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Em busca da cidadania (parte 1): um liberto, um relho e um português

Cerca de quatro meses antes da promulgação da Lei Áurea, dirigiu-se a uma delegacia de Porto Alegre, com objetivo de prestar queixa, o “crioulo liberto Prudêncio”, 46 anos, solteiro, natural do Rio Grande do Sul, não alfabetizado, morador do Distrito das

113 MONSMA, Karl. “Identidades, desigualdade e conflito: imigrantes e negros em um município do interior paulista, 1888-1914”. Revista História Unisinos, 11 (1), janeiro/abril de 2007. p. 115.

114 Exemplos de portugueses como donos de botequins podem ser encontrados em: MOREIRA, Paulo. Entre

o deboche e a rapina. Os cenários sociais da criminalidade em Porto Alegre. Porto Alegre: Armazém Digital,

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Pedras Brancas, região situada fora da cidade.115 Perguntado pelos policiais como havia ocorrido o fato de que se queixava, como foram produzidos os ferimentos que apresentava, quando isto se deu e quem o praticou, Prudêncio narrou a sua versão dos fatos. No dia anterior, por volta das três horas da tarde, chegando o queixoso à bodega de Antônio de tal, solicitou ao comerciante dois vinténs de cachaça e de fumo. Antônio perguntou se ele tinha pressa e o liberto respondeu afirmativamente. Nesta ocasião, sem qualquer motivo (do ponto de vista do ex-cativo), o comerciante mandou seu filho buscar um relho. E sem que Prudêncio fizesse qualquer provocação, o dono da bodega começou a agredi-lo. Em seguida, alguns homens entraram no recinto e apartaram a briga. Prudêncio voltou para casa ferido e, no dia seguinte, procurou uma delegacia em Porto Alegre. Assim, esta versão do conflito ficou totalmente centrada no espancamento sofrido.

Prudêncio era um ex-cativo. Esta condição é fundamental para compreender sua atitude. No Brasil do século XIX, era bastante comum que escravos procurassem a polícia em certas circunstâncias, motivados por diferentes objetivos, incluindo as situações em que se envolviam em combates corporais (como quando espancavam os próprios senhores), mas também quando queriam denunciar maus tratos. Em geral, cativos costumavam procurar a polícia porque acreditavam estar agindo em defesa de seus próprios interesses.116 O liberto Prudêncio parece ter-se dirigido à delegacia em Porto Alegre guiado por um senso de justiça diante de um acontecimento por ele considerado injusto: apanhar de relho, instrumento de suplício que provavelmente, na lembrança de muitos ex-escravos, remetia para a vida em cativeiro. Tratava-se de humilhação das mais radicais, situação já ressaltada por outros estudos.117 Convém lembrar ainda que, naquele contexto, às vésperas da Lei

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Júri-Sumário, Processo Crime Nº 21, Maço 1A, Estante 29, Ano 1888. APERS.

116 Diferentes circunstâncias e objetivos levavam os escravos a procurar a polícia: quando se envolviam em brigas ou espancavam os senhores; para interferir nas negociações senhoriais, quando um proprietário desejava vender o cativo contra a vontade deste; quando consideravam que assentar praça era uma alternativa ao cativeiro; e, por fim, para denunciar maus tratos, depois de receberem castigos que consideravam excessivos. MOREIRA, Paulo. Op. Cit., p. 13, p. 53; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma

história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 30-31;

FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. pp. 51-54.

117 Ao analisar experiências de liberdade na serra rio-grandense, Rodrigo de Azevedo Weimer afirmou que, na década de 1880, eram particularmente aviltantes as agressões em que o relho fosse utilizado como arma contra libertos. WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os nomes da liberdade. Experiências de autonomia e

práticas de nomeação em um município da serra rio-grandense nas duas últimas décadas do século XIX.

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Áurea, vários escravos tomaram atitude semelhante à de Prudêncio, deslocando-se à capital gaúcha em busca de ajuda e orientação nas comissões abolicionistas, como se viu no primeiro capítulo. No caso daquele “crioulo liberto”, ao buscar a proteção das autoridades policiais, ele agia como cidadão livre. Tais interpretações, contudo, apenas sintetizam o ponto de vista de Prudêncio e o inserem num movimento mais amplo. Obviamente, havia outras versões, capazes de ajudar a compreender melhor os significados envolvidos na dissensão.

O dono do estabelecimento comercial onde ocorreu a contenda era Antônio Emílio Pereira de Farias, 41 anos, casado, natural de Portugal. Ele contou que Prudêncio chegou à sua bodega já em “estado de embriaguês”, dizendo “bota dois vinténs de cachaça e dois de fumo, já, já”. Entretanto, não apresentou dinheiro algum, motivo pelo qual o português exclamou que “ali não se fiava”. O liberto fez ouvidos moucos e, sentando-se em uma cadeira, pôs-se a esperar pelos produtos solicitados. O comerciante imediatamente reagiu, dizendo que “aquela cadeira não era para ele”, ao que Prudêncio rebateu – “com arrogância”, na opinião do português – advertindo ser “um cidadão também”,118 motivo pelo qual permaneceu sentado no mesmo lugar. O comerciante, então, chamou seu filho, pediu que trouxesse um relho e o menino regressou com o objeto solicitado. Entretanto, antes que o português pudesse tê-lo em mãos, Prudêncio antecipou-se: tomou o relho e espancou o comerciante.119 Esse foi o ponto de vista de Antônio, e não deixa de ser uma grande ironia o fato de que a versão mais profusa em significados tenha sido esta, e não a do liberto.

Conflitos como aquele não eram incomuns.No Rio de Janeiro do final do século XIX, a igualdade de classe entre portugueses e negros pobres ficava comprometida, pois muitos imigrantes lusitanos traziam de sua terra natal, e reforçavam em terras tropicais, a concepção de serem racial e culturalmente superiores aos indivíduos de cor.120Situações como esta acabavam sendo agravadas por conta da postura assumida pelos negros. Walter Fraga Filho analisou uma rebelião de ex-cativos em um engenho baiano. No inquérito

118 Itálicos meus.

119 “Auto de qualificação” e “Auto de perguntas feitas ao réu”. Júri-Sumário, Processo Crime Nº 21, Maço 1A, Estante 29, Ano 1888. APERS.

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policial, algumas testemunhas mencionaram o tom “injurioso”, “atrevido”, “grosseiro” e “exaltado” com que os integrantes do levante trataram as autoridades policiais. Além de não manifestarem gratidão, os emancipados pela lei de ouro não se comportavam com subordinação.121Já no oeste paulista do mesmo período, vários trabalhadores europeus – exatamente porque sua própria condição subalterna os colocava no mesmo nível dos negros – sentiam as reivindicações de pretos e mestiços por respeito, igualdade e cidadania como ameaças à sua honra e à sua superioridade europeia. Além disso, os imigrantes recém chegados percebiam o modo como os brasileiros brancos tratavam seus compatriotas pretos e pardos, e logo aprendiam a importância de manter distinções de cor. Assim, os trabalhadores estrangeiros se apropriavam e reproduziam, em seu próprio nível social, a ideologia racial predominante, que afirmava a superioridade dos brancos sobre os negros.122

A briga entre o crioulo Prudêncio e o português Antônio nos arredores de Porto Alegre, alguns meses antes da abolição, é um óbvio exemplo de como uma reles discussão em um botequim poderia assumir os contornos de uma reivindicação por cidadania, mas também de sua negação, tanto no momento em que o conflito ocorreu, quanto ao longo do inquérito que investigou o caso. Depois de ouvir as testemunhas, os policiais concluíram acerca do português que “não foi seu intuito ferir” o liberto, apesar de mandar buscar o relho; que as lesões feitas em Prudêncio foram “obra do acaso”, apesar da briga; que Prudêncio “provocou Antônio Emílio” e desta provocação resultou a dissensão entre eles. Difícil saber como os policiais chegaram a tantas conclusões, já que todos os depoentes, com exceção do dono do botequim, alegaram ter tomado conhecimento da briga “por ouvir dizer”. Na investigação, os policiais adotaram o ponto de vista do comerciante luso.

Karl Monsma salientou que os imigrantes no oeste paulista tendiam a tomar a cor como um esquema predominante de categorização, entendimento que os levava a demarcar diferentes lugares na hierarquia racial entre subalternos por meio do estabelecimento de relações entre pele escura e características negativas como estupidez, preguiça, alcoolismo e até mesmo paganismo.123Tais características não estiveram totalmente ausentes naquele

121 FILHO, Walter Fraga. Op. Cit. p. 166-167.

122 MONSMA, Karl. “Conflito simbólico e violência interétnica. Europeus e negros no oeste paulista (1888- 1914)”. Anais do VII Encontro Estadual de História. UFPEL. Pelotas, julho de 2004. p. 15.

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conflito ocorrido no sul do Brasil. Entre as testemunhas da briga entre o liberto e o comerciante português, havia nacionais e estrangeiros: João Francisco, 45 anos, “caboclo”, jornaleiro, natural do Rio Grande do Sul; Manoel Castilho, 36 anos, charqueador, nascido na Espanha; Josefino Bento da Silva, 51 anos, lavrador, natural do Rio Grande do Sul; Adam Hoff e seu filho, Guilherme Hoff, comerciantes nascidos na Alemanha.124 Todos eles se conheciam, costumavam frequentar aquele estabelecimento e seus depoimentos foram fundamentais para o desfecho do caso, que acabou arquivado. Acontece que houve unanimidade entre nacionais e estrangeiros ao afirmar – com claro objetivo de desautorizar os argumentos de Prudêncio – que o “crioulo liberto” era “bêbado por hábito” e “ladrão”, porque já havia tentado roubar o estabelecimento comercial de Guilherme Hoff, quando o ex-cativo ainda era empregado do alemão (tratava-se de mais um negro a prestar serviços para europeus). Repare-se que apenas os não-brancos, como Prudêncio e o jornaleiro João Francisco, foram interpelados por termos que remetiam à cor: “crioulo” aplicava-se ao “preto escravo nascido em casa de seu senhor”;125“cabloco” era sinônimo de “indígena” e indicava “cor avermelhada, tirante a cobre”.126

A cor branca não foi registrada em nenhum momento, mas apareceu indiretamente por meio das nacionalidades espanhola de Manoel Castilho e alemã de Adam e Guilherme Hoff. Aquele processo criminal, como muitos outros, comportava uma disparidade no que dizia respeito às referências à coloração epidérmica: enquanto uns eram identificados por meio dela, em outros casos ela simplesmente não era mencionada.

O desgaste cada vez maior da autoridade e do domínio senhorial durante a década de 1880 parece ter feito com que certas palavras expressivas das hierarquias da escravidão continuassem sendo usadas, mas com uma parte de sua significação cada vez mais danificada. Durante o cativeiro, “crioulo” indicava simultaneamente condição escrava, nascimento no Brasil e cor preta; entretanto, Prudêncio era um liberto. A dimensão escravista do termo “crioulo” já não deveria ser aplicada adequadamente a alguém que

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Autos de perguntas feitas às testemunhas. Júri-Sumário, Processo Crime Nº 21, Maço 1A, Estante 29, Ano 1888. APERS.

125 ALMEIDA, José Maria de; LACERDA, Araujo Corrêa. Diccionario Encyclopédico ou Novo Diccionario

da Lingua Portuguesa. Volume 1. Lisboa: Escritório de Francisco Arthur da Silva, 1878. p. 652.

126 VIEIRA, Francisco Domingos. Grande dicionário portuguez ou thesouro da língua portuguesa. Porto: Editores Ernesto Chardron& Bartholomeu H. de Mores, 1873. p. 323.

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buscou distanciamento do status de escravo ao proclamar-se um “cidadão também”; neste caso, já que não perdera totalmente sua dimensão simbólica escravista, ser taxado de “crioulo liberto” funcionou melhor como um estigma do cativeiro a acompanhar Prudêncio em sua vida de homem livre, lembrando-o de que já não era um escravo, mas que um dia havia sido. Ao mesmo tempo, o termo mantinha sua função racial indicativa da cor preta e é bastante significativo que, em nenhum momento, Prudêncio tenha constado como “pardo”, expressão que poderia ser aplicada (mas nem sempre) a ex-cativos mestiços. Assim, “crioulo liberto” equivalia, naquele caso, a “preto liberto”.

No final do século XIX, classificar homens de pele escura como “bêbados por hábito” e “ladrões” – independentemente de terem passado pela escravidão, sobretudo na ótica policial de suspeição – eram duas atribuições que com frequência andavam juntas e estabeleciam um vínculo entre cor, predicados ruins e comportamentos socialmente condenáveis, como fizeram as testemunhas da briga entre Prudêncio e o português, construindo assim significações para os tons epidérmicos, preferencialmente nos negros, como o crioulo Prudêncio, já que a cor branca simplesmente não ficou registrada naquele processo. Nem mesmo o jornaleiro João Francisco estava isento de certa depreciação, já que “caboclo” era também “nome injurioso”, especialmente quando incidia sobre os “filhos” dos “portugueses casados com índias”.127

Em ambos os casos, os sentidos “injuriosos” poupavam gente branca.

Não é difícil perceber que Prudêncio – que não era o réu – foi tacitamente julgado por ter considerado a si mesmo um “cidadão também” e ousado sentar-se na cadeira que “não era para ele”, atitude interpretada como “provocação” pelas autoridades e como “arrogância” pelo português. Estar bêbado na hora da briga e ter tentado cometer um furto anteriormente foram agravantes que exterminaram toda a significação política – a reivindicação de cidadania e sua negação – presente na dissensão entre o ex-cativo e o imigrante. Ao fim de tudo, o promotor público que analisou o caso entendeu que o “crioulo liberto” não tinha o direito de processar o imigrante. O caso foi arquivado e ninguém foi

127 ALMEIDA, José Maria de; LACERDA, Araujo Corrêa. Diccionario Encyclopédico ou Novo Diccionario

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punido.128 Talvez, ao procurar a delegacia em Porto Alegre, o objetivo de Prudêncio fosse este mesmo: safar-se de qualquer possibilidade de vir a ser incriminado por reverter a hierarquia racial, isto é, ser responsabilizado pela situação em que um negro utilizou o relho para bater em um branco. De qualquer forma, é certo que escravos tornados livres no Brasil ainda escravocrata, como Prudêncio, foram os alvos preferenciais de um processo que estabelecia vínculos entre cor escura, qualidades negativas e comportamentos indesejáveis. Uma das consequências políticas dessas vinculações era manter as restrições à cidadania até mesmo quando o exercício dela ocorria por meio da simples atitude de sentar na cadeira de um botequim.129

A experiência de Prudêncio ocorreu fora de Porto Alegre, bem longe da Cidade Baixa, mas não deixava de estar imersa naquele momento histórico marcado por profundas transformações sociais, e nem poderia ser diferente. Afinal, como já foi dito, muitos cativos durante aqueles mesmos dias tomaram os caminhos que levavam a Porto Alegre, em busca do que consideravam ser os seus direitos, com a condescendência das comissões abolicionistas. A análise da briga entre o crioulo liberto e o imigrante português ajudam a perceber que as relações sociais aparentemente restritas, como aquelas travadas no recinto de um boteco vulgar, expressavam amplos significados, ambos – relações e significados – indissociáveis da experiência de viver naquela sociedade. Prestar atenção às consequências da proximidade e convivência entre negros, africanos, libertos, livres, imigrantes e brasileiros é um procedimento importante do ponto de vista do historiador, pois, além do fato de que cada caso tinha a sua própria historicidade, tempo e lugar, não deixava de envolver os predicados da cor e certos aspectos da busca por cidadania, questões centrais ao Brasil daqueles dias.