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CAPÍTULO 3. A TRANSGRESSÃO DO DISCURSO JORNALÍSTICO PADRÃO

3.1. GÊNERO

3.1.1. TRANSGRESSÃO DE GÊNERO

Tendo estabelecido alguns dos parâmetros da questão genérica, ainda nos fiaremos numa definição de Bakhtin para iniciarmos a efetiva análise de nosso corpus, procurando definir como a transgressão pode ter ocorrido. A partir da concepção de gênero discutida na seção anterior, elegemos três referenciais teóricos bastante trabalhados na Análise do Discurso que nos ajudarão nesse caminho: humor, paródia e ironia.

Porém, antes de continuarmos com o desenvolvimento de cada um desses pontos em associação com nosso corpus, buscaremos na definição de estilo proposta por Bakhtin (2010a, p. 265) um ponto que pode tornar mais clara a concepção de transgressão de gênero que iremos seguir. Para o teórico russo, o estilo está ligado a uma noção de que todo

enunciado, mesmo com suas restrições e inter-relações com outros ditos, é individual em última instância. Ele é de responsabilidade de um sujeito e, por isso, pode ter um estilo individual.

Mas alguns gêneros favorecem mais do que outros o aparecimento da individualidade. Aqueles que requerem uma padronização estão menos propícios ao afloramento de algum estilo49. A articulação entre estilo e gênero é assim colocada:

Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem à condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determinada função (científica, técnica, publicista, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis (BAKHTIN, 2010a, p. 266).

Para Bakhtin, onde há estilo há gênero. O seu aparecimento leva a uma renovação ou destruição do gênero. Em conformidade com o que expõe Charaudeau (2004), a transgressão se encaixaria nessa renovação. Ela pode extrapolar, subverter algumas das restrições de dado gênero, mas não pode mudar tanto a ponto de se criar algo novo. Nesse caso, haveria um rompimento. Da mesma forma, se as mudanças são sutis, sem afetar a própria estrutura discursiva do texto, temos uma variação e não uma transgressão.

Fazendo uso de um estilo próprio, que une jornalismo, humor, paródia e ironia, Marcelo Tas ainda tem que ser reconhecido como um jornalista, mesmo se apresentando como o sujeito-locutor Ernesto Varela. E é o que ele busca o tempo todo, se identificando como um repórter. Em apenas um dos segmentos (APÊNDICE D – Almoço com Maluf) Varela não começa a reportagem com a apresentação “[...] com vocês, o seu repórter Ernesto Varela”. Quando trata do trabalho jornalístico (APÊNDICE B – Varela no Comício das Diretas), entrevistando principalmente repórteres de diversas emissoras, as falas são construídas no sentido de aproximação desse segmento. Enunciados como “Jornalistas, repórteres, iluminadores, câmeras, pessoas que fazem, assim como eu, a sua vida uma entrega à profissão de repórter” ou “Obrigado, Henfil. E bom trabalho de repórter. Agora nós

somos colegas” (grifos nossos) tratam de colocá-lo como um profissional da imprensa.

49 É o caso das dissertações de mestrado. São diversas regras a serem seguidas na elaboração de tal documento. Normas escritas e bem definidas, que abrem pouco espaço para o estilo – apesar do que, como tentamos mostrar na própria execução de nosso trabalho, variações e individualizações ainda são possíveis. No caso do jornalismo televisivo, uma grande variedade de cenografias é permitida desde que sejam mantidos os princípios básicos do contrato, dentro das visadas de informação e captação. Por ser um gênero aberto a elementos de individualização, o jornalismo está mais sujeito a possíveis transgressões.

Nesse jogo de individualização e afastamento do padrão, Tas também procura se distanciar desse universo profissional, quando lhe é conveniente. Ao entrevistar o deputado federal Nabi Abi Chedid (APÊNDICE G – Entrevista com Nabi) ele fala: “Têm alguns jornalistas que dizem, dizem os jornalistas que... o... alguns dirigentes da seleção estariam tentando se projetar politicamente sendo dirigentes da seleção”. Ou quando interpela o deputado federal Nelson Marchezan (APÊNDICE E – Varela no Congresso) – um conhecido político populista que era contra as eleições diretas: “Deputado, segundo diz a imprensa, os políticos estão perdendo a credibilidade. O que o senhor acha dessa afirmação?”.

Na conversa com o governador Franco Montoro (APÊNDICE F – Bandeira no Palácio), a abordagem ao político é feita de modo tradicional, para que haja um reconhecimento por parte do interlocutor e a tentativa de se evitar uma rejeição. A primeira pergunta é bastante corriqueira: “Afinal, o que existe de novo na Nova República?”. Após a primeira resposta, já contando com certa simpatia do interlocutor, ele parte para sua individualização, afastando-se do jornalismo convencional: “Governador, qual foi a última vez que o senhor foi ao cinema?”. Desconcertado, Franco Montoro vacila, é reticente e expõe insegurança. Em alguns segundos, diz que se esqueceu do nome do filme para logo ser questionado: “Governador, muitas pessoas dizem que o senhor é velho. É verdade que o senhor é velho?”. A conversa segue de forma pouco usual, mostrando que Varela não se trata de um profissional da mídia comum.

Quando colocamos os trechos citados anteriormente em comparação com qualquer entrevista da Rede Globo (APÊNDICES H e I), envolvendo políticos ou não, percebemos como eles são diferentes, apesar de manterem a mesma visada principal, a informação. Na Globo, há um alto grau de formalidade, as perguntas são concisas, diretas, dentro do que é esperado socialmente no contexto mais sóbrio da política. Não há surpresa e as respostas podem inclusive ser antecipadas pelo público, dado o grau de previsibilidade dos procedimentos e rituais de ambos os lados.

O processo utilizado por Marcelo Tas e seus parceiros destaca um fator de polêmica presente na construção transgressiva, colaborando para colocar o material transgressor num patamar diferente em relação ao modelo. Isso exige dos envolvidos nas reportagens um profundo conhecimento do jornalismo, já que “[...] é preciso dominar bem os gêneros para empregá-los livremente” (BAKHTIN, 2010a, 284). Bakhtin diz que há na sociedade modelos, padrões, grandes referências, tomados como enunciados investidos de

autoridade. São eles que dão o tom e é a partir deles que são feitas as inovações. Citamos como exemplo o material produzido pela Rede Globo. Afinal, segundo Machado, I (2008b, p. 262). “[...] para que haja transgressão, é preciso que haja uma ordem a transgredir.” O domínio desse padrão permite um emprego mais seguro e livre dos elementos do gênero reportagem televisiva. Se Varela dá amplo destaque à voz do povo é porque sabe que esse tipo de espaço não existe nas redes tradicionais. Se emprega o humor, inferimos que o faça porque constata que o modelo tradicional prima por uma rigidez de linguagem e padrões, mesmo havendo margem para manobras. Ele precisa fazer sua individualidade aflorar naquilo que sabe que não é explorado, realizando o que Bakhtin (2010a, p. 285) chama de um livre projeto de discurso. Uma reacentuação irônico-paródica está entre os procedimentos que o autor russo coloca como possíveis de criar uma mistura de gêneros de diferentes esferas, o que pode levar ao surgimento de um estilo próprio. Numa tensão entre aproximação e distanciamento, reconhecimento e diferenciação, criando e destacando polêmicas, Marcelo Tas constrói seu estilo transgressor.

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