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128 Ver o parecer do promotor público Genuíno Firmino Vidal Capistrano e os “Conclusos em 4 de fevereiro de 1888”. Júri-Sumário, Processo Crime Nº 21, Maço 1A, Estante 29, Ano 1888. APERS.

129 Para um estudo recente que analisa as relações entre liberdade, racialização e cidadania, ver: ALBUQUERQUE, Wlamyra. O jogo da dissimulação. Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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No início de 1896, a viúva Virgilina Perpétua da Silva abriu processo por injúrias verbais contra Francisca Maria da Conceição (a queixosa e a ré foram as únicas pessoas cujos endereços não foi possível identificar).130 Cerca de um mês antes de recorrer à justiça, Virgília estava na “cidade alta”, aguardando o cocheiro que a levaria para casa, quando, sem motivo algum, conforme seu depoimento, aproximara-se uma tal Francisca emitindo injúrias e chamando-a “prostituta que não respeitava a viuvez”. A queixosa alegou ter-se limitado a exigir que a acusadora provasse o que acabara de dizer; em seguida, embarcou no carro, afim de evitar escândalo ainda maior em plena via pública. Tais palavras sintetizam o ponto de vista da autora do processo. Entre as cinco testemunhas de acusação estavam: Simão Sampaio, brasileiro, cocheiro; as outras quatro depoentes eram “empregadas do serviço doméstico”, brasileiras, sendo possível que já houvessem prestado serviços à Virgília Perpétua antes do conflito. Essas mesmas testemunhas residiam entre as partes “alta” e “baixa” da cidade, região repleta de becos, vielas estreitas e cortiços que serviam de moradia aos pobres em geral, enfim, espaços que a imprensa da época classificava como “lugares malditos” de Porto Alegre.131

A ré, por sua vez, chamava-se Francisca Maria da Conceição, solteira, 78 anos, pais desconhecidos, analfabeta, empregada dos serviços domésticos. Quando lhe foi perguntado quais eram a “sua nacionalidade” e o seu “lugar de seu nascimento”, respondeu ser “africana”, nascida na “Costa da Mina”. Foi nesses termos que ela se apresentou às autoridades judiciárias. Em juízo, acompanhada e muito bem orientada por seu advogado de defesa, a africana admitiu que, de fato, insultara a autora do processo, chamando-a de “prostituta que não honra a memória de seu marido” e outros xingamentos dos quais não mais se recordava; contudo, assim agira justificadamente, “em represália” ao que lhe disseram naquela mesma ocasião: apesar de conhecer a vítima e suas testemunhas, a africana alegou ter sido chamada de “preta”, “negra mina de merda” e “ordinária”, assim dando a entender que a discussão começara por iniciativa de Virgília Perpétua. Para fins de análise, não se trata de estabelecer, afinal, quem falava a verdade. Neste caso, o importante

130 Júri-Sumário, Processo Crime nº 1887, Maço 78, Estante 33, ano 1896.

131PESAVENTO, Sandra Jatahy. “Lugares malditos”. Revista Brasileira de História [online]. 1999, vol.19, nº 37, pp. 195-216.

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é identificar aquilo que a ré e a ofendida consideraram como sendo o alvo central das injúrias mutuamente emitidas durante a discussão.

Apesar da variedade de predicados proferidos pela africana – “prostituta”, “puta”, “devassa”, confirmados pelas testemunhas – tais insultos incidiram exclusivamente sobre uma conduta (sexual?) considerada incompatível com a condição de viúva. Assim, a africana parecia estar preservando a honra e a memória de um marido falecido (ficando implícito que ela o conhecia e estimava). Apesar da presumível hierarquia existente entre a autora do processo, seu cocheiro e as empregadas domésticas – entre as quais havia moradoras da Cidade Baixa – é possível perceber procedimentos compartilhados: primeiro, identificar a ré pela cor e pela origem; segundo, nenhum depoimento relatou qualquer ofensa incidente sobre a coloração epidérmica da ofendida, cuja cor sequer foi registrada nos autos, assim como a das testemunhas. Ao longo de todo o processo, a cor da queixosa Virgília Perpétua da Silva permaneceu silenciada e desvinculada dos xingamentos. O alvo central da discussão era mesmo a sua honra. De um modo ainda mais intenso do que o inquérito que investigou a briga entre o “crioulo liberto” Prudêncio e o português, registro em que a presença de um espanhol e dois alemães pressupunhamindiretamente a pele alva, o processo criminal referente à contenda entre Virgília e Francisca omitia qualquer referência à cor branca.

Ainda assim, é possível reunir certos indícios e formular a hipótese de que a queixosa tinha a pele alva. Diferente dos muitos imigrantes metidos nos cortiços e dos muitos pretos de rua que ganhavam a vida carregando objetos, Virgilina Perpétua da Silva não andava a pé pela cidade: contava com o cocheiro Simão Sampaio à sua disposição. O advogado de defesa tratou de desqualificá-lo, alegando que ele possuía “interesse fraternal pela causa da queixosa”, motivado pelos “grandes obséquios que esta lhe tem prestado como protetora”. Virgília, portanto, ocupava o lugar privilegiado na hierarquia das relações de obediência e proteção estabelecidas com Simão. É possível que o cocheiro não fosse o único agregado. As outras testemunhas de acusação eram quatro “serviçais”, igualmente desqualificadas pelo advogado da ré, quando ele argumentou que “as domésticas” eram “suspeitas de parcialidade”, sugerindo que poderiam omitir informações comprometedoras por conta das relações de dependência estabelecidas com Virgília Perpétua. Ainda que na

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base de hierarquias como esta houvesse brancos e predominância de negros, como se viu em casos anteriores, seu topo era, via de regra, reservado a quem tinha pele alva. É quase certo que Virgília Perpétua era branca, interpretação reforçada por seu lugar superior nas relações mantidas com seus prestadores de serviços e também pelo silêncio a respeito de sua epiderme, exatamente como no inquérito a respeito do liberto Prudêncio, no qual a presença branca ficara implícita.

A ré, por sua vez, foi interpelada como “negra”, “preta” e “mina”, expressões que pareciam jogá-la na vala comum da gente reconhecida pela cor e pela origem, num contexto em que gente como ela era, com frequência persistente, descrita por meio do primeiro nome acompanhado pela coloração ou referência ao local de origem (“Antônio Mina”, “Manuel Congo” ou “preto João” e o próprio “crioulo liberto Prudêncio”). Entretanto, ela se diferenciou deles: além de não ser mencionada como ex-cativa, Francisca Maria da Conceição foi identificada pelo nome e sobrenome completos, sugerindo que talvez tivesse alcançado a liberdade muito antes do 13 de maio. Longe de agir com passividade, Francisca buscou assessoria jurídica e recusou ser processada por injúrias verbais; é possível que as expressões a ela atribuídas, consagradas pelo uso como critérios de identificação racial – “negra”, “preta”, “mina” – emitidas não apenas pela autora do processo, mas também por um cocheiro e por quatro empregadas do serviço doméstico, soassem duplamente ofensivas, já que, em tempos de igualdade republicana, aqueles termos não apenas estabeleciam uma aproximação entre a liberta (uma cidadã, portanto) e a sua pretérita condição escrava (à qual a sociedade escravista havia negado cidadania), mas também porque sua cor e sua origem africana foram vinculadas às expressões “de merda” e “ordinária”, linha argumentativa desenvolvida pelo advogado de defesa. Ao agir “em represália” e tomar providências para não ser processada, Maria Francisca da Conceição demonstrava sentir-se ofendida e, portando, discordante dos significados atribuídos à sua identidade de “africana” nascida na “Costa da Mina” (termos que ela mesma utilizou e que certamente tinham outros sentidos para ela). O potencial difamante e agressivo daquelas palavras repousava na vinculação entre cor, passado escravo, origem e adjetivos depreciativos atribuídos por terceiros, incluindo mulheres brasileiras que compartilhavam com a africana a ocupação de empregadas do serviço doméstico, mas com ela não

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compartilhavam a nacionalidade. Naquele caso, cor e origem não deixaram de soar como critérios distintivos entre gente pobre, ainda que a cor das testemunhas tenha sido omitida. Por fim, o juiz concluiu que não se tratava de um processo de injúria, mas de calúnia, motivo pelo qual absolveu a africana. A ofendida, se quisesse, que movesse outro processo. O desfecho do caso não deixou de caracterizar a vitória da ré, que antes de tudo era uma cidadã, ainda que africana, e soube buscar seus direitos por meio das vias legais.

No primeiro caso, tratava-se de um “crioulo liberto” sem qualquer registro de sobrenome no inquérito; sobre ele pesavam, vinculados, os estigmas da cor e do cativeiro. Não ser visto como “pardo” sugere que ele, provavelmente, carregava fortes marcas da ascendência africana: “crioulo” significava também cor preta. Ainda que livre, Prudêncio parecia estar temporal e semanticamente próximo de seu passado escravo. Provável cidadão recente (e, convém lembrar, emancipado antes da Lei Áurea), foi-lhe vedado o direito de processar o imigrante, sugerindo que também no exercício da cidadania ele ainda estava bastante próximo da condição cativa. A vitória de Prudêncio residia no fato de que a surra de relho aplicada no português ficara por isso mesmo. No segundo caso, negou-se a uma patroa (branca) o direito de processar uma africana que, diferente de Prudêncio, era reconhecida pelo nome e sobrenome. O crioulo liberto procurara uma delegacia nos momentos finais da escravidão; Francisca contou com um advogado nos primeiros anos da República. Cada uma destas duas experiências estava profundamente inserida em seu próprio tempo. Em diferentes situações e de formas distintas, ambos souberam tomar as atitudes necessárias em defesa dos próprios direitos. A africana justificou-se alegando que suas palavras agressivas foram emitidas “em represália” aos xingamentos que incidiram sobre sua cor e origem. O liberto Prudêncio agira “com arrogância” ao sentar-se numa cadeira que “não era para ele” e alegar ser “um cidadão também”. Nessas duas experiências de conflito, os significados da cor, a ampliação da liberdade e o exercício da cidadania surgiram indissociáveis.

Depois do 13 de maio, essa mesma vinculação emergia até mesmo nos relatos de europeus recém chegados no Brasil. O alemão Emil Landenberger, por exemplo, já estava muito bem acomodado no banco de um trem que partia de Porto Alegre, quando dele se aproximou um “negro ofegante” e “insolente” – na opinião do viajante era “próprio do

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negro comportar-se assim”. No registro de Landenberger, a insolência do “negro” tinha motivo de existir: “ele frisa em todas as oportunidades que é um livre cidadão”.132 Prudêncio e Francisca nunca estiveram sozinhos. É possível supor que as expectativas de igualdade e as reivindicações de cidadania expressas por pretos, pardos, crioulos e africanos fossem justificáveis e legitimadas, em alguma medida, pelo fato de quedesempenhavam as mesmas funções subalternas e compartilhavam os mesmos bairros empobrecidos com gente branca – cor tradicionalmente associada ao exercício da liberdade e da cidadania.