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O lugar comum: Arte é habilidade técnica

No documento Três questões sobre a arte contemporânea (páginas 79-86)

2. O QUESTIONAMENTO DA HABILIDADE TÉCNICA

2.1. O lugar comum: Arte é habilidade técnica

São vários os motivos que levaram ao recrudescimento do problema da compreensão da arte, mas o mais óbvio e forte é que, em pouco mais de cem anos o que é denominado arte no Ocidente se modificou de formas inusitadas e inesperadas. Nem mesmo os integrantes do que Arthur Danto chama de mundo da arte são capazes de compreender todos os movimentos e artistas que fazem parte dele. Isso gerou um distanciamento entre arte e sociedade que acabou por transformar o mundo da arte em algo à parte da vida social, o que piora ainda mais a situação. Devido à ausência de pilares, movimentos ou plataformas explicativas que pudessem estabelecer uma relação entre arte e sociedade, a ensino de arte continuou, na maioria das vezes, se pautando na arte clássica. O primeiro exemplo que vem à mente de um brasileiro comum quando o assunto é arte é a Mona Lisa. Mas o problema não se resume à associação com a arte clássica, ao fato de que seus parâmetros são figurativos e relacionados à arte como uma “Bela Arte”, aquela que se encaixa nos padrões de harmonia e proporção gregos, repaginados pela arte renascentista. Ele está na associação de arte com a pintura e com a capacidade de reproduzir a realidade da melhor maneira possível.

Devido a isso, além do que tradicionalmente é relacionado ao universo artístico propriamente dito, existe uma gama de áreas que normalmente não seriam identificadas dentro dele, às quais a palavra arte vem sendo atribuída. Nas livrarias, pelo menos do mundo Ocidental, existem centenas de livros intitulados a “arte de….”, como, por exemplo, a arte de cozinhar ou a arte de escrever e até “A arte de conjugar verbos espanhóis39”. São variados os predicados

utilizados na composição desses títulos de livro. Além deles, há blogs na internet denominados “A arte de não se importar” ou “A arte de modificar” dentre tantos outros. A questão que se coloca é que tipo de identificação existe entre a palavra arte e toda essa variedade de utilização? Uma das respostas possíveis é a habilidade técnica.

A capacidade de fazer alguma coisa une essa diversidade de usos da palavra arte como adjetivo ou como substantivo. O próprio dicionário traz a associação entre arte e aptidão ou habilidade como uma de suas significações. É importante ressaltar que não há nada de errado em uma mesma palavra ser utilizada com significados diferentes, o problema ocorre quando se utiliza a palavra atribuindo o significado que não cabe naquela determinada situação. E é isso

que acontece no caso da arte. O processo de modificação ocorrido no mundo da arte gerou a perda de referência cultural do que seria considerado como arte, gerando uma confusão entre produção artística e produção técnica.

Desse modo, a associação entre arte e habilidade técnica tornou-se habitual. As pessoas valorizam determinados trabalhos de arte e desvalorizam outros devido à habilidade técnica necessária para a realização do mesmo, a qual é vinculada, principalmente, à capacidade de reproduzir a realidade. Nenhuma das outras habilidades técnicas é considerada como tal socialmente. Até pessoas familiarizadas com o mundo da arte tendem a ressaltar o esforço desprendido na realização de algo. Desenhos hiper-realistas, como os do artista Sérgio Vaz, geram esse tipo de afirmação.

Figura 12. Sérgio Vaz, Exposição “A imagem e o vazio”, 2010

Ao ver trabalhos como esses, o público tende a esquecer a obra quando descobre que é um desenho. O problema deixa de ser a obra e passa a ser a dificuldade de se desenhar com esse grau de precisão e detalhe. A obra de arte some em meio a esse tipo de questionamento. Seria algo semelhante ao que ocorre hoje nas análises cinematográficas e televisivas, quando seus produtos são elogiados pela qualidade de imagem e som.

A arte tradicional contribui para tal situação, na medida em que durante quase quatrocentos anos vigorou a tentativa de desenvolver técnicas para o trabalho artístico, as quais eram consideradas como a forma de fazer arte. Isso acabou por gerar a impressão errada de que, quando se diz “isso é arte” se está dizendo algo sobre a habilidade técnica de alguém. Até porque em nenhum momento da história da arte essa associação pode ser considerada plausível. A habilidade técnica sempre foi um meio e não o objetivo do fazer artístico.

Obviamente, essa confusão possui um lastro que remonta, também, à invenção da arte trabalhada anteriormente. Shiner mostra que um dos focos principais da elaboração de um conceito de arte está na separação entre arte, artefato e artesanato. Essas três coisas têm a habilidade técnica como elo de ligação. Isso significa que com o questionamento dos critérios Iluministas a separação entre essas três coisas se tornou fluida e de difícil elaboração.

Desse modo, há dois motivos que constroem o cenário aqui esboçado: a associação entre arte tradicional e habilidade técnica e a dificuldade de separação entre arte, artefato e artesanato. Afirmações como: “meu filho também faz!” ou “olha o trabalho que isso deu para fazer, é uma obra prima!”, entre outras inúmeras expressões populares, exemplificam a errônea associação entre arte e “saber fazer”. Essa inter-relação leva a uma compreensão deturpada e míope da arte contemporânea, pois não existe nenhum critério de necessidade da técnica para a realização de uma obra de arte, nem uma relação extrínseca entre essa habilidade e a qualidade da mesma.

Vários outros problemas surgem da identificação entre arte e habilidade técnica e o maior deles exige retomar o argumento de Weitz utilizado no primeiro capítulo. A associação entre arte e habilidade técnica é a utilização de um critério valorativo para uma situação classificatória. Sem considerar que esse é um critério valorativo ruim para se falar de arte. Principalmente porque ele é geralmente associado a uma habilidade manual ou ao trabalho que determinada técnica dá, mas também pelo fato de ele ser um critério físico. Se ele fosse adequado, as litogravuras de Escher deveriam ser consideradas as obras primas da arte de todos os tempos.

Figura 13. Maurits Escher, “Relatividade”, 1953 Figura 14. Maurits Escher, “Desenhando mãos”, 1948

A dificuldade está no fato de que elas seriam consideradas obras primas por dois motivos que não são os que fazem delas trabalhos fantásticos, apenas dão a condição de o serem. Eles são: o fato de serem litogravuras e de serem desenhos excepcionalmente complexos. A litogravura é a técnica de gravura que exige a maior quantidade de trabalho manual. Trabalhar com a pedra para obter resultados como os mostrados acima exige não somente habilidade, mas também força física. A dificuldade dos desenhos é óbvia, e a associamos com a incapacidade de a maioria das pessoas fazê-los, também. Adicione a essa dificuldade o fato de eles serem gravados na pedra e não em papel. Automaticamente, o diálogo sobre as obras se transferiu para um problema pessoal, o do eu não consigo fazer e, por isso, valorizo o trabalho. Eu, pessoalmente, não consigo fazer uma variedade enorme de coisas e nem todas elas eu valorizo ou gostaria de ser capaz de fazer. Por exemplo, eu não sei consertar um carro e me sinto extremamente feliz por existir a figura do mecânico, já que não tenho nem a remota intenção de aprender a fazê-lo. Eu não tenho a habilidade de decorar bolos, transformando-os em esculturas de glacê, e eu não valorizo isso, porque considero o glacê um elemento indesejável em algo que deveria ser altamente desejável. Nesse sentido, os trabalhos de Escher seriam considerados perfeitos pelos motivos errados.

A habilidade técnica não é somente uma característica pobre para ser atribuída à arte, ela gera outras dificuldades. O mundo contemporâneo, com todo seu desenvolvimento industrial, retirou do homem a capacidade de fazer os objetos mais perfeitos, essa atribuição é atualmente das máquinas. Se o critério, como a teoria da habilidade técnica propõe, é imitar a realidade o mais perfeitamente possível, o desenho, a pintura e a gravura deveriam ser considerados como artes menores, já que a fotografia foi inventada. Problematizando ainda mais a questão, se é a capacidade de desenhar ou pintar alguma coisa que faz de um trabalho uma obra de arte, tanto as impressoras deveriam ser consideradas artistas, como todo artesanato deveria ser incluído no que é chamado de arte.

A questão que ainda não foi abordada é o porquê de a habilidade técnica ter deixado de ser considerada uma característica da arte. Para responder essa questão, é preciso retomar Duchamp. Realizados durante a segunda década do século XX, eles tornaram visível a transformação que foi cristalizada durante as próximas décadas, qual seja: a dissociação do fazer artístico de qualquer habilidade técnica, pelo menos enquanto necessidade. Os readymades negam a habilidade técnica e o próprio ato de fazer você mesmo sua obra de arte. Nesse caso, ao contrário do argumento expresso no capítulo um, os outros dadás não podem ser incluídos. Mesmo Warhol não pode ser utilizado para estabelecer essa demarcação, pois suas caixas eram feitas por ele, não eram as caixas do supermercado. Nesse quesito especificamente,

o fato de Duchamp40 ter apresentado um objeto simples, sem quaisquer adornos ou intervenções, coloca dois problemas principais: a questão da habilidade técnica e consequentemente, a questão da autoria da obra de arte. Com os readymades Duchamp coloca questões como: o que é uma obra de arte? O que configura a autoria de um trabalho de arte? Quais são os pressupostos do fazer artístico? Como deve ser a experiência com uma obra de arte? A partir do momento em que um objeto qualquer, feito por uma indústria, é considerado como obra de arte, toda a estrutura do pensamento sobre a arte deve se modificar. Automaticamente, outras obras de arte que também não respeitam o tradicional modo de fazer começam a surgir.

Assim, essas questões se tornaram cada vez mais presentes em outras obras, passaram a fazer parte da arte. Pode-se usar como exemplo o trabalho de Hélio Oiticica. Seus “Parangolés” foram feitos com o objetivo de ser uma espécie de antiobra, no sentido que ela poderia figurar como exemplo em qualquer das questões que organizam essa tese.

Figura 15. Hélio Oiticica, “Parangolé”, 1964

Eles tanto não exigem habilidade técnica que o artista fez instruções do tipo “faça você mesmo”. Além disso, são como uma espécie de pintura viva, pois é no movimento que as cores e nuances se mostram. Se compreendidos como uma espécie de pintura eles são a negação da forma tradicional desse tipo de arte.

Retomando o argumento de Larry Shiner exposto acima, o objetivo da criação do conceito de arte que é conhecido hoje foi a separação entre arte, artesanato e artesão. Logo,

deveria ser considerada como óbvia a tentativa dos próximos séculos de separar totalmente habilidade técnica de habilidade artística, pois isso ligava o artista ao artesão. É claro que não pretendo afirmar que não são necessárias habilidades técnicas para arte, mas sim que elas só são necessárias dependendo do que o artista escolher fazer. Assim, a habilidade técnica se transformou em uma possibilidade entre várias outras. O que leva a outra faceta do argumento apresentado por Shiner, a respeito da tríade supracitada. A separação projetada pelo Iluminismo tanto deu condições para a arte se modificar quanto acabou se mostrando inoperante após a modernidade. Devido à ampliação das possibilidades artísticas, os limites entre as várias artes tornaram-se fluidos depois que trabalhos, antes pertencentes às duas outras categorias, artefato e artesanato, passaram a pertencer ao mundo da arte. A inclusão da arte primitiva nos espaços museológicos é disso um sintoma.

Segundo Riout, a história da arte foi criada a partir de uma visão eurocentrista do mundo sem considerar a existência de nada além da sua própria produção. Foi o colonialismo, principalmente africano, o responsável pelo início de uma mudança (RIOUT, 2008, p.254). A categoria da arte primitiva passou a existir no início do século XX, juntamente com as vanguardas modernistas (RIOUT, 2008, p.256). O autor defende que o alargamento do conceito de arte começa com o interesse dos artistas pela produção primitiva. São esses que dão status de objeto de arte à produção artesanal do mundo não Ocidental. O nome arte primitiva surge como uma espécie de “explicação” da diferença existente (RIOUT, 2008, p.258-9).

A inclusão da arte primitiva na história da arte Ocidental recrudesce o processo de negação da técnica tradicional e, consequentemente, da habilidade técnica em si. Pensando dentro do escopo da arte institucionalizada essa inclusão marca uma espécie de retrocesso técnico. Logo, marca também o início de outra forma de perceber a arte. Riout cita Picasso com o intuito de explicar o porquê da fascinação pela “arte primitiva”. Ao descrever o processo tribal de dar forma e cor ao desconhecido, Picasso diz:

E, então, eu compreendi que esse era o significado da pintura. Não é um processo estético, é uma forma de magia que se interpõe entre o universo hostil e nós, uma forma de tomar o poder, ao impor uma forma aos nossos terrores e aos nossos desejos. O dia em que compreendi isso eu encontrei meu caminho41 (Pablo Picasso, Propos sur L'art, p. 116 in RIOUT, 2008, p. 260).

Riout afirma que a associação da arte selvagem e da arte popular à arte propriamente dita foi uma espécie de arma contra o academicismo e o conformismo (RIOUT, 2008, p. 270),

41“Et alors j’ai compris que c’était le sens même de la peinture, Ce n’est pas un processus esthétique, c’est une

forme de magie qui s’interpose entre l’univers hostile et nous, une façon de saisir le pouvoir, en imposant une forme à nos terreurs comme à nos désirs. Le jour où j’ai compris cela, je sus que j’avais trouvé mon chemin”.

ou seja, o questionamento da habilidade técnica inicia-se na tentativa de lutar contra as amarras das regras e modos de fazer da arte. Ao mesmo tempo em que a inserção dessas novas categorias coloca um problema para o fazer artístico tradicional, ela também questiona o modo de ser da arte, pois com a dissolução das barreiras entre arte, artefato e artesanato, os limites existentes entre as próprias artes começam a ser questionados.

Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o questionamento da habilidade técnica não se restringe às artes visuais. A música, a dança e o teatro passam pelo mesmo processo. A companhia de dança da bailarina Pina Bausch, o Tanztheater Wuppertal, questiona a forma tradicional da dança e mistura teatro, performance, música e dança propriamente dita. Tomando como exemplo o espetáculo Nelken (Carnantions) mostrado na figura abaixo, pode- se perceber, em apenas uma imagem, o quanto os trabalhos de Pina se dissociam do que é conhecido como dança clássica. Esta possui uma estrutura de regras e de técnicas extremamente apuradas, que fazem com que a escolha dessa profissão tenha que ser uma escolha dos pais da criança, visto que a formação física da mesma precisa acontecer permeada pelos movimentos exigidos pela dança. Adultos não conseguem ser excelentes bailarinos, pois seus corpos não se conformam aos movimentos.

Figura 16. Pina Bausch, “Nelken”, 1982

Portanto, a associação da arte com a habilidade técnica é resquício do modo de fazer arte tradicional e que aponta uma situação reacionária em relação às modificações ocorridas na arte. Dessa forma, o objetivo deste capítulo é tentar compreender, a partir desse recorte, como o fim da relação necessária entre arte e habilidade técnica mudou a forma de fazer arte e quais as consequências disso.

No documento Três questões sobre a arte contemporânea (páginas 79-86)