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CAPÍTULO V – Referências para a Inclusão Artesanal

5.3. Experiências artesanais de inclusão escolar

5.3.2. Antônio, entre o autista e o artista: repetir, emergir, negociar,

5.3.2.3. Artesanato: artesão, ato educativo e arte

5.3.2.3.3. Eis que surge um fotógrafo

Antônio passou a demonstrar interesse em fotografar no ano letivo de 2017/2018. A fotografia não chamava a atenção da equipe de supervisão durante as reuniões. Porém, em uma determinada ocasião, no segundo semestre de 2018, o acompanhante pediu permissão a Antônio para fotografar o desenho que ele tinha feito. Em seguida, o acompanhante perguntou se o estudante não queria fotografar a si mesmo e entregou-lhe

194 um celular. Antônio tirou várias fotografias, de vários ângulos distintos. Ele devolveu o celular para o acompanhante, organizou seus desenhos em uma pilha, falou “pronto” e pediu o celular novamente para tirar novas fotografias.

No dia seguinte, Antônio pediu novamente o celular e começou a fotografar o lugar onde estavam. Ele passou a tirar fotos da professora, de partes do corpo das pessoas, tais como pés e mãos, e dos espaços físicos da escola. Dali em diante, o acompanhante passou a atribuir valor estético àquelas fotografias, pois eram muito bonitas. Concomitantemente, Antônio passou a mostrar interesse e habilidade para fotografar. Ele começou a utilizar a fotografia como um meio de interação com o outro.

O olhar e a sensibilidade do acompanhante, neste sentido, foram muito importantes. As fotos de Antônio revelavam algo do seu desejo e curiosidade sobre o mundo. As fotografias foram ganhando significado e beleza. Eram fotografias dos seus professores, de partes do corpo das pessoas e da estrutura física da escola.

Em supervisão, a equipe compreendeu que ali estava surgindo um novo lugar para Antônio: um lugar de fotógrafo. O acompanhante passou a mostrar as fotografias para os professores, conversou sobre a habilidade artística do mesmo, chamou a atenção daquela comunidade para o conteúdo expresso naquelas fotografias. A intenção foi divulgar e compartilhar aquilo que estava emergindo em Antônio para que ele fosse visto a partir de um outro lugar, diferente do lugar de um estudante autista.

Como o final do ano estava chegando, a equipe de supervisão pensou em propor para a escola a realização de uma exposição das fotografias de Antônio, para divulgação do seu trabalho como artista. A proposta foi que toda a comunidade escolar teria acesso

195 às fotografias. Os professores gostaram da ideia e prepararam a exposição com dedicação, interesse e muito investimento afetivo. As fotografias foram expostas no corredor das salas de aula. Elas foram vistas por todos que passavam por ali. Antônio viu suas fotografias expostas nos corredores da sua escola. Aquele foi um momento especialmente importante e de grande emoção para ele e para todos que o acompanharam naquele ano.

A exposição apresentou algumas das fotografias que estão logo abaixo. Optamos por selecionar as fotografias que não identificassem pessoas ou o nome da escola para preservar a identidade dos professores e estudantes.

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Figura 3 - – Exposição das fotos de Antônio na sua escola (2018)

Essa não tinha sido a primeira experiência com a fotografia durante o processo de escolarização de Antônio. Na sua escola anterior, no final do ano de 2016, a acompanhante produziu, em acordo e diálogo com a escola, um álbum de fotografias de Antônio. Naquele álbum havia fotografias de Antônio com os seus colegas, professores e funcionários. Em algumas das fotografias ele aparecia e, em outras, não. Entretanto, toda a comunidade escolar se envolveu com aquele álbum de recordação, que representava uma despedida e a finalização de um ciclo escolar, pois no ano seguinte Antônio não permaneceria naquela escola. Essa foi uma forma cuidadosa de auxiliar Antônio na elaboração de sua despedida e saída. A atividade envolveu os colegas e demais atores escolares. No seu último dia de aula, a acompanhante separou um momento para visualizar as páginas do álbum com Antônio. Essa atividade foi realizada durante uma caminhada pela escola. Ambos aproveitaram para se despedirem de algumas pessoas.

Naquela primeira escola, Antônio foi fotografado e convidado a ver as fotografias. Ele foi o objeto da fotografia, não o fotógrafo. O álbum foi organizado pela acompanhante porque Antônio ainda não se envolvia em todas as atividades. Ele foi convidado a participar da organização do álbum e parecia reconhecer, através das fotografias, cada momento vivido daquela experiência escolar.

Em 2018, na experiência mencionada na nova escola, Antônio passou do lugar do objeto da fotografia ao lugar de fotógrafo. O convite e convocação do acompanhante foi um momento simbólico muito importante. Antônio passou a escolher os conteúdos das fotografias, os ângulos e as perspectivas, assumindo uma posição de sujeito. Como metáfora do avanço nos aspectos constitutivos, compreendemos que passar de objeto

197 fotografado para sujeito fotógrafo pode representar a passagem de um adolescente interpretado para o sujeito intérprete que interpreta o mundo e a si mesmo (Soler, 2005). Como intérprete e sujeito, Antônio pôde ser visto para além do diagnóstico de autista. Ele passou a ser visto como um artista. Ele podia usar da criatividade, com suas marcas e gestos, para expressar algo do seu desejo e expor essas marcas para o outro. Vale lembrar daquilo que nos ensina Kupfer (2013):

O artista é aquele que, frente a uma experiência perturbadora, possui recursos para subvertê-la, transformá-la em algo novo (a obra de arte) e oferecer isto à apreciação de um outro. A criatividade diz respeito a “gestos” que um sujeito pode produzir na vida, que têm um caráter transgressivo, transformador. Gestos que respondem à necessidade do sujeito de se exprimir e de se guiar pelo próprio desejo (p. 101)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomando a questão central desta tese, qual seja, quais são as características e elementos relativos ao processo de inclusão escolar de estudantes autistas que mostram indicativos de uma prática inclusiva artesanal?, compreendemos que o estudo revelou que uma inclusão artesanal é fundamental em um tempo e contexto no qual a inclusão escolar tem sido institucionalizada e implementada a partir de um modelo seriado, do tipo “pacote”, ou seja, em um mesmo modelo para todos.

Através dos processos de inclusão escolar vivenciados por Tiago e por Antônio, e dos relatos das experiências dos acompanhantes terapêuticos escolares, identificamos que uma inclusão artesanal deve ser realizada por sujeitos artesãos (professores, acompanhantes terapêuticos escolares, auxiliares do desenvolvimento infantil, entre outros), sendo a própria criança uma artesã em seu processo educativo. Tais artesãos partem dos efeitos das suas experiências educativas, com um saber inconsciente que ultrapassa o conhecimento técnico, e produzem marcas simbólicas ao trabalharem em sua produção artesanal ou naquilo que chamamos de artesanato. Tais marcas podem ser representadas pelo ato educativo, fundamental para uma produção artesanal constitutiva.

Nesse sentido, identificamos, caracterizamos e analisamos algumas estratégias utilizadas pelos professores em suas práticas inclusivas, entendendo que existem especificidades referentes ao lugar que estes ocupam na relação transferencial com seus alunos. O artesão professor é aquele que precisa apostar em um sujeito de desejo e de aprendizagem, representando também uma figura d e lei (regra-lei-código e lei simbólica). Os auxiliares do desenvolvimento infantil apareceram na experiência com Antônio como

199 aqueles que estão sendo convocados a atuar em uma espécie de acompanhamento, porém com a responsabildade sobre aspectos de locomoção e higiene, por exemplo (correspondentes à função do profissional de apoio escolar, de acordo com a LBI/2015). Entretanto, outros aspectos passam a convocá-los, como aqueles referentes a uma demanda pedagógica e/ou subjetiva. Consideramos que os auxiliares, dependendo do modo como se posicionam na relação com a criança, podem atuar como artesãos, visto que algo pode operar a partir do laço transferencial. Identificamos características de artesanalidade na atuação de alguns auxiliares, tais como desejo, intencionalidade e inventividade.

O acompanhante terapêutico escolar foi caracterizado como aquele que atua “entre” o estudante e o outro, sempre na perspectiva de instaurar um enlace, possibilitanto uma circulação social possível e ofertando, ao estudante, um lugar de sujeito. Dessa forma, intenciona-se que a criança possa sustentar tal processo como artesã na experiência de inclusão escolar. Isso se refere à atuação do acompanhante com o aluno, mas o profissional também, não raras vezes, oferta uma escuta ao professor e à família, além de produzir questões na escola, abrindo possibilidades para o diálogo e implicação subjetiva dos atores escolares, pois passam se interrogar sobre suas próprias práticas e, assim, produzem saberes sobre si mesmos e sobre o fazer pedagógico (Nascimento, 2015; Spagnuolo, 2017).

Compreendemos, neste estudo, que existem especificidades na atuação do acompanhante, tal como a necessidade de debruçar-se sobre os aspectos subjetivos entraleçados na experiência educativa. Neste sentido, o professor tem o seu papel e seu lugar na relação transferencial com seu aluno, assim como o acompanhante terapêutico

200 escolar e o auxiliar do desenvolvimento infantil. As semelhanças entre a atuação desses profissionais partem do fato de que algo pode se operar entre um adulto e uma criança baseado no laço transferencial. Esse “algo” refere-se ao ato educativo, que não se encontra exatamente e apenas na apropriação teórica.

Muitas vezes, o ato educativo pode vir a ser renunciado se o adulto privilegiar um saber técnico ou for orientado por procedimentos metodológicos sem considerar a relação transferencial estabalecida no processo educativo. O ato educativo não está baseado em um justificacionismo tecnocientificista (Lajonquière,2017), mas, sobretudo, na relação transferencial. O conhecimento técnico – ou uma tecnicização -, muitas vezes, padroniza os procedimentos e as ações educativas e não deixa espaço para que algo do sujeito possa advir. Na verdade, ele consola os adultos, os quais podem economizar um trabalho psíquico na tarefa de educar (Lajonquière, 2019) por estarem sob o efeito da ilusão da adaptação, de ilusões psicopedagógicas (Lajonquière,1999). Compreendemos, assim, que uma atitude não educativa “empacota” os estudantes, apaga o sujeito. Defendo nesta tese, portanto, que é pela via da educação artesanal que podemos criar e cultivar aberturas e espaço para a instauração do ato educativo.

Para isso, defendemos que não se trata de partir exclusivamente de uma técnica, mas sim de uma ética. Ética essa que, a partir da noção lacaniana, permite um engajamento subjetivo (Imbert, 2001). Isso possibilita a abertura de espaço para uma atuação com os estudantes e com os profissionais, deslocando-se de uma obrigatoriedade e responsabilidade jurídica e moral sobre a questão da inclusão escolar para uma implicação subjetiva (Lerner, 2013). Compreendemos que nem todos os artesãos são marcados por uma ética, muito menos que os atores escolares são artesãos em todas as