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Elaboração teológica da categoria “criança”

E A SOCIEDADE PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA

4. Elaboração teológica da categoria “criança”

Em alguns artigos dos periódicos do MAAC, sobretudo nos iniciais em que as reflexões conjuntas dos acompanhantes têm um mais incisivo lugar, a criança é equacionada como objeto de uma reflexão de ordem teológica e como objeto de uma experiência de ordem espiritual. Deste modo, a sua contemplação é estimu‑ lada como prática pedagógica, como assim evidencia o excerto seguinte:

“– Como Simeão (Lc. 2, 25‑29), ou como os doutores no templo (Lc. 2, 47) somos capazes de nos deslumbrar com a capacidade das crianças em construir o Mundo Novo em Igreja?

– Como valorizamos nós as suas expressões de fé e nos deixamos interpelar pelos sinais do reino que elas constroem através das suas acções?

De facto a vida e acções das crianças que em grupo transformam a sua vida e o seu meio, são hoje esta esperança viva que a Mensagem de Natal nos vem con‑ firmar!”38.

Propondo‑se novos trâmites na sua perceção, é legitimada uma visão das crianças como sujeitos crentes, que detêm, por isso, direitos de ordem cívica mas também eclesial, refletindo‑se sobre os procedimentos pastorais que as afetam. Com efeito, o adulto não se assume tanto como figura de autoridade mas como agente do reconhecimento das capacidades das crianças e, em particular, do valor simbólico que assumem, tanto por Jesus considerar a identificação com elas como condição determinante da “entrada no Reino de Deus”39, como pelo “poder utó‑

pico” que representam: “A criança é o eterno Messias, que regressa sempre para o meio dos homens caídos, para os conduzir ao Reino dos Céus”40.

37 FONTES, Paulo – A Acção Católica Portuguesa (1933‑1974) e a presença da Igreja em Portugal. Lusita‑ nia Sacra. 6 (1994) p. 99.

38 Crianças em Acção: boletim de Ligação e Informação do Movimento de Apostolado de Crianças. 8 (janei‑ ro‑fevereiro de 1986). Editorial não assinado. [p. 1].

39 Lc 18,16‑17; Mc 10,14‑15; Mt 19,14‑15.

40 Citação de Emerson feita em: Crianças em Acção: boletim de Ligação e Informação do Movimento de Apostolado de Crianças. 10 (maio‑junho de 1986) [p. 1].

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Esta perspetivação da criança, em que é quase aproximada a um quase alter

ego do Messias, terá de enquadrar‑se, ainda que remotamente, no seu enraiza‑

mento na grandeza do corpo teológico da soteriologia católica, que teve em Santo Agostinho o seu principal formulador. Na perspetiva do catolicismo, a criança é idealizada enquanto figuração do homem não‑caído, o mais próximo modelo ao ideal hipotético do homem não pecador, da inocência original e, por isso, prova da viabilidade do programa criador que Deus deseja para o homem. Por conse‑ guinte, ao invés de remeter para a criação como anterioridade, a criança catapulta os homens para o Reino que virá, para o futuro em que se concretizará a ressun‑ ção da inocência, que assim se entende como condição da plenitude humana, tal como ilustra, por exemplo, o seguinte pronunciamento do papa João Paulo II:

“Cristo atribuiu uma enorme importância à criança. Fê‑la quase porta‑voz da causa por Ele proclamada e pela qual Ele deu a própria vida. Fê‑la representante desta causa, a mais simples, quase um seu profeta. O valor da criança em todas as sociedades está no facto de ela ser testemunha da inocência ideada pelo Cria‑ dor e Pai celeste para o homem. Perdida com o pecado, esta inocência deve ser reconquistada por cada um de nós com dificuldade. Nesta fadiga, neste esforço da inteligência, da vontade e do coração, a imagem da criança é para o homem inspiração e fonte de esperança. Deus que, como Pai, chama a todos à própria casa, ajudar‑nos‑á a readquirir a inocência da criança”41.

Por outro lado, sempre que se denota ao longo dos periódicos o esforço de uma explicitação mais identitária do movimento e das suas ações, utilizam‑se com particular recorrência dois conceitos (ou expressões concetuais): um do universo bíblico, “Reino de Deus”, de sabor fortemente messiânico ou mesmo, em algumas perícopes do Novo Testamento, apocalítico; outro que integra sobretudo o domínio da linguagem da Ação Católica e dos elementos que a fundamentam teoricamente, que é o de “transformação” ou “acção transformadora”. A  parte abaixo citada do editorial do n.º 12 do Crianças em Acção (1986), cujo autor é Joaquim Marques42, testifica estes conceitos como pertencentes a uma linguagem

comum.

“Falar das crianças, é falar da sua vida, é falar de um povo pequeno, de um pequeno povo pobre, de um grande povo de Deus. “Se não forem como as crianças não entrareis no Reino de Deus.” O MAC não vive preocupado com o reino de que as crianças fazem parte, mas também com a vida das crianças. (…) Se encarnarmos a vida das crianças, encarnarmos o Reino de Deus e o que as

41 IGREJA CATÓLICA – Papa, 1978‑2005 (João Paulo II) [Angelus de 22 de julho de 1979]. 42 Indicação dúbia por assinar como “Quim”.

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crianças com a nossa ajuda transformam nós construímos o Reino de Deus com a ajuda das Crianças”43.

Um texto de Moltmann, extraído da sua obra Teologia da Esperança, que se encontra no último número da primeira série do Crianças em Acção, publicado em 1989, concretiza a interação entre as duas ideias demarcadas de “Reino” e a de “transformação”:

“Despertar uma esperança viva, pronta a agir e a sofrer, virada para o Reino de Deus que vem à terra para a transformar, eis a missão de todos os cristãos, eis a nossa vocação comum. (…)

O envio não consiste unicamente em difundir a fé e a esperança, mas também promover uma transformação histórica da vida. Não se conformar com este mundo, não quer só dizer transformar‑se a si mesmo, mas quer dizer também transformar, pela sua força e a sua paciência criativa, este mundo onde a gente acredita, espera e ama”44.

Além de ser entendida numa semântica messiânica, “pobre” é outra categoria na qual a de “criança” é associada ou explicada. Quantitativamente, não é tão uti‑ lizado como as anteriores, mas ocorre com um considerável grau de intensidade em alguns artigos de uma explicitação mais incisiva do tema da pobreza, nos quais se incluem os textos de formação cristã em grande medida versados, direta ou indiretamente, sobre a dita temática, quer como matéria da Doutrina Social da Igreja, quer como critério de seleção ou de interpretação das narrativas do Evangelho. Exemplo deste tipo de aprofundamento é um artigo que aponta para a exposição de António Matos Ferreira como convidado para o ANA, Assembleia Nacional de Acompanhantes, de 1984:

“Lembrava ele [o professor António Matos Ferreira], que o MAC é um movi‑ mento das crianças (…). Deus ao nascer menino coloca‑nos numa atitude de abertura àquilo que não conhecemos nem dominamos. Ele nasce menino e menino pobre. E, no Evangelho, o pobre (…) é um elemento de conversão; é a situação que interpela.

43 Crianças em Acção: boletim de Ligação e Informação do Movimento de Apostolado de Crianças. 12 (agos‑ to‑setembro de 1986) [p. 1].

44 A obra Teologia da Esperança foi editada em 1964 e a sua citação encontra‑se em: Crianças em Acção: boletim de Ligação e Informação do Movimento de Apostolado de Adolescentes e Crianças. 23 (novembro‑

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Assim, as crianças em solidariedade umas com as outras se interpelam mutua‑ mente. É importante estar atento ao outro e descobrir formas de solidariedade com as crianças”45.

De modo mais residual, ocorrem outras configurações, das quais se pode destacar a da criança como futuro “homem novo”, uma temática paulina, como profeta46 e ainda uma perspetivação com sabor pneumatológico, como patenteia

o seguinte excerto:

“Mas quanto mais apaixonante ainda é o nosso trabalho se nós descobrirmos aquele que é fonte de todo o dinamismo existente nas crianças! O  Espírito é Dinamismo! As crianças que “mexem”, que movidas no interior delas mesmas aceitam ultrapassar as suas pequenas divisões e procuram entre elas “bondade, justiça e verdade” (Ef. 5, 9) […]”47.

Conclusão

Os textos que constituem a imprensa do MAAC procuram soerguer um novo entendimento das crianças. Fazem‑no em larga medida numa abordagem crí‑ tica à questão da autoridade, da violência e da pobreza concernentes ao mundo infantil, na convocação de três espaços institucionais: o familiar, o escolar, o reli‑ gioso e, mais indiretamente, o político. A novidade nos modos de compreender e de interagir com as crianças consiste na sua consideração como protagonistas da sua própria vivência e capacitadas para lidar com os problemas que as condi‑ cionam. É utilizado para tal um discurso de cariz teológico, o que se evidencia, por exemplo, no emprego de conceitos com forte enraizamento bíblico ou na reflexão indireta acerca do lugar da criança na problemática da salvação. Esta reconstrução teórica parte e conduz de uma reflexão sobre a disponibilidade das estruturas eclesiais de reconhecimento do valor das crianças e de reconfiguração dos seus paradigmas de organização para lhes dar um lugar operativo e, inclu‑ sivamente, alterarem os círculos de lideranças laicais, abrindo‑os aos meios de onde elas vêm, que são por princípio contextos socioeconómicos de pequena ou larga exclusão, lugares de dupla periferia.

45 Crianças em Acção 5 (dezembro de 1984) p. 11.

46 “O MIDADE participou no Sínodo dos bispos sobre o tema ‘Papel dos Leigos na Igreja, 20 anos depois do Concílio Vaticano II’. […] a presidente do MIDADE, Antoinette Prudence, foi convidada a intervir perante a assembleia para fazer salientar o papel profético das crianças e o seu direito ao respeito e à consi‑ deração de todos.” Cf. Crianças em Acção: boletim de Ligação e Informação do Movimento de Apostolado de

Crianças. 19 (junho‑julho de 1988) p. 10.

47 Crianças em Acção: boletim de ligação e de informação do Movimento de Apostolado das Crianças. 7 (novembro‑dezembro de 1985) p. 1.

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Carla Santos* Braga Porto Aveiro Coimbra Leiria‑Fátima Santarém Lisboa Setúbal Funchal Guarda Angra

* Membro do Movimento de Apostolado de Adolescentes e Crianças (MAAC), responsável pelo projeto que deu origem a este livro.

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