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Efemerizando os limites da arte

No documento Três questões sobre a arte contemporânea (páginas 155-161)

3. A DESMATERIALIZAÇÃO DO OBJETO

3.2. A transfiguração do lugar comum

3.2.3. Efemerizando os limites da arte

A partir do momento em que a arte torna-se credenciadora de si mesma seus limites começam a se efemerizar, isso porque a história, ao propor definições, terminou por estruturar uma forma para a arte que deixa de atuar como regra quando ela acaba. E quando a arte não se refere mais à narrativa, não há mais, necessariamente, as delimitações e tipos que cabiam no conceito tradicional de museu. É dentro dessa perspectiva que Danto questiona a eficácia da estrutura museológica para abrigar obras de arte não tradicionais.

O filósofo inicia essa discussão já com a fotografia, devido à questão da unicidade. “O surgimento da fotografia é visto como um ataque ao museu construído como um reduto de um certo tipo de política”109 (DANTO, 1997, p.144). E essa política tornou-se inoperante com o

fim da arte, pois o tipo de arte que o museu define já não existe mais (DANTO, 1997, p.186). A arte atual não possui o objetivo de gerar o prazer e o deleite que a sua institucionalização priorizou. Assim como as mulheres deixaram de serem damas, a arte deixou de ter o prazer como objetivo. E, por isso, o museu deixa de ser uma instituição estética fundamental (DANTO, 1997, p.187) e se transforma em um obstáculo para a produção artística (DANTO, 1997, p.188). A conclusão da última frase gera a seguinte pergunta: porque o fato de as obras de arte não possuírem o objetivo de gerar prazer e deleite implica na transformação do museu em uma espécie de obstáculo?

Em seu texto “Art and disturbation”, Danto desenvolve a questão através do que ele vai chamar de um tipo específico de arte, a arte perturbativa110. Esta coloca o museu como obstáculo, pois são artes efêmeras e indefinidas que têm como objetivo acabar com o hiato entre arte e vida (DANTO, 2004, p.119), i.e., ela se incorpora priorizando a impossibilidade de distinção entre arte e vida cotidiana devido à dificuldade de compreensão da parte de quem vê de que, o que está sendo visto é obra de arte, uma representação incorporada de uma determinada maneira. A arte perturbativa transgride os limites entre arte e vida, trazendo para dentro da arte a realidade, a qual é perturbadora (DANTO, 2004, p.121). Por exemplo, a

109“The emergence of photography is seen as an attack on the museum construed as a bastion of a certain kind of

politics”.

110 Danto cria uma palavra para designar esse tipo de arte: disturbation, que inclusive dá nome a seu texto. Em

detrimento dessa situação e da defesa do Professor Rodrigo Duarte da utilização de um termo criado em português, que seria disturbação, optei por perturbação. Isso porque disturbation vem do verbo disturb, que pode ser traduzido por perturbar, e a palavra disturbação levaria a uma associação com distúrbio, que, apesar de ter como um de seus significados perturbação, é geralmente associada ao seu significado médico. Além disso, a perturbação parece-me uma característica válida para o que entendo por arte contemporânea. Dessa forma, considero a ideia em torno do verbo perturbar extremamente importante para compreensão do que Danto pretende identificar como artes efêmeras.

obscenidade é perturbativa, pois ela apaga os limites entre representação e realidade (DANTO, 2004, p.122) e essa ausência de limites dissolve, também, os limites entre peça e audiência (DANTO, 2004, p.122). E, é exatamente por isso que é uma arte perturbativa, pois não permite o distanciamento necessário para que a situação seja compreendida como uma representação, e um tipo de sentimento prazeroso surjam.

Essa questão é de extrema importância, pois, como já foi visto, é a capacidade de diferenciar a arte da vida que caracteriza a arte tradicional. E, é de encontro com essa ideia que a arte perturbativa vai, ela quer retirar o sujeito de seu conforto e o lançar em uma situação/sensação diferente, nova e muitas vezes indesejada. A arte perturbativa gera no sujeito a gama de sinônimos que o substantivo perturbação possui no dicionário111: agitação, inquietação, perplexidade, hesitação, indecisão, transtorno, desordem e confusão. Todos esses sentimentos são possíveis e até desejáveis quando esse tipo de arte é experimentada. Esses sinônimos não colocam somente sentimentos, mas também expressam algumas das questões que incomodam quem experimenta arte contemporânea. Em detrimento do prazer e deleite suscitados pela arte tradicional, a perplexidade, a hesitação e a indecisão são empecilhos bastantes comuns colocados por quem experimenta esse tipo de arte. Acontece que esse é o objetivo do trabalho, o incômodo gerado pela não distinção, a incapacidade de saber como se portar ou se relacionar com o que se presencia.

E, de certa forma, isso modela o que a arte da perturbação pretende alcançar, isto é, produzir um espasmo existencial através da intervenção de imagens na vida. Mas o termo também é utilizado para manter as conotações de perturbação para estas várias artes, execução, realizar uma determinada ameaça, promessa até de um certo perigo, compromete a realidade de uma forma que as artes mais arraigados e suas descendentes perderam o poder de alcançar112 (DANTO, 2004, p.119).

Danto coloca que, a arte hoje pode ser apenas desestabilização, e o fato de continuar a existir pode ser atribuído à lembrança desses limites superados (DANTO, 2004, p.118). Logo, experiências com a arte são imprevisíveis (DANTO, 1997, p.178) e não necessitam ser dentro de um museu (DANTO, 1997, p.179), pois a ideia do ambiente quase religioso do museu e da galeria é, muitas vezes, contrária ao que se pretende com a arte perturbativa. Esta é um tipo de arte que coloca um problema para as instituições, pois seu objetivo é explodir o sistema, já que elas produzem um processo perturbatório em relação a formas de vida específicas, o que dentro

111Aulete Digital.

112“And in a way this models what art of disturbation seeks to achieve, to produce an existential spasm through

the intervention of images into life. But the term is also meant to retain the connotations of disturbance for these various arts, execution, carry a certain threat, promise a certain danger even, compromise reality in a way the

do museu não seria possível. É como se elas fossem um grito alto e ensurdecedor, que ao ser incorporado pelo sistema se transforma na arte inofensiva e distante que o descredenciamento filosófico da arte criou (DANTO, 2004, p.119). Danto chega a fazer a seguinte afirmação sobre o espaço concedido pelo Whitney Museum na Bienal de 1993 para esse tipo de arte, que no texto em questão, ele chama de arte de fora do museu: “Eu tenho medo disso, pronto como eu estava para sustentar esse tipo de arte, eu odiei vê-la no museu”113 (DANTO, 1997, p. 184).

É dentro desse contexto que a efemeridade da obra de arte se coloca, pois devido à união desse objetivo com a constatação de que o espaço do museu minimiza a experiência, as artes perturbativas transformam-se em situações com lugar e tempo determinado. É fácil concluir que o caráter perturbador de uma obra de arte pode se converter em descrença e perplexidade, quando colocada dentro do espaço etiquetador da obra de arte. Etiquetador porque o museu tradicional funciona como “credenciador” da obra de arte, ou seja, como afirmação para o público em geral de que o que adentra as paredes da instituição em questão é obra de arte. O problema dessa situação para a arte perturbativa é que o museu é uma instituição histórica que trabalha, em sua maioria, com critérios também históricos, o que significa que, quando o trabalho adentra as paredes dos museus e galerias ganha características auráticas, prejudicando sua própria existência. Dessa forma, ao ser institucionalizada, a arte perturbativa minimiza seu poder perturbador, já que mantém o hiato entre arte e vida.

Em detrimento disso vários são os museus e galerias exibindo artes perturbativas, como o próprio Danto constatou. E a questão de como estar na instituição e manter o caráter perturbador se impõe. A performance é um tipo de arte que permeia a perturbação e o espaço institucional e, justamente por isso, será utilizada como exemplo. A particularidade da performance, para Danto, é que ela dialoga com a pintura e com o teatro, além de acontecer em galerias, mas contendo um público (DANTO, 2004, p.117), ou seja, ela propõe uma espécie de caminho do meio entre os modos de arte tradicionais e a arte de rua, incorporando, de forma mais radical, os pressupostos da arte perturbativa114.

O caráter ambíguo da performance coloca no território do museu uma série de possibilidades que tradicionalmente eram impensáveis. Como no caso do trabalho de Marina Abramovic, chamado Ritmo 0 de 1974, em que a artista ficou em uma sala em silêncio por 6 horas com 72 itens que o público poderia utilizar para transformar seu próprio corpo em objeto. Entre os itens estava um revólver com uma bala, que foi colocado em punho por uma pessoa

113“I am afraid that, ready as I was to support such arte, I hated seeing it in the museum”.

114 É importante lembrar que ela também foi institucionalizada, mas possui uma espécie de vida dupla, pois

mais exaltada. Nada ocorreu, mas a sua morte era um dos acasos possíveis dentro do universo de possibilidades elaborado pela própria artista. Danto ressalta a diferença de relação do público com esse tipo de arte, pois a experiência com um trabalho como esse não permite a consciência de que o que está acontecendo é uma representação e não a realidade. Muito pelo contrário, é a realidade, pois a obra só existe no momento em que as pessoas da audiência usam o corpo da artista como objeto e esse uso é real, não é uma representação (DANTO, 2004, p.123).

Portanto, a arte perturbativa se reconecta com os impulsos primitivos, com sentimentos talvez somente psicanaliticamente explicáveis (DANTO, 2004, p.126). Isso se inicia a partir do modernismo e da arte primitiva, e a citação de Picasso que se encontra na introdução mostra essa relação. É uma tentativa do Danto de mostrar que através da retratação de algo mágico, divino, ou amedrontador, aquilo que está sendo visto não é apensas uma representação, mas a coisa mesma. A coisa mesma da forma como o artista a concebe. Não é uma cópia, mas uma tentativa, como diz Picasso de dar realidade para aquilo que amedronta, que confunde, que gera desejo.

Em todo caso, a arte perturbacional é um esforço para se reconectar com essa estrutura mágica de pensamento, há muito abandonada como uma prerrogativa dos realizadores-de-imagem, no entanto, vimos que algo semelhante é encontrado nos experimentos elegantes de Johns. E a minha sensação é que o poder, ou a crença que os artistas possuíam, era uma das coisas que os filósofos podem ter tido medo quando optaram pela efemerização da arte como matéria teórica115 (DANTO, 2004, p.128).

Esse caráter mágico é por si só perturbador, como pode ser percebido pelas obras de Jaspers Johns referidas por Danto.

Figura 39. Jasper Johns, “Bandeira”, 1954

115“In any case, disturbational art is an effort to reconnect with this magical frame of thought, long abandoned

as a prerogative of image-makers, though, we saw, something like it is found in the elegant experiments of Johns. And my sense is that the power, or the belief that artists possessed it, was one of the things philosophers may have been afraid of when they turned to the ephemeralization of art as a matter of theory”

Johns, com suas bandeiras e alvos, retrata a realidade como que com o objetivo de encará-la, de colocar-se defronte dela. Danto parece querer mostrar que a perturbação pode se dar de formas menos chocantes, pois mesmo um trabalho elegante como o de Johns, aponta para a dificuldade referente a gama de sentimentos que algo pode gerar quando não é percebido como uma representação, mas como a coisa mesma.

O artista perturbador quer transformar sua audiência em algo anterior ao teatro, pois necessita de uma relação diferenciada entre o público e ele, uma relação que não pressuponha a ilusão da realidade, uma relação mais corporal, quase que mágica entre ambos. Ele quer desconstruir toda relação entre arte e público construída pela história da arte (DANTO, 2004, p.131). Nesse sentido, em detrimento do que afirmou o próprio Danto, a perturbação e a transfiguração tornam-se dois lados de uma mesma moeda. Isso porque a própria ideia de transfiguração, de endeusamento do ordinário, pode ser compreendida como uma crítica à estrutura tradicional da arte, mesmo que ela precise da instituição para ser compreendida como tal. Logo, uma ironia se estabelece, a arte transfigurativa/perturabativa precisa do museu para ser entendida como parte do mundo da arte, mas seu objetivo é implodir essa estrutura. É por causa de ironias como essa que a estrutura museológica está em modificação.

Após a arte ter se tornado credenciadora de si mesma, ela tornou-se sólida teoricamente, e efêmera materialmente. Está percorrendo o caminho contrário ao de sua história, na qual a arte se mostrou sólida materialmente e efêmera conceitualmente. Sendo que essa transformação é tripla, pois a arte se modifica no modo de fazer, no lugar que ocupa e na relação com quem a experimenta (DANTO, 1997, p.183). Coincidentemente, essa tripla transformação coincide com as três questões desta tese. O que permite concluir que a arte perturbativa não é apenas um tipo de arte, mas aquilo que Danto chama de arte pós-histórica.

3.2.4. Vantagens e desvantagens da proposta

Em primeiro lugar é preciso que eu faça um adendo à forma como esse capítulo foi construído. Devido às várias tentativas feitas por Danto de propor condições necessárias e suficientes para a arte, considerei pertinente eliminar os argumentos menos bem sucedidos ou até problemáticos, por tornarem a compreensão uma tarefa quase hercúlea. Portanto, escolhi trabalhar a definição de arte pelo caminho que considero o mais importante dentro da filosofia dantiana, o do desenvolvimento do problema da representação.

Toda a filosofia da arte dantiana é um caminho rumo à ineficácia do conceito de mimesis, da forma como Platão desenvolve no livro X da República, que culmina na Brillo Box,

pois ela é a expressão da impossibilidade da crítica platônica à arte. Mais uma vez, é importante lembrar que os readymades de Duchamp também fazem isso.

O fato de Danto propor condições necessárias e suficientes, que realmente funcionem para definir arte é irrelevante para o desenvolvimento dessa tese, o que interessa é a utilização de suas condições não para definir, mas para pensar como a arte se apresenta hoje. E essa é a possibilidade que considero frutífera, pois apesar de suas diversas tentativas de propor uma definição, ela só pode ser conjecturada, mesmo assim, com ressalvas, que é o que Ramme propõe ao afirmar que a definição dantiana de arte é institucionalista e que, o conceito de significados incorporados funciona como condição necessária, enquanto o de mundo da arte como suficiente (RAMME, 2009, p.210). Logo, o objetivo foi compreender como a arte se apresenta e quais são as consequências dessa apresentação.

Em relação às críticas dos argumentos apresentados, três problemas serão analisados, o da diferença entre arte e filosofia, o da utilização do conceito de dom e o caráter anacrônico da ideia do descredenciamento.

A separação que Danto faz entre arte e filosofia é de que uma é retórica e outra lógico- racional. Essa análise é simplória e falha, pois tanto uma quanto outra podem ter ambas as características, o que implica na impossibilidade de diferenciação conceitual entre elas, acarretando na conclusão de que seriam uma coisa só. Mas essa é uma afirmação errada do ponto de vista dantiano, já que ele é essencialista.

Um adendo poderia ser feito, de que a suposta estrutura lógico-racional da filosofia tem o objetivo de buscar a verdade, argumento utilizado pelo próprio filósofo. Acontece que, nem toda filosofia busca conhecer a verdade, e não é somente na contemporaneidade que isso pode ser verificado. O ceticismo é uma prova disso.

O filósofo reconheceu na característica filosófica da arte o marco do fim da história, e, devido ao essencialismo característico de seu pensamento, ao associar arte e filosofia não conseguiu elaborar claramente a diferença entre ambas. O erro de Danto está no fato de que ele não entendeu que a característica filosófica da arte das décadas de 1950-1970 é uma discussão com a tradição filosófica. Essa proximidade e discussão direta com a filosofia, na verdade, deu a impressão tanto de a arte ter se tornado filosofia, ou seja, de que a filosofia da arte hegeliana teria atingido seu objetivo, quanto de um fim da experiência estética por inadequação da ideia à arte atual. Não nego que, em suma, arte e filosofia não possuem uma grande diferença, apenas diferença na forma como aparecem. A única forma possível, dentro da filosofia dantiana, de separar arte e filosofia está no conceito de mundo da arte, ou seja, institucionalmente.

Em relação à ideia de dom, o quadrado vermelho proposto pelo artista que viu a exposição, traz consigo o fato pejorativo de que, o que um artista diz que é arte deve ser assumido como arte. Devido à importância da intencionalidade para o mundo da arte atual, proponho a relativização da ideia de intencionalidade e a subordinação da mesma à interpretação de mundo da arte proposta no primeiro capítulo, para que a intencionalidade seja percebida como uma característica necessária, mas não suficiente para que uma obra de arte seja considerada como tal. Até porque o próprio Danto concorda com essa interpretação e acredito que o problema não existiria se ele não tivesse obstinadamente suprimido o conceito de mundo da arte de sua análise. Logo, o conceito de dom e suas demais repercussões se comportam, dentro da teoria toda, como uma hipótese ad hoc.

Por último resta discorrer sobre o caráter anacrônico da ideia de descredenciamento. É possível concordar com Danto, tendo em vista tanto a filosofia contemporânea quanto a arte contemporânea, mas isso torna-se impraticável se a análise for feita, por exemplo, do ponto de vista dos gregos. Em primeiro lugar, porque o próprio conceito de arte não existia e em segundo, porque Platão está comparando duas formas de educação. Todavia, do ponto de vista dos dois últimos séculos, ou seja, do ponto de vista da arte da forma que é conhecida hoje, essa ideia mostra-se bastante frutífera, pois o descredenciamento se encontra na permanência da utilização dessas teorias como base para estética. Elas são descredenciadoras, pois não têm como objetivo falar sobre a arte, mas sim sobre seus pontos de inter-relação com outros ramos da filosofia116.

No documento Três questões sobre a arte contemporânea (páginas 155-161)