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4. A CONSTRUÇÃO DA FIGURA DO PADRE CÍCERO

4.1 A elaboração da literatura especializada

“O PADRE CÍCERO é um cruciante ponto de interrogação para quase todo o mundo. Nem mesmo os que com ele privaram e com ele viveram conseguiram jamais decifrar, inteiramente, sua psique, penetrar no âmago de sua mentalidade, tocar as raízes de sua ímpar atuação. Mutatis mutandis, foi ele, perenemente, um objeto de contradição não somente na região onde nasceu e onde passou toda a vida pública, porém ainda mais longe, onde quer que chegou a repercussão de seu nome”.

Sobreira (2011, p .61)

Sacerdote católico nascido em 24 de março de 1844 no município do Crato – Ceará79, Cícero Romão Batista, o “Padim Ciço” na devoção popular, era filho do pequeno

comerciante Joaquim Romão Batista e Joaquina Ferreira Gastão – a Dona Quinô – tendo como irmãs Maria Angélica Romana, a Mariquinha e Angélica Vicência Romana. Ordenado na catedral de Fortaleza em 1870, celebra missa pela primeira vez em 1871 na comunidade rural que hoje é a cidade de Juazeiro do Norte, onde fixou residência e foi nomeado capelão da Capela de Nossa Senhora das Dores no ano de 1872.

Reconhecido por muitos pela sua dedicação ao compromisso religioso e pela atuação político-eclesial em favor dos oprimidos, “sobe aos céus” em 20 de julho de 1934, ficando como o “Patriarca do Juazeiro”, o “Conselheiro do Sertão” para milhares de

79 A maior parte da literatura referencia essa data, no entanto, recente achado dos pesquisadores Daniel

Walker e Renato Casimiro em 2018 possibilitou o acesso à menção ao nascimento em 23 de março. Trata- se do Livro de Batizados da Paróquia de Nossa Senhora da Penha da cidade do Crato, assentamento dado sob subscrição do pároco de então, Manoel Joaquim Aires do Nascimento. O registro pode ser encontrado no site de pesquisas genealógicas mantida pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (https://www.familysearch.org) em “Registros da Igreja Católica, 1725-1971” - registros de batismo, casamento e óbito criados por várias paróquias e dioceses católicas do estado de Ceará – “Documentos eclesiásticos da Diocese do Crato, 1815-1954”. É a imagem Nº 70, disponível entre outras em: https://www.familysearch.org/search/collection/2175764. Acesso em: 2 abr. 2018.

pessoas que hoje clamam: Meu padrinho... Quantas saudades o senhor deixou entre nós!

Hoje, vivo em nossas lutas, dai mais força à nossa voz!80

Afinal, quem foi realmente o padre Cícero? Investigadores desse personagem sabem o quanto é complexo trazer uma resposta para esse questionamento, como ratificou o padre Azarias Sobreira (2011, p. 59-61), ao expor que nele [o padre Cícero], “se encontravam as marcas mais disparatadas que costumam assinalar as individualidades”. Dizendo que nele moram certos aspectos de santos e líderes81, constituindo para todos

que o estudam “um enigma”, metaforiza o escritor: “Não era nem arroio manso e tranquilo, de águas claras e silenciosas; nem também uma torrente impetuosa e gritante, com imprevistos remansos e cachoeiras. Porque era tudo isto ao mesmo tempo”.

As publicações voltadas para essa temática trazem os mais diversos posicionamentos, contrários ou em defesa do fundador do município de Juazeiro do Norte – Ceará, em virtude de suas influentes ações e polêmicas delas decorrentes. Há, no entanto, autores que anunciam uma pretensa neutralidade sobre o assunto, tentando apresentar fatos, causas, consequências ou opinião de outras pessoas, mas terminam por trazer alguma definição de quem seja o padre em questão. Tal atitude é inevitável, uma vez que toda seleção do que se diz sobre alguém já indica um posicionamento prévio.

O padre Cícero é aquele personagem histórico que, mesmo depois de mais de 80 anos de sua morte, continua tendo sua imagem sempre ressignificada, sendo objeto de estudo em diferentes dimensões do conhecimento como Educação, Sociologia, História, Psicologia, Teologia, Ciências da Religião e Antropologia.

80 Neste bendito, o devoto parece dialogicamente clamar para que a sua voz seja dita e escutada. Facilmente

este hino é entoado nas Renovações ao Sagrado Coração de Jesus – SCJ – nos lares de Juazeiro do Norte, celebração que ocorre uma vez ao ano em cada família que a adere (inclusive na minha) e que nessa cidade foi recomendação, segundo alguns praticantes, do padre Cícero (para que se evitasse “ficar nas calçadas falando da vida alheia”, disse um rezador-celebrante numa Renovação que presenciei). Em geral, o culto ao SCJ vinha sendo instituído pela Igreja desde o século XVIII. No caso cearense, fez parte do processo de romanização do catolicismo* brasileiro do século XIX como projeto de moralização da população pós laicização do Estado. Era a substituição do “catolicismo colonial” do Brasil pelo “catolicismo universalista” de Roma. Acerca disso, ver: Della Cava (1976, p. 32). *Termo originalmente utilizado por Rui Barbosa, no ensejo da chamada “questão religiosa” (1872-1875). Cf. Aquino (2013, p. 1485).

81 Notadamente Santo Cura d’Ars (São João Maria Vianney, sacerdote católico francês, 1786-1859, 73

anos), pelo “zelo da Glória de Deus”; São Vicente de Paulo (sacerdote católico francês, 1581-1660, 79 anos), pela ”paciência; São Francisco de Sales (o francês Doutor da Igreja e “doutor da doçura”, 1567- 1622, 55 anos), pela “mansidão e pureza”, dons de “consolar e aconselhar”; Eutíquio (Santo Eutíquio de Constantinopla, 512-582, 70 anos), pelo temor, “respeitoso silêncio” e obediência; Savonarola (Padre dominicano italiano Jerônimo Savonarola, 1452-1498, 46 anos), pela ‘’coragem das próprias convicções”, pelos “pendores políticos tendo em mira a salvaguarda e o progresso de seu povo e popularidade adquirida”; e Antônio Conselheiro (Antônio Vivente Mendes Maciel, cearense líder religioso do arraial de Canudos, Bahia, 1830-1897, 67 anos) pelo “messianismo restaurador”, pela pelo idealismo, “austeridade monástica”. Assim compara Sobreira (2011, p. 6-67).

Muitas discussões em torno do padre Cícero trazem como embates ideias que se fixam em dizer se esse sacerdote foi/é ou não foi/é santo, se foi ou não apenas um “coronel de batina” envolvido com conflitos político-partidários sangrentos, se será ou não beatificado e canonizado pela Igreja Católica, num limite que às vezes se distancia da compreensão das contribuições de Cícero Romão Batista no desenvolvimento da região do Cariri cearense e na vida de milhares de nordestinos e outros brasileiros, em especial os oprimidos.

Alguns questionam: Foi um padre que acumulou largo patrimônio à custa das esmolas e doações dos fiéis, cada vez mais aumentando seu desejo pelo poder? Era um visionário apóstolo que soube entender a linguagem do povo, converteu multidões e mesmo assim foi injustiçado? Quem foi esse misterioso homem que, mesmo sob ameaça de excomunhão, “arrebatou o coração das massas e passou à memória coletiva e ao panteão popular como o santo Padim Ciço?” (NETO, 2009, p. 14). Não falta quem disserte respondendo que sim ou que não a essas perguntas, ou, ainda, que tente de algum modo expressar suas percepções considerando as contradições na trajetória do levita.

“Inteligência, altruísmo, astúcia (ou, quem sabe, apenas o singelo ou humílimo e sempre miraculoso amor?) foram as suas armas.”, interroga e aventa a escritora Rachel de Queiroz por ocasião do centenário de nascimento do padre, em crônica de 1944, dez anos após a morte deste (QUEIROZ, 2004, p. 35, grifo da autora). E atesta, depois de dizer que conheceu o clérigo quando o mesmo já tinha mais de oitenta anos (Ibid., p. 38):

[...] E recebendo tanto dinheiro – sendo tão rico que o seu testamento transcrito num livro enche vinte e cinco páginas – Meu Padrinho nada possuía de seu. Usava uma batina que de tão velha já era verde, recortada de remendos, curta e humilde como o burel dos esmoleres. Comia apenas leite e arroz. Dormia numa rede, morava numa casa de telha-vã. Era unicamente o intermediário das esmolas, o traço entre a mão do doador e a mão do socorrido. Ainda há muita gente viva que disso pode servir de testemunha e não me há de deixar mentir.

Antagonicamente ao assinalado por Rachel, propala o historiador Otacílio Anselmo (1968, p. 504): “A verdade é que o Pe. Cícero transpusera os umbrais da idade média preocupado apenas com a manutenção do fanatismo religioso, associado à mistificação populista, tendo em vista sua estabilidade econômica, política e social”. Antes, ao final do capítulo “O Sacerdócio”, depois de positiva e negativamente descrevê- lo como “místico e visionário”, afável, modesto, zeloso e bondoso sacerdote “até à manifestação dos ‘milagres’”, conclui asseverando que “somente esses detalhes são insuficientes para se chegar a uma conclusão definitiva em torno do vicariato meteórico

do Pe. Cícero” (Ibid. p. 60 e 66), numa reafirmação à difícil ocupação de tentar compreendê-lo.

Exemplos como estes e aqueles que se refutam são comuns entre as publicações sobre o padre Cícero. No desenvolvimento dos escritos encontramos elementos discursivos com tentativas de construção/desconstrução da santidade do padre, de mitificação/desmitificação dos fenômenos a ele relacionados.

Entre as produções que trazem sua trajetória de vida, suas atuações no campo religioso e político-econômico – os de vertente biográfica – articulam-se dois tipos de escritos: os textos apologéticos que evocam o padre Cícero e os fenômenos “santos” de Juazeiro; e aqueles que negam essas possibilidades, trazendo críticas e contraposições aos possíveis fatos e mitos.

No primeiro caso, a favor do padre Cícero, temos como exemplos: Mistérios

do Joaseiro, do memorialista Manuel Pereira Diniz (1935); O Padre Cícero que eu

conheci (1963) da professora/memorialista Amália Xavier de Oliveira; O Padre e a

Beata: vida do Padre Cícero (1969), do escritor Nertan Macedo; O Joaseiro do Padre

Cícero e a Revolução de 14 (1938) e Efemérides do Cariri (1963), do historiador Irineu Pinheiro; O Patriarca de Juazeiro (1969), do padre Azarias Sobreira; Falta um defensor

para o Padre Cícero (1983), do padre Antônio Feitosa; Padre Cícero e a opção pelos

pobres (1984) e As Virtudes do Padre Cícero (1991), de Neri Feitosa; Padre Cícero: do

milagre à farsa do julgamento (1998), da pesquisadora Fátima Menezes.

No segundo caso, contrários à boa parte da abordagem anterior, que acusam o padre Cícero de heresia, fanatismo, megalomania, de não ser um bom orador ou de ser embusteiro, eis alguns: Joazeiro do Cariry (1913), do padre Alencar Peixoto; A Sedição

de Juazeiro (1915) do médico e escritor Rodolfo Teófilo; Juazeiro do Padre Cícero:

cenas e quadros do fanatismo no Nordeste (1926), do jornalista e educador Lourenço Filho; Padre Cícero, Mito e Realidade (1968), do historiador Otacílio Anselmo; e O

Apostolado do Embuste (1969), do padre Antônio Gomes de Araújo.

No âmbito acadêmico, seguem outros trabalhos referenciais já publicados como resultados de pesquisas, muitas de pós-graduação, que reportam a história do padre Cícero e as temáticas que o envolvem, a exemplo dos eventos políticos e das romarias. Muitas outras importantes pesquisas buscam ouvir as vozes dos romeiros e romeiras de fora e dos citadinos juazeirenses, seja através das cartas direcionadas ao padre Cícero, seja pelos testemunhos orais. Há, também, investigações em torno dos narradores no campo da literatura, além das tentativas de “ouvir” o próprio padre a partir de suas

correspondências. São pesquisas que intentam compreender e aprender a ver a complexidade dos fenômenos religiosos de Juazeiro do Norte, ficando estes revelados como algo que está em processo contínuo de recriação.82

Essas múltiplas abordagens, bem como as produções apresentadas nas cinco versões do “Simpósio Internacional do Padre Cícero” – realizado em Crato e Juazeiro do Norte em parceria com a Universidade Regional do Cariri – URCA e o Instituto José Marrocos de Pesquisas e Estudos Socioculturais – IPESC, são importantes fundamentos para a elaboração de um “estado da questão”83 (NÓBREGA-THERRIEN e THERRIEN,

2014) sobre como nosso objeto de investigação – visões sobre o padre Cícero – se encontra atualmente.

Como anunciado na apresentação deste capítulo, doravante exploraremos os estudos empreendidos pela belga da cidade de Liège, hoje cidadã juazeirense, a doutora em Ciências da Educação pela Universidade Católica de Lovaina, Bélgica, Annette Dumoulin (1935).

Nas singelezas de sua escrita em Padre Cícero: Santo dos pobres, santo da

Igreja – Revisões históricas e reconciliação (2017), um dos frutos de mais de 40 anos de

pesquisa da autora sobre esse sacerdote, encontramos muitas perguntas que para ela foram surgindo a partir de suas leituras de livros com inferências ao ódio ou à paixão pelo padre Cícero. Eis algumas delas: “Quem é ele?”, “Onde podemos conhecê-lo de verdade?”, “Onde está ele?”, “Onde se esconde sua verdadeira personalidade nesse amontoado de opiniões e afirmações contraditórias?” (p. 29). Essas questões mantêm relação com o nosso propósito nesse trabalho, que inicialmente interrogou por onde e como peregrina o padre Cícero nas escolas de Juazeiro do Norte. Mais questões que suscitam outras investigações sobre o clérigo em outras dimensões, inclusive na educação.

O trabalho de doutorado de sua companheira de pesquisa84 envolvendo escuta

e análises de entrevistas com devotos do padre Cícero ajudou-as a descobrir onde poderia estar o verdadeiro padrinho dentro da cultura romeira. Elas encontraram “o padre Cícero”

82 Ver: Apêndice I (p. 181).

83 Configura o esclarecimento da posição do pesquisador e de seu objeto de estudo na elaboração de um

texto narrativo, a concepção de ciência e a contribuição epistêmica do mesmo no campo do conhecimento. Tem por finalidade propelir o pesquisador a registrar, a partir de um rigoroso levantamento bibliográfico, como se encontra o tema ou o objeto de sua investigação no estado atual da ciência ao seu alcance.

84 GUIMARÃES, Therezinha Stella. Padre Cícero e a nação romeira – Estudo psicológico da função de

um “Santo” no catolicismo popular. Coleção Centenário. Fortaleza: IMEPH, 2011. Conhecida como Irmã Ana Teresa, a autora pertencia à mesma Congregação de Dumoulin.

nos próprios escritos do sacerdote85 e “no coração e na mente dos seus afilhados e

romeiros”, onde se tem um padre Cícero vivo, a quem Dumoulin diz ter aprendido a “conhecer, amar, respeitar, admirar, defender” (2017, p. 34).

As pesquisas e as ações pastorais das Irmãs Ana Teresa e Annette Dumoulin entre outras ações, foram providenciais para que hoje o padre Cícero tivesse o atual reconhecimento por parte da Igreja Católica, que por muitos anos silenciou e “fez silenciar” acerca das sucessivas manifestações sobrenaturais de êxtase, estigmas e hóstia sagrada convertida em sangue nos casos místicos da beata Maria de Araújo.86

Um exemplo da intrepidez das irmãs foi se unirem ao então padre Francisco Murilo de Sá Barreto e às Universidades para realizarem o I Simpósio Internacional sobre o padre Cícero no ano de 198887, o que ampliou a complexidade da temática,

configurando-se, como um dos movimentos de luta pela justiça devida ao padre Cícero, aos seus fiéis seguidores romeiros e mais presentemente a outros protagonistas da história de Juazeiro do Norte, como o abolicionista José Marrocos e a mencionada beata.

Temos na obra mais recente da Irmã Annette um padre Cícero que é “padrinho dos pobres”, que aconselhava a paciência sem passividade ou ociosidade, confiante na providência divina, acolhedor de todos os sofredores da seca e da fome. Conforme suas comunicações através de cartas ou telegramas, vê-se um homem que agia sem preconceitos, com atitudes de respeito e delicadeza, com a evidente característica de colocar-se a serviço do próximo, um homem com o coração “grande como o mundo” (DUMOULIN, 2017, p. 74).

As intensas buscas de Dumoulin trouxeram aportes consistentes de que o padre Cícero tinha uma visão aberta e internacional, era interessado em aprender e usava os conhecimentos adquiridos e sua criatividade no aconselhamento aos residentes e pessoas vindas de outras partes do Nordeste brasileiro. Todos mereciam sua atenção, qualquer que fosse a origem social do interlocutor. Em especial valorizava e se

85 Outra pesquisa favoreceu a publicação de outra obra organizada por Guimarães e Dumoulin (2015) 2ed.:

O Padre Cícero por ele mesmo, reunindo leituras de 130 cartas do padre Cícero datadas de 1874 a 1934. O padre tinha a prática de conservar cópias de seus manuscritos usados como correspondência.

86 Acerca desses fenômenos ver: Leitura comparativa das digitações do Processo instituído sobre os fatos

de Juazeiro material organizado por Guimarães e Dumoulin (2003), disponível no Centro de Psicologia da Religião, por elas fundado. Também, considerar as análises de Nobre (2014) - Incêndios da alma: A beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do Oitocentos. Tese de doutorado disponível em: https://www.capes.gov.br/images/stories/download/pct/premios/225522.pdf. Acesso em: 24 mar. 2018.

87 Na sequência, tivemos: II Simpósio Internacional Padre Cícero - Juazeiro do Padre Cícero e a Beata

Maria de Araújo: um contexto de milagre. (1989); III Simpósio Internacional – Padre Cícero: do Juazeiro E... Quem é ele? (2004); IV Simpósio Internacional – Padre Cícero: E... Onde está ele? (2014); e V Simpósio Internacional – Padre Cícero: Reconciliação... E agora? (2017), atualmente confirmado como proposta de evento bienal.

interessava pelo que os oprimidos lhe apresentavam, partilhando suas descobertas com métodos educativos e ações concretas em torno da oração e do trabalho.

“Incompreendido por muitos e amado por uma multidão” (DUMOULIN, 2017, p. 79), o padre Cícero parecia já atender ao repetido apelo do papa Francisco hoje: para que os religiosos sejam “pastores com cheiro de ovelha”, optando pelas periferias, pelos mais necessitados e atraindo pessoas pelo amor e pela ternura. É esse o religioso encontrado nos estudos da Irmã Annette: um padre que demonstrou um profundo laço pelo povo de Juazeiro.

Como a história nos mostra, é comum que pacifistas, defensores dos direitos humanos e optantes pelo lado dos oprimidos sejam perseguidos e condenados por aqueles que detêm o poder. Com o padre Cícero não foi diferente. É o que vemos em sua trajetória de conflitos, após ficar órfão de pai e ter de deixar o seminário para socorrer a família por conta desse fato, retornou aos estudos somente quase três anos depois. É o que vemos após sua quase censurada ordenação em 1870.

Na primeira fase do seu sacerdócio – até 1º de março de 1889, dia da primeira transformação de hóstia sagrada em sangue na boca da beata Maria de Araújo – padre Cícero bem agiu em prol dos pobres e foi reconhecido pelo bispo do Ceará dom Joaquim Vieira como “sacerdote ilustrado e zeloso”, que ama o Juazeiro, conforme carta a Cícero88, e era visto pelo povo como exemplo vivo das grandes virtudes cristãs, conforme

diz Sobreira (2011, p. 62), que o conheceu de perto.

Ainda nessa fase, a Irmã Annette mostra que o padre Cícero passou por alguns sofrimentos: a desolação pela expulsão do padre Ibiapina89 da Região do Cariri; a aflição

e desespero por conta da seca que passou vendo seu “rebanho” sofrer da fome; a preocupação com a necessidade de falar a esse povo que padecia sobre “Eternidade”, como constatamos em sua carta ao bispo, datada de 20-02-1878.90

A segunda fase que Dumoulin diz ser cheia de mistérios, espantos e de grande sofrimento (Ibid., p. 105) – numa divisão feita por esta e pelo próprio padre Cícero por

88 Cf.: Correspondências do bispo do ano de 1886 e de 1887 em Dumoulin (2017, p. 90 e 98).

89 José Antônio Pereira Ibiapina (1806-1883), missionário católico pelo nordeste brasileiro, influenciou no

desenvolvimento da região caririense do Ceará, construindo casas de caridade, hospitais, cemitérios, capelas, etc. Foi atuante no incentivo ao trabalho em mutirão em favor das comunidades por onde passou, inclusive sendo referência para o padre Cícero. Conforme Dumoulin, (2017, p. 47), como o padre Cícero, Ibiapina foi “um evangelizador com métodos à frente de seu tempo”. O transcurso de sua beatificação segue no Vaticano. Suas ações incomodaram a Igreja que passava pelo processo de “romanização” – reforma da Igreja Católica no Brasil, vinda da Europa.

considerarem o “caso do primeiro milagre”91 como importante marco para as mudanças

em sua trajetória sacerdotal – o clérigo disse, em carta ao bispo diocesano dom Joaquim que estava em Fortaleza, nunca ter se visto em condições tão aflitivas, de grande embaraço, grande repugnância e graves apreensões. Em meio a isso, menciona que os fatos passados com Maria de Araújo foram vistos e observados por milhares de pessoas e que isso tinha trazido conversões em todas as classes e teria feito reviver a fé desse povo. Mesmo assim, muito ele sofreu junto com a beata e com o povo que passou a receber absolvição no ato de confissão apenas se afirmasse não acreditar nos “milagres de Juazeiro”.

Mesmo tendo suspensas as suas funções sacerdotais a partir de 1892, Padre Cícero foi obediente à Igreja, silenciou sobre os “milagres” e proibiu que falassem sobre os mesmos e dos bispos e padres, ensinando a ter paciência, a guardar a fé, a não deixar a Igreja Católica Apostólica Romana, o que Dumoulin diz ser uma das provas da santidade do padre Cícero. (2017, p. 133).

Com incontestáveis manifestações de submissão à Igreja para a qual disse que se preciso daria a própria vida, e cuidadoso para que a religião, a fé e a salvação das