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Efeitos dos direitos fundamentais na esfera privada

I. Introdução

10. Efeitos dos direitos fundamentais na esfera privada

Embora os direitos fundamentais tenham sido concebidos como direitos cujos efeitos são produzidos na relação entre o Estado e os particulares, Virgílio Afonso da Silva207, em sua obra sobre a constitucionalização do direito, enfrenta a questão da irradiação dos efeitos das normas, ou valores, constitucionais aos outros ramos do Direito, cuidando, principalmente, da vinculação das relações entre particulares a direitos fundamentais, explicando que nem sempre é o Estado que significa a maior ameaça aos particulares, mas sim outros particulares, especialmente os dotados de algum poder econômico ou social.

As normas de direito privado devem ser interpretadas com base nos princípios de direitos fundamentais. Além disso, os princípios gerais de direito não podem mais ser considerados como princípios morais, princípios supra jurídicos ou princípios extrajurídicos, mas sim uma expressão dos próprios princípios constitucionais.208

A autonomia privada, que é um conceito-chave do direito privado e das relações entre particulares, é considerada não como um princípio material de direito, equiparável aos direitos fundamentais, mas como um princípio formal, excluindo a possibilidade de sopesamento entre a própria autonomia privada e

207

SILVA, Virgílio Afonso da. “A constitucionalização do direito – os direitos fundamentais nas relações entre particualres”. São Paulo: Malheiros, 2005,p18.

208

os direitos fundamentais eventualmente atingidos numa relação de direito privado, por faltar um critério de comparação para tornar o sopesamento possível. Em outras palavras, não é possível comparar princípios materiais, como os direitos fundamentais, com um princípio formal, como a autonomia privada209.

A autonomia privada é um princípio formal, uma garantia de competência para os indivíduos, fazendo-se um paralelo com a competência decisória do legislador ao tomar decisões em questões que envolvem direitos fundamentais. Ou seja, a autonomia privada, tanto quanto a autonomia legislativa, atua como um suporte para competências. A função da autonomia privada é fazer força contrária à dominação dos diretos fundamentais nas relações privadas.210

Sempre que possível os efeitos dos direitos fundamentais se farão sentir nas relações privadas por intermédio do material normativo do próprio direito privado, havendo primazia da mediação que o legislador ordinário faz entre a ordem jurídica constitucional e a ordem privada, caso em que há eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações privada, mas há casos em que os efeitos dos direitos fundamentais devem ser diretos, havendo necessidade de aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas.211

Pode-se citar como exemplo de eficácia indireta, a boa-fé, que sendo uma cláusula geral, serve de “porta de entrada” para os direitos dundamentais nas relações interprivadas212. 209 Ibidem, p.27-28. 210 Ibidem, p.28. 211 Ibidem, p.28. 212 Ibidem, p.85.

A liberdade dos indivíduos e a autonomia do direito privado não são absolutas, ou seja, não há uma separação total entre os âmbitos dos direitos fundamentais e do direito privado. Para conciliar direitos fundamentais e direitos privados, existe a influência dos direitos fundamentais nas relações privadas por intermédio do material normativo do próprio direito privado, pressupondo uma concepção de direitos fundamentais como um sistema de valores, com a existência de portas de entrada desses valores no próprio direito privado, portas essas que seriam as cláusulas gerais.213

Não é necessário o recurso a uma ordem objetiva de valores, para que os direitos fundamentais extrapolem o âmbito da relação entre Estado e indivíduo para irradiar efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, entende Virgílio214, ao fundamento de que como princípios são normas que exigem que algo seja realizado na maior medida possível, diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes, a decorrência automática desse entendimento conceitual é a fundamentação daquela extrapolação na eficácia dos direitos fundamentais que fomentem a sua realização. Dessa maneira fica possível inferir dos direitos fundamentais também direitos à proteção contra eventuais violações por parte de terceiros, pois a liberdade de expressão, o direito de associação, a privacidade, a liberdade de informação, a liberdade religiosa, entre outros, são realizáveis em maior medida se não forem considerados apenas direitos contra violações por parte do Estado, mas também contra violações por parte de terceiros.

Fundamentar os efeitos dos direitos fundamentais nas relações entre particulares com base na idéia de otimização e não na idéia de uma ordem objetiva de valores não implica uma dominação do direito infraconstitucional por parte dos valores constitucionais, porque o próprio conceito de otimização já

213

Ibidem, p.76

214

enuncia que essa produção de efeitos é condicionada às condições fáticas e jurídicas existentes. Dentre tais condições jurídicas estão as normas de direito privado ou de direito infraconstitucional, em geral.215

Em conclusão, por serem princípios, e, por conseguinte, mandamentos de otimização, os direitos fundamentais exigem uma produção de efeitos nas relações entre particulares.

No entanto, a existência de um Código Civil, cujas normas possuem, em geral, a estrutura de regras, impede, à primeira vista, uma aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações entre particulares, porque os efeitos desses direitos já chegam às relações entre particulares por via indireta. Existem, porém, diversas situações para as quais somente uma aplicação direta dos direitos fundamentais pode oferecer uma solução adequada, como, por exemplo, nos casos em que não há essa mediação legislativa216.

Assim, da mesma forma que a competência decisória do legislador fornece razões para que suas decisões sejam respeitadas, ainda que haja restrição a direitos fundamentais em decorrência de lei ou outro ato legislativo, a autonomia privada é o princípio formal que fornece razões para que um ato de vontade entre particulares seja aceito e considerado válido, ainda que restrinja direitos fundamentais das partes. Mas, como decidir o que prevalece em cada caso concreto, a decisão baseada na autonomia da vontade ou a proteção a direitos fundamentais eventualmente restringidos, pergunta Virgílio.217

Ressaltando que se deve fazer uma análise da relação entre manutenção das competências sustentadas pela autonomia privada e a intensidade da

215 Ibidem, p.146 216 Ibidem, p.147 217 Ibidem, p.149.

restrição aos direitos fundamentais eventualmente envolvidos na relação entre particulares, Virgílio explica que a autonomia privada funciona como garantia de certas competências, mas pode ser relativizada em face de um desequilíbrio na relação entre particulares ou no caso de haver um falseamento da real autonomia privada. Se esses fatores não se fizerem presentes, deve-se partir de uma precedência prima facie da autonomia privada quando confrontada com eventuais direitos fundamentais envolvidos. Essa precedência, afirma Virgílio, por ser apenas prima facie, pode ser revertida, sendo que o fator mais importante para que ocorra tal reversão é a intensidade da restrição aos direitos fundamentais envolvidos. “O peso do princípio formal expressado pela autonomia privada tende a ser menor quanto maior for a intensidade da restrição aos direitos fundamentais envolvidos”.218

No entanto, o modelo de aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações entre particulares não implica que todo direito fundamental necessariamente seja aplicável a tais relações. A verificação dessa aplicabilidade deve ser individualizada e dependerá das características de cada norma de direito fundamental. O modelo citado sustenta que, se o direito fundamental for aplicável às relações entre particulares, essa aplicação será direta, mas não exclui a possibilidade de que alguns direitos sejam aplicáveis apenas nas relações entre o Estado e os cidadãos.219

A boa-fé, exemplo de eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas, é um limite ao exercício dos direitos, limitando também as negociações coletivas. 218 Ibidem, p.160 219 Ibidem, p.91.

O Código Civil Brasileiro limita os direitos na medida e no momento em que descreve, genérica e hipoteticamente os seus respectivos conteúdos, sendo que, quanto ao exercício, houve preferência por parte do legislador de fazê-lo de forma geral, na Parte Geral, na qual, no artigo 187, ao disciplinar os atos ilícitos, foram traçados os limites dentro dos quais o exercício de qualquer direito pode se dar, conforme explica Daniel M. Boulos220.

Assim, esclarece Boulos que, na Parte Geral do Código Civil, estão traçadas as diretrizes que devem nortear o exercício de qualquer direito, sendo que, ao fazer referência à boa-fé, aos bons costumes e à função social do direito, o artigo 187 elegeu e positivou esses princípios como sendo limites gerais dentro dos quais o exercício do direito, para ser legítimo (e, portanto, lícito) deve-se dar.

A boa-fé, como princípio geral de direito positivado, incide indistintamente sobre todos os direitos. Ademais, tratando-se de um conceito legal indeterminado, serve de permanente instrumento de controle a disposição do juiz, a quem cabe adaptá-lo à realidade social na ocasião da análise de determinado caso concreto.

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