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CAPÍTULO 3. A TRANSGRESSÃO DO DISCURSO JORNALÍSTICO PADRÃO

3.3. HUMOR, ANÁLISE DO DISCURSO E JORNALISMO

3.3.3. PROCEDIMENTOS LINGUAGEIROS

Uma das preocupações do autor é distinguir os procedimentos linguísticos dos procedimentos discursivos. Os primeiros ressaltam um mecanismo léxico-sintático, no que concerne ao explícito dos signos, suas formas e sentidos, assim como as relações forma- sentido. Já os processos discursivos dependem da enunciação como um todo – da posição do sujeito falante e do interlocutor, do alvo visado, do contexto de emprego e do valor social do domínio temático concernente. Os procedimentos linguísticos não são eles mesmos portadores de valor humorístico, assumindo essa característica de acordo com a enunciação.

Outra preocupação se refere a uma diferenciação das categorias discursivas do humor, que resultam de um jogo com os procedimentos de enunciação, e as que vêm de um semantismo das palavras no interior do enunciado. No primeiro caso, a relação se dá entre explícito e implícito do dito, como na ironia. No segundo, há um jogo na dissociação de isotopias59 de determinadas palavras. Por vezes, Varela chega a empregar os dois

procedimentos simultaneamente. Ao entrevistar o deputado Nabi Abi Chedid (APÊNDICE G

58 Tradução nossa: “[...] a vida política, a vida cidadã, as mídias, a cultura, a notabilidade e a notoriedade das pessoas, etc”.

59 O termo é por nós entendido como uma homogeneidade de sentido dentro de um texto, em oposição à alotopia ou poli-isotopia, que se refere à heterogeneidade de sentidos, permitindo uma leitura plural dos textos. “A isotopia designa globalmente os procedimentos que concorrem para a coerência de uma seqüência

discursiva ou de uma mensagem. Fundada na redundância de um mesmo traço no desenvolvimento dos

enunciados, tal coerência diz repeito principalmente à organização semântica do discurso” (MAINGUENEAU, D. In: CHARAUDEAU; MAINGUENEAU. Dicionário de Análise do Discurso, 2008, p. 292). A definição está relacionada a possibilidades de sentido, leituras de uma frase ou texto, que podem depender da pluralidade de sentidos de uma palavra.

– Entrevista com Nabi), depois de uma longa discussão sobre falar ou não de política em um ambiente esportivo como a concentração da seleção brasileira para a Copa do Mundo de 1986, acontece o seguinte diálogo, iniciado por uma pergunta de Varela:

- Então uma pergunta futebolística para terminar a entrevista. - Ah, futebolística eu te dou, com todo o prazer.

- Qual é sua próxima jogada?

- A minha... Eu não jogo, eu trabalho. A jogada é a sua, numa mente obscura...

Empregando um termo esportivo, “jogada”, Varela recorre ao duplo sentido da palavra, que comumente se refere também a esquemas ilícitos, a golpes. Usa a própria restrição imposta pelo interlocutor, de falar apenas sobre futebol, mas ao mesmo tempo dobra esse limite, recorrendo a outro significado de “jogada”, acionado pelo contexto que envolve um político, ao qual é associado um imaginário de corrupção e desonestidade. Por meio de raciocínio rápido e improviso, cria o humor, que desarticula seu entrevistado, pego de surpresa pela estratégia. Nesse caso, seguindo os pensamentos de Charaudeau (2006), o deputado federal é o alvo e os destinatários são os telespectadores que assistiam à reportagem.

A partir dessas duas distinções, o autor propõe categorias para a análise do humor. A posição dele é “[...] définir des catégories qui permettent de procéder à des anlyses et de juger des résultats selon un principe de cohérence”60 (CHARAUDEAU, 2006, p. 27).

Charaudeau ressalva que se trata de estabelecer categorias operatórias e não essencializantes. Não se deve ficar aprisionado por elas, que são por princípio redutivas. Elas permitiriam analisar cada caso. Pela combinação de categorias, a classificação de um ato de humor seria possível, assim como a indicação de suas particularidades.

3.3.3.1. O HUMOR PELO JOGO ENUNCIATIVO

Esta categoria está diretamente relacionada por Charaudeau com a questão da ironia61. Como trataremos mais adiante especificamente deste ponto, a abordagem aqui se dará

60 Tradução nossa: “[...] definir categorias que permitam proceder à análise e julgar resultados segundo um princípio de coerência”.

61 Machado (1998), ao fazer uma análise profunda da ironia e seus desdobramentos, evidencia a diferença dela para o humor. Este se encontra mais ligado à tolerância. Ele procura uma conciliação entre dois aspectos opostos, com a função de divertir e dissolver as angústias de uma vida em sociedade. Suas características não seriam revolucionárias, mas conformistas. Mesmo que seja sério em sua origem, ele quer fazer rir, um

apenas para contextualizar o que o teórico propõe, com a retomada da discussão à frente. Numa primeira definição, Charaudeau (2006, p. 27-28) teoriza que a ironia acontece quando é operada uma discordância entre o que pensa o sujeito falante e o que diz o sujeito enunciador – este diz qualquer coisa contrária ao que pensa, tendo que construir um destinatário ideal que possa compreender que o que é dado a entender é o inverso do que é dito, sendo a ironia definida também como uma antífrase. Colocado nas palavras do autor, “[...] le dire (julgament positif) masque le non-dit (julgament négatif), mais en même temps se détruit dès que l'on découvre ce qui est donné à entendre [...]”62 (CHARAUDEAU, 2006, p. 32). No caso de

Varela, acreditamos que essa responsabilidade de desvelar o jogo irônico recaia predominantemente sobre o telespectador (o destinatário cúmplice), já que ele tem mais recursos para perceber a ironia do que o interlocutor face a face (em geral, o alvo). Há uma série de procedimentos e pistas que lhe são oferecidos nesse sentido – gestos, intervenções da instância da edição, músicas. Procurando circunscrever ainda mais o termo, Charaudeau (2006, p. 28-31) procede com distinções da ironia em relação ao sarcasmo e à autoironia.

Ainda como parte do processo de enunciação, Charaudeau (2006, p. 32) destaca a paródia. “En effet, parodier un texte c’est écrire – ou parler – comme un texte déjà existant, en en changeant quelques éléments de sorte que le nouveau texte ne puisse pas être totalement confondu avec le texte de référence”63. Também adiantamos neste ponto uma primeira

definição do termo, que será retomado. O teórico aproveita a aproximação da ironia e da paródia para diferenciá-las. Na ironia, o dito, um julgamento positivo, mascara o não-dito, um julgamento negativo. Ao mesmo tempo, há um processo de destruição a partir do qual descobrimos o que é dado a entender. Já na paródia existem dois textos que se alimentam reciprocamente. O original é uma referência e o texto paródico faz dele seu fundamento, mesmo quando há um componente de “brincadeira”. O que Charaudeau chama de “como se” da paródia permite a coexistência dos dois textos. O humor surge desse paralelo de um original com sua imitação reconstruída. Ao mesmo tempo, é aberta uma possibilidade de

riso que pode variar de acordo com as circunstâncias, mas que jamais será vingativo, não entrando em questões de ordem moral. Já a ironia tem um caráter francamente subversivo, que pode ou não levar ao riso, com níveis que vão desde um pequeno riso de reconhecimento cúmplice até um riso reparador e desdenhoso, por meio de elementos como a inversão antifrástica e o desejo de escárnio. O ponto em comum entre eles é que ambos procuram expor as falhas e defeitos do alvo. O humor, de forma mais gentil. A ironia, de uma maneira mais cáustica.

62 Tradução nossa: “[...] o dito (julgamento positivo) mascara o não-dito (julgamento negativo), mas ao mesmo tempo há uma destruição, desde que se descubra o que é dado a entender [...]”.

63 Tradução nossa: “Na verdade, parodiar um texto é escrever – ou falar – como um texto já existente, trocando- se alguns elementos de modo que o novo texto não possa ser totalmente confundido com o texto de referência”.

crítica ao texto primeiro.

3.3.3.2. O HUMOR PELO JOGO SEMÂNTICO

Este ponto é definido por Charaudeau (2006, p. 32) a partir do que ele coloca como três incoerências: absurda (e mesmo desvairada, louca), insólita e paradoxal. Como formas de humor geradas a partir de procedimentos linguísticos, elas se dão pelo jogo com a polissemia das palavras. Isso pode levar a dois ou mais níveis de leituras dentro da construção frástica.

Na incoerência absurda, os universos discursivos colocados em relação são completamente estranhos. Charaudeau inclusive aproxima a definição do surrealismo, com sua aparente falta de sentido. Não há julgamento de valor como na ironia ou na troça. Somos mergulhados num mundo sem ligação lógica entre os eventos, um mundo absurdo.

Nesse mesmo sentido, levando à aproximação de dois universos diferentes um do outro, procede a incoerência insólita. Mas, neste caso, tais universos não são totalmente diferentes. A narrativa ou a situação na qual são chamados a se relacionar justifica o encontro. Trata-se de um tipo de transferência de sentido. Charaudeau assume que há uma dificuldade em estabelecer uma separação em relação à “incoerência absurda”. Para ele, tal diferença residiria na existência de um elo entre os dois universos de sentido (ou isotopias) colocados, o que seria feito por inferência. Se a ligação semântica aparece facilmente – mesmo que para o autor facilmente seja um critério difícil de medir – temos a “incoerência insólita”. “Autrement dit, il y a toujours un quelque chose qui fait lien pour l’incohérence insolite: la polysémie des termes, l’accident dans un récit, un trait commun abstrait, la situation de communication, un certain niveau métadiscursif, etc.”64 (CHARAUDEAU, 2006, p. 34). Deve-se poder fazer

algum tipo de relação de causalidade, o que não acontece na “incoerência absurda”. Não importa se a relação causa/consequência for desproporcional.

A incoerência mais fácil de definir, nas palavras de Charaudeau, é a paradoxal. Trata-se da contradição entre duas lógicas dentro da mesma isotopia. Não uma lógica universal, mas aquela garantida pela norma social do grupo em que o humor irrompe – virada ao avesso ela se torna uma antinorma social. Mas, ao contrário dos outros dois casos,

64 Tradução nossa: “Dito de outro modo, há sempre alguma coisa que faz a ligação para a incoerência insólita: a polissemia dos termos, o acontecimento inesperado dentro de uma narrativa, um traço abstrato, a situação de comunicação, um certo nível metadiscursivo, etc.”.

permanecemos no mesmo universo de discurso, com a produção de uma contradição julgada inaceitável, um contrassenso, classificado como ilógico, absurdo. Como no exemplo citado por Charaudeau em seu artigo, em que um louco, ao perceber que está cercado pelos muros de um manicômio, escala um deles para ver o que acontece do outro lado. Ele então pergunta a um dos passantes se eles são muito numerosos lá dentro, criando uma dúvida sobre os conceitos de dentro e fora.

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