência é aquele que se expõe, que se coloca em risco e se mostra vulnerável, independentemente da forma como se põe, ou como se opõe, ou como se impõe, o importante é o ato de colocar- se, de se expor. E quem se expõe se “dá a ver”, existe, é. Portanto, não há dúvidas de que se está ali, como se passivos de si mesmos, em um ato permissivo de se deixar tocar, deixando-se atravessar pelas coisas e, para que isso aconteça, é preciso de entrega. E a entrega, como nos diz Larrosa, não diz de atividade.

Calar é também uma forma de falar com o que não se diz. As entrelinhas dizem muito do que, às vezes, as palavras não suportam pronunciar, justamente dizem do que lhes falta. Nos resta apenas lidar com a morte das palavras, e não “desperdiçar”, mas sim respeitar o silêncio e os seus sussurros.

Sobre a questão da morte, a maioria dos filmes fica uma dramatização com o foco na morte e parece que ele encara como coisas naturais, que são naturais na verdade, mas que a gente não encara também assim, né. Parece que no filme ele naturaliza isso.

“Dar a ler é dar a aceitação da morte das próprias palavras”: o silêncio, o talvez, a interrupção, o vazio no qual talvez pode vir o porvir da palavra ou a palavra do porvir (LARROSA, 2004, p. 31).

Este momento possui como marca essencialmente a diferença: os sujeitos já não são os mesmos, nada é mais o mesmo, os lugares já não são os mesmos. Esta é a única certeza que fica.