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CAPÍTULO IV – A INSERÇÃO DE IDENTIDADES REGIONAIS NO

4.2 Elementos do popular: personagens e figurinos

Um dos primeiros indícios que nos remetem a uma composição estética popular no espetáculo Manuela e o Boto, os quais ajudam na construção de um estilo regional, é a utilização de elementos característicos da farsa14 nos personagens e na construção do enredo da história. Isso pode ser verificado em uma série de princípios utilizados no espetáculo: falta de preocupação com uma mensagem moral (pelo menos na construção do conflito central); busca de um humor que se vale de todos os recursos que dispõe: assuntos introduzidos rapidamente, evitando-se interrupções nas ações ação; ações exageradas e situações inverossímeis; além da recorrência constante de estereótipos (o pai feroz, a filha do patrão, o amante).

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A farsa é uma modalidade burlesca de obra teatral, que tem como um dos princípios característico a utilização de personagens e situações caricatas. Ela difere-se de outros tipos como a alta comédia e a sátira por não ter uma preocupação com o questionamento de valores. Vários elementos da farsa foram comumente utilizados pelo Movimento Armonial na construção dos espetáculos regionalistas.

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A principal intriga da história serve-se da narrativa de um pai que protege a filha e de uma filha do interior sedenta por novidades e por um namorado. É um enredo comum também em espetáculos de cunhos populares, com características farsescas. Trata- se do trato com as coisas pequenas, coisas do dia-a-dia, brincadeiras com micro-forças. Outro elemento é o jogo de duplas, também comum nas comédias, que induz sempre a um embate em que o maior tentará superar o menor, o Branco desafiará o Augusto. Trata-se, pois, da individualização a partir de características específicas do caráter e da posição social de determinados personagens.

Também podemos enumerar nesses elementos a alusão ao forró como o espaço da realização da sedução, que une a questão do popular ao entendimento de uma localização geográfica determinada. A utilização dessa forma musical caminha também em consonância com a proposta temática de re-atualização da historiografia acreana e de alusão a uma dança comumente tida como popular. O forró, nesse caso, serve tanto para a fábula contada (o mito conta que o boto torna-se homem nesses eventos) quanto aparece dentro do conteúdo temático da representação.

Além disso, todos os objetos utilizados (incluindo figurinos) possuem uma grande variação de cores, característica comumente utilizada em teatro de rua e, também, atribuída a estéticas que se definem como populares. Os materiais de construção desses objetos são geralmente de uma qualidade rústica, com a utilização de fibras e bastantes tecidos em chita, matérias que são usualmente utilizados em espetáculos para retratarem elementos de pobreza e que geram, igualmente, certo sentido estético do popular no teatro. A construção do signo de deslumbramento de Manuela, por exemplo, com os produtos trazidos pelo Vendedor até as colocações no seringal são marcadas pela utilização de uma saia em seda que contrasta com o restante do material até ali utilizado. Da mesma forma a indumentária do Boto é marcada em contrate com as demais a partir do uso de um figurino predominantemente branco, em tecidos de materiais diferentes dos demais.

Com base no entendimento farsesco de representação, percebemos em cada ator-personagem um gestual característico, que induz, por sua vez, a um tipo físico-social que poderia ser descrito da seguinte forma:

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Manuela: jovem, forte, bonita, decidida, sonhadora (filha do patrão) Vendedor: pequeno, magro, seco, agitado e instável (caixeiro-viajante) Sebastião: grande, gordo, lento, seguro de si (coronel de barranco) Boto: pequeno, seco, apático e belo (animus de Manuela)

Assim, a construção de personagens a partir de tipos específicos e de elementos gerais de representação, unida à construção visual (especialmente de figurinos) com elementos do rústico, do pobre, ajudam na constituição dos elementos do popular. A seguir faremos uma análise individual dos personagens presentes no espetáculo e seus figurinos, tentando entender com mais detalhes como esses estão caracterizados e sua relação com elementos do popular.

VENDEDOR:

Figura 27 – Espetáculo Manuela e o Boto. Na fotografia, encontra-se o ator Marques interpretando o personagem Vendedor.

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O personagem está caracterizado com um paletó creme xadrez, camisa azul, gravata colorida, calça social marrom escura. Tons coloridos que condizem com a proposta da linguagem do teatro de rua.

O Vendedor assume dois papéis no espetáculo. No primeiro momento, é o narrador, e vai fazendo as costuras da encenação, entrando e saindo das cenas. Com essa característica fará, durante diversos momentos do espetáculo, uma ponte entre os acontecimentos, interligando-os ou anunciando-os. Em segundo lugar, passa em dado momento a ser personagem, sendo um dos personagens de maior geração de conflito da peça. Suas ações, já desde o início, contribuem para que os acontecimentos cênicos ocorram.

Na fábula, em alguns momentos, o personagem representa o arquétipo do

viajante, o que se encontra eternamente de passagem e que, por isso, é tanto misterioso

quanto carregado de novidades. Em uma análise de sua atuação realista-historiográfica do espetáculo, representa um tipo histórico comum no período de ―colocações‖ nos seringais amazônicos: os vendedores-andarilhos, regatões, com características parecidas com as de caixeiros-viajantes. Esses indivíduos possuíam embarcações que levavam as mercadorias para serem trocadas nos seringais mais distantes por borracha, castanha, copaíba (cujo bálsamo era, na época, o remédio utilizado para combater doenças venéreas na Europa), peles e couros de animais silvestres.

Segundo Veltman (2010), um dos primeiros povos a migrarem para Amazônia e que fizeram dessa o seu local para comercialização, trabalhando na região como caixeiros-viajantes, foram jovens judeus que migraram, no século XIX, da África e que chegaram à região com a promessa de liberdade de culto e enriquecimento com a borracha.

No início, o jovem judeu vivia sozinho, regateando. Depois, formada a família, ia comercializar no interior mais afastado, comprando e vendendo mercadorias. Quando sua situação se consolidava, tratava de transferir esposa e filhos para cidades maiores, onde a criançada nascia a cada dois anos.

Além disso, o Vendedor assume em diversos momentos o arquétipo do pícaro, uma figura comum nos textos literários brasileiros. Essa figura é herdada da literatura

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espanhola, na qual ganhou bastante peso. O pícaro é o personagem que vive de expedientes, transitando entre diversas classes sociais por meio dos quais extraía seu sustento, enganando a todos por meio de estratagemas. Em algumas histórias, adquire também o papel de bufão. O pícaro tem a função dramática de alívio cômico, do alívio da tensão. Sua importância é, sem dúvida, enorme, uma vez que todo suspense e conflito podem ser cansativos emocionalmente, e requerem, mesmo em dramas mais fortes, que a atenção da platéia se reavive.

O pícaro tornou-se bastante comum no teatro, no cinema e na literatura brasileira especialmente após o movimento modernista no qual se trouxe para as obras artísticas a figura de um ―malandro‖ que poderia ser o herói, o anti-herói ou mesmo apenas um personagem que corta o espetáculo apresentando-o. Também na estética regional, especialmente suassuniana, esse arquétipo aparece com grande força.

Enquanto indutor das confusões do espetáculo, o Vendedor tem ações parecidas com a do clown Augusto (uma das caras do pícaro) que tende a receber as reações do acontecimento que ele próprio induziu. Está sempre a par de jogos rápidos de palavras que completam a brincadeira de um submisso e de um forte.

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Figura 28 – Espetáculo Manuela e o Boto. Na fotografia, encontra-se a atriz Daniela interpretando a personagem Manuela.

A personagem Manuela possui um figurino composto por um vestido azul muito simples, faixa azul na cabeça e pés descalços. A cor de sua roupa é de um azul fraco que ajuda na caracterização de sua personagem como a de uma menina. No entanto, sua construção gestual difere dessa caracterização, na medida em que, a partir dos seus gestos, percebemos uma natureza forte e decidida. Também se mostra uma personagem firme em suas vontades, enfrentando todos os seus medos com grande destreza, não sendo também alheia aos acontecimentos longe de sua localização. Manuela é a heroína da história, possuindo uma hybris muito forte, o que a leva a ter atitudes extremamente esnobes e firmes.

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Manuela é uma menina que, durante o desenrolar da história, mostra-se sonhadora e desejosa de realização de seus desejos. É uma menina vivendo no interior dos seringais acreanos, sedenta por novidades e pelo encontro de um grande amor.

10 – (14m17s) Vendedor: Linda dama. Vamos ao que interessa. Sinta o

sabor deste perfume que embriaga a tristeza e eleva sua beleza acima das castanheiras e até faz cantar até o uirapuru. E veja também esta linda saia! Manuela é bonita e inocente, sem, contudo, ser ingênua. Embora encantada com tudo o que é de fora, não se deixa seduzir por qualquer um. Quando é seduzida pelo Vendedor, rompe o ritmo do encantamento ao constatar que proposta não lhe agrada. Seu destino é a linha de sustentação do espetáculo. Toda a sua força de vontade está sempre sendo alimentada para o desfecho de seu próprio desejo.

G: Vendedor vai até sua mala pega um frasco de perfume, sorri e começa

a borrifar no público, do canto esquerdo até o canto direito. Manuela arregala os olhos e deixa a boca um pouco aberta, dando impressão de estar interessadíssima. Manuela o segue até o canto direito do público. Seu andar é pontilhado. Caminha com alguns pequenos saltos, seguidos de algumas pausas, dando a impressão de que novamente deixou-se encantar, até ele entregar-lhe o perfume. Ela pega o perfume. Sua expressão facial é novamente de encantamento. O Vendedor vai até a mala, pega uma saia azul de tecido resplandecente. Manuela coloca o perfume no cesto e ele a veste com a saia. Ela balança a saia com os dois braços. Ele volta para pegar algo na mala.

Como uma criança, Manuela desmonta continuamente sua postura séria quando se encontra em frente aos objetos desejados trazidos pelo Vendedor. Deixa-se encantar pela diferenciação que marca o momento e joga com tudo o que lhe é apresentado. O pai aparece enquanto um dos obstáculos a serem suplantados por Manuela, sendo os outros dois o isolamento geográfico e a falta de homem.

114 BOTO:

Figura 29 – Espetáculo Manuela e o Boto. Na fotografia, encontra-se o ator interpretando o personagem Boto.

O Boto surge caracterizado como um galanteador e sedutor, características, aliás, atribuídas ao mito amazônico desse animal. No entanto, sua presença na história é extremamente apagada e apática. Veste um terno branco, sapato branco, chapéu branco, camisa branca e uma grava bordô. Tem cabelos longos que estão presos por uma trança. Tem uma postura formal e movimentos leves e delicados, criando uma gestualidade que representa certo ideal romântico.

Segundo a tipologia de Campbell, tem na escrita dramatúrgica a função do arquétipo do Camaleão. Trata-se da representação do animus da heroína, a parte masculina de seu feminino. Um indivíduo que tanto representa a destruição de Manuela (a sua perda de inocência) como também a realização de seu desejo. O Boto é, na encenação, o próprio desejo de Manuela materializado.

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A construção espetacular, da forma que é apresentada, coloca em questão a história do boto, deslocando o sentido que corriqueiramente apresenta-se ao mito. O Boto, diferente do que se conta, aparece igualmente hipnotizado pela moça que está seduzindo. A cumplicidade de ambos coloca em cheque, sempre, a relação de sedução e vítima, um grande deslocamento no mito original.

O Boto é para Manuela a representação de seu lado masculino, seu animus. Manuela é para o Boto o seu lado fêmeo, sua anima. Um é dependente do outro, as qualidades opostas que se encontram, a força interna de opostos que coabitam em nós e que se manifesta um no outro.

SEBASTIÃO:

Figura 30 – Espetáculo Manuela e o Boto. Na fotografia, encontra-se o ator Lenine interpretando o personagem Sebastião.

O personagem veste camisa branca, com um colete quadriculado, calça social bege, sapato e cinta marrom, com um facão na cintura. No meio do espetáculo ganha uma

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bengala e um chapéu do Vendedor, os quais ajudam na sua caracterização como a de um homem velho, bravo e seguro de si.

Na história, em um primeiro momento, representa o entrave, o não deixar passar, o que rompe e impede. Seu arquétipo é, segundo a tipologia de Campbell, o do Guardião de Limiar. Esse arquétipo é o que está sempre exibindo ao herói um tom ameaçador, mas que, ao ser compreendido, é facilmente ultrapassado, superado e até transformado em aliado. Sua postura não é totalmente a de um vilão, ameaça incondicional, mas de um secundário que está à mercê do vilão.

Nesse sentido, a trajetória de Manuela é, logo no início da sua saga, atravessada pelo pai, que ameaça a sua trajetória. No entanto, logo se percebe que o mesmo é desmontado facilmente pelo entendimento de sua postura e a partir de uma tomada de atitude firme da heroína. Manuela poucas vezes se mostra admirada com as atitudes do pai. Ao contrário, mostra-se acostumada a sua forma de atuação, assim, a solução dos conflitos com o pai são sempre rápidas.

Apenas no final, em um segundo momento, já terminando o espetáculo, Sebastião simbolizará o Vilão, ameaça incondicional da história. É a figura que coloca em prova o destino de Manuela e quem ela deverá enfrentar para poder conseguir realizar o desfecho da sua provação.

Em uma característica típica do popular, Sebastião assume em diversos momentos do espetáculo a relação de senhor sobre o Vendedor, que passa a ser seu subordinado e seu antagonista, uma relação que se assemelha a de capitão em relação ao seu soldado ou, em nosso caso, de coronel de barranco perante os empregados.

117 MÚSICOS:

Figura 31 – Espetáculo Manuela e o Boto. Na fotografia, encontram-se os personagens caracterizados como Músicos.

Os músicos estão vestidos com roupas quadriculadas, feitas a partir de retalhos de panos. Usam uma espécie de macacão que visualmente chama a atenção. A diferença de sua caracterização em relação aos atores é logo notada também por uma maquiagem de rosto branca. Alguns estão com toucas. Os seus figurinos assemelham-se aos de Pierrôs da Comédia Del‘arte.

Diversas vezes os músicos adentram no espaço cênico compondo a cena espetacular.