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CAPÍTULO 3. A TRANSGRESSÃO DO DISCURSO JORNALÍSTICO PADRÃO

3.3. HUMOR, ANÁLISE DO DISCURSO E JORNALISMO

3.3.4. EFEITOS

Definido todo o processo de construção e significação do discurso humorístico e destacadas as categorias operatórias propostas por Charaudeau, procederemos ao último ponto da análise do teórico, o estabelecimento dos possíveis efeitos dos atos humorísticos. Trata-se de colocar a questão numa problemática da intencionalidade, com o sujeito humorista na origem de um efeito visado – termo diretamente relacionado às visadas discursivas – e o sujeito destinatário na origem de um efeito de prazer. Como em todo ato de linguagem, não há garantia de coincidência entre intenção e efeito. Charaudeau (2006, p. 35-39) então define os efeitos em termos de conivências, ficando a terminologia relacionada ao engajamento de que o ato humorístico prescinde por parte da recepção.

A conivência lúdica é definida como “[...] un plaisir dans la gratuité, dans la fantasie [...]65”, um alegramento por ele-mesmo, com numa fusão emocional do autor e do

destinatário. Tendo uma aproximação com a auto-ironia, ela não se compatibiliza com tal procedimento por estar livre de espírito crítico, sendo produzida e consumida numa gratuidade do julgamento. Charaudeau coloca que esse efeito está mais relacionado com a publicidade e também permite o humor negro, pondo em perspectiva os males do mundo. Pelos componentes fantasioso e gratuito não acreditamos que esteja presente nas reportagens de Ernesto Varela.

Ausente da conivência lúdica, a polêmica é fator primordial para a conivência crítica. Ela propõe ao destinatário a denúncia de um “falso-parecer de virtude” que esconde valores negativos, procurando fazer partilhar o ataque a uma ordem estabelecida, indo contra esses valores. Para Charaudeau, ela é encontrada abundantemente em caricaturas e interações polêmicas dos debates políticos. Nas reportagens de Varela, pensaríamos nesse efeito visado a

partir do sujeito comunicante (EUc), produtor das reportagens, em relação ao sujeito interpretante (Tui), telespectador, tendo como alvo elementos da sociedade da época (como o ufanismo ou o nacionalismo), além do próprio regime militar e da classe política. Esta seria a conivência mais recorrente nas reportagens, podendo ser percebida ao longo de todo o corpus. No Apêndice D (Almoço com Maluf), Varela pergunta ao deputado federal e candidato à presidência pela via indireta, Paulo Maluf, notório por seu populismo, envolvimento com suspeitas de corrupção e apoio à ditadura, qual filósofo ou filosofia inspira seus passos. Ao que se segue este diálogo:

- A minha filosofia é cristã, que é a filosofia de um católico, apostólico, romano, praticante, que aprendeu desde criança o catecismo, leu a Bíblia e estudou “apologese”.

- Quais são as palavras do Jesus Cristo mais importantes para o senhor? - Amar o próximo como a ti mesmo.

- O senhor acabou de falar no mundo terreno, e se diz cristão. Para onde o senhor vai depois que o senhor morrer?

- Eu tenho certeza que pelo o que eu trabalhei em benefício dos outros, eu tenho certeza que Deus vai me reservar o céu.

As perguntas fogem do lugar comum da relação imprensa/político, que é estabelecida de forma engenhosa na reportagem, instantes antes da conversa com Maluf. Entrevistando o repórter Tonico Ferreira, da Rede Globo, sobre a rotina do trabalho, Varela indaga:

- Tonico, quantas vezes por mês você entrevista o deputado Paulo Maluf? - Atualmente, assim, tá dando umas duas vezes por semana, oito vezes por mês. - É? E por que que você entrevista ele sempre assim? Ele tem sempre coisas interessantes a dizer?

- Nem ele tem coisas interessantes a dizer, nem eu tenho perguntas interessantes a fazer. É uma chatura.

- Ué, então por que que você faz isso? - Porque eu ganho pra isso.

- Ah, você ganha pra isso? E como que você inventa, então, perguntas para ocupar o tempo dos telespectadores?

- Não, mas é brincadeira, porque hoje por exemplo tinha. Um negócio da manifestação, tudo que acontece no dia.

- Só que você tem que ter o saco pra fazer a mesma pergunta cinco, seis vezes, de maneiras diferentes. Não só a pergunta é chata como ela tem que ser feita cinco vezes diferentes e de maneiras diferentes.

- E sempre a mesma?

- E sempre a mesma pergunta, até ele responder alguma coisa.

Ao destacar uma série de características que, pelo menos para uma parte do público, podem ser contrárias à imagem pública de Paulo Maluf ou da Rede Globo, Varela gera o humor e ataca não só o deputado e a empresa de comunicação, como também a classe política e os jornalistas em geral. O “falso-parecer de virtude” citado por Charaudeau é evidenciando nos dois trechos, gerando a possibilidade de uma conivência crítica. Tal procedimento é usado repetidas vezes por Marcelo Tas e seus parceiros, num recurso bem próprio à ironia, de tomar as palavras do próprio interlocutor para atacá-lo. É interessante notar também que na entrevista com Tonico Ferreira, Varela utiliza o microfone da Rede

Globo (FIG 11). O que parece ser apenas uma brincadeira pode ser encarado também como

um elemento que reforça ainda mais a crítica à situação.

Com um efeito destruidor, a conivência cínica é colocada por Charaudeau em um nível acima da crítica, porque procura fazer partilhar uma diminuição dos valores e das normas sociais consideradas positivas e universais. Por seu efeito vingativo e revanchista, deixa o humorista isolado num combate solitário. Acreditamos que Varela se apoia em imaginários de liberdade, democracia, justiça social, abundantes em seu contexto psicossociohistórico. Logo, ele não assumiria a característica de solidão, contra tudo e contra todos, essencial para esse efeito.

Tendo aproximação com os dois pontos anteriores, em especial com a conivência crítica, a de derrisão tenta desqualificar o alvo o rebaixando, com um efeito duplo: “[...] il vise a dénoncer ce qui serait une usurpation de pouvoir, et en même temps, il la révèle de l'insignifiance de cette prétendue position de pouvoir”66 (CHARAUDEAU, 2006, p. 38). Há,

como na conivência crítica, a desqualificação de uma pessoa ou de uma ideia. Mas não se procede com um desenvolvimento argumentativo. A derrisão desqualifica brutalmente, sem possibilidade de defesa. “En revanche, la critique suppose que l'on puisse la justifier”67

(CHARAUDEAU, 2006, p. 38). Também se aproxima da conivência cínica pela forte desvalorização do alvo. Mas, como não coloca o autor na solidão de seu julgamento, é posta pelo teórico em um nível abaixo. A conivência de derrisão poder ser obtida de diferentes modos: tocando um aspecto psicológico da pessoa para tirar sua legitimidade e importância, tratando a pessoa fora de seu status de notoriedade e desvalorizando seu aspecto público. Pelo caráter de brutalidade, esse efeito não seria recorrente nas reportagens de Varela, já que ele procura valorizar a sutileza em suas considerações. Mas podemos constatá-lo quando o governador Franco Montoro é perguntando se se acha velho (APÊNDICE F – Bandeira no Palácio). Ou mais fortemente na entrevista com Nabi abi Chedid (APÊNDICE G). Logo na primeira pergunta, o deputado é questionado sobre sua nacionalidade, numa alusão à origem libanesa de sua família, como já tratamos na seção 2.3.3. Há uma tentativa de desvalorizar a legitimidade dele como político brasileiro. Parece-nos que a conversa exemplifica exatamente o que Charaudeau trata. Varela questiona Nabi seguidas vezes sobre seu papel de político e o envolvimento dele com o futebol, tentando destacar a ilegitimidade dessa posição de poder assumida à custa de influências que vão além do esporte. O entrevistado sente-se acuado pelos

66 Tradução nossa: “[...] visa denunciar o que seria uma usurpação de poder, e ao mesmo tempo, revela a insignificância dessa pretendida posição de poder”.

questionamentos e pelas perguntas irônicas. O humor decorre dessa situação.

O último efeito enumerado por Charaudeau é a brincadeira (“gozação”), considerada por ele mesmo como um termo insatisfatório, já que todo ato humorístico pode ser prazeroso, brincalhão. Consiste em pontuar o que acaba de ser dito com um comentário para tirar seu caráter sério, algo como “eu estava brincando” ou “não me leve a sério, o que eu disse não importa”. Mas, ao mesmo tempo, comporta uma crítica implícita. Além disso, há um anulamento, provisório, do procedimento humorístico. Tal recurso pode ser percebido, mas de uma forma invertida, na abordagem de Varela ao deputado Paulo Maluf no dia do aniversário do político (APÊNDICE C – Aniversário do Maluf). Num primeiro momento, Varela compra um bolo e utiliza tal recurso para se aproximar de Maluf. Ele parece querer dizer que é inofensivo, que está apenas brincando, não é sério o que faz ali. Mas, ao conseguir chegar perto do deputado, faz um questionamento fustigante: “Bom, como eu vou ser sincero, eu não sou repórter político, eu estive aqui hoje em Brasília e percebi que muitas pessoas não gostam do senhor, muitas pessoas dizem que o senhor é corrupto, que o senhor é ladrão. É verdade isso, deputado?”. Maluf se vira e sai sem responder. Mas a conivência deste tipo de humor já estabeleceu os elementos para ser alcançada. Nota-se que é possível perceber outros procedimentos humorísticos que levam também ao estabelecimento das conivências crítica e de derrisão.

Como forte crítica social, amparada largamente no contexto psicossociohistórico, e em imaginários correntes na sociedade da época, acreditamos que as reportagens de Varela não apresentam as conivências lúdica e cínica. A derrisão e a “gozação” aparecem em grau secundário. O efeito mais abundante é a conivência crítica. Mas, como o próprio Charaudeau destaca, não se trata de escolher uma das categorias enumeradas e procurar encaixar os atos humorísticos nelas. Pela pluralidade de sentidos possíveis, e pelos inúmeros procedimentos linguísticos postos em ação, é mais comum uma combinação das categorias. Esperamos que os trechos de nosso corpus colocados para exemplificar os diversos pontos da proposição de Charaudeau tenham evidenciado essa multiplicidade de possibilidades. Ao afastar o humor de uma definição enquanto um gênero, o teórico diz que “L’acte humoristique participe des différentes stratégies discursives dont dispose un sujet parlant pour tenter, à l’intérieur d’une situation de communication particulière, de séduire l’interlocuteur ou l’auditoire en produisant des effets de connivence divers”68(CHARAUDEAU, 2006, p. 39-40). Toda a

68 Tradução nossa: “O ato humorístico participa de diferentes estratégias discursivas as quais dispõe um sujeito falante para tentar, no interior de uma situação comunicativa particular, seduzir o interlocutor ou o auditório

questão leva enfim à mise en scène de um jogo estratégico, com a finalidade de produzir um efeito de conivência entre seu autor e aquele a quem tal ato se dirige (no caso de Varela, preferencialmente, a instância receptora dos telespectadores).

Como analisa Charaudeau (2006), ironia e paródia são dois dos recursos fundamentais para a instauração do humor. São esses elementos que ajudam Marcelo Tas e seus parceiros a compor as reportagens agregando o humor ao fazer jornalístico. Procederemos então à análise desses dois pontos.

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