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Por que colônia? Por que africana? Do lugar e seus habitantes

Compreender os significados atribuídos à expressão colônia no final do século XIX, e associá-los às fontes sobre a região, ajuda a entender melhor a origem do lugar, além do motivo pelo qual carregava tal nome. Ainda que as leis sejam bastante eficazes em sugerir como uma sociedade deveria funcionar, e não como ela realmente funcionava, a legislação oitocentista sobre imigração classificava como “colônia” os núcleos de povoamento formados por mão de obra importada, sobretudo da Europa, que deveria fixar moradia no campo e trabalhar em atividades produtivas rurais.12 Assim, a expressão “colônia africana” não deixa de parecer contraditória em si mesma, pois a posse da terra no Rio Grande do Sul foi preferencialmente facilitada a trabalhadores europeus, que deveriam pagar a pequena unidade produtiva recebida, além da viagem que os trouxe ao Brasil. Uma lei de 1848 estabelecia que as “terras devolutas” de todas as províncias imperiais não poderiam “ser roteadas por braços escravos”.13

Na década de 1870, como demonstrou Wlamyra Albuquerque, o Conselho de Estado criava artifícios jurídicos para impedir que africanos imigrassem para o Brasil.14 Por fim, um decreto republicano de 1890, ao tratar da “introdução de imigrantes” no país, “válidos e aptos para o trabalho”, excluiu desta categoria os “indígenas da Ásia ou da África”.15

Aos olhos das autoridades públicas imperiais ou republicanas, na medida em que seus objetivos políticos e pontos de vista baseados em critérios raciais implícitoseram traduzidos em leis, os africanos enquanto

12 A respeito das leis oitocentistas sobre imigração, ver: IOTTI, Luiza Horn. (Org.). Imigração e Colonização:

legislação de 1747 a 1915. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; Caxias do

Sul: Educs.

13 Lei Nº 514 de 28 de outubro de 1848. In: IOTTI, Luiza. Op. Cit., p. 108.

14 ALBUQUERQUE, Wlarmyra. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Ver especialmente o capítulo I, em que a historiadora analisa o caso de 16 africanos cuja permanência no Brasil foi motivo de polêmicas entre autoridades brasileiras e inglesas.

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“colonos” ou “imigrantes” tornaram-se figuras cada vez mais indesejáveis. Os processos de colonização e imigração não eram neutros, mas definidos por escolhas políticas seletivas – portanto, excludentes – baseadas em concepções racializadas das nacionalidades e das origens: desde que foram derrotados os projetos imigrantistas que defendiam a importação de africanos, as categorias “colono” e “imigrante” deveriam ser preferencialmente preenchidas por gente oriunda da Europa (toda essa temática foi tratada no primeiro capítulo).O favorecimento estatal aos trabalhadores europeus, sempre associados ao trabalho livre e a sentidos abonadores, torna aparentemente inverossímil a ideia de uma “colônia” formada por imigrantes africanos. De qualquer forma, não parece muito recomendável ao historiador escrever a história com base apenas na legislação – ainda que ela fosse bastante significativa a respeito dos sentidos atribuídos à cor e orientasse práticas bem reais de seleção e favorecimento.

No fim do século XIX, a Colônia Africana estava relativamente longe do “centro” de Porto Alegre. Portanto, estava localizada “fora” da urbe, além de praticamente não contar com os recursos infraestruturais necessários a uma cidade “moderna” e “civilizada”. A planta urbana de 1896 mostra uma grande área verde, sem o traçado de ruas, nos arredores da região correspondente ao bairro.16 Esta caracterização urbanística converge perfeitamente com algumas notas de jornal publicadas naquele mesmo ano. Numa tarde de sábado, durante o mês de agosto, a moradora Catharina Busson estava lá “a pastorejar cabras”.17

E Lúcio Baptista era um “pobre preto velho”, com 70 anos de idade, dono de uma “pequena horta” na Colônia Africana.18

Em 1899, o nº 202 da Rua Ramiro Barcelos era uma chácara, que foi invadida por uma “vaca de pelo vermelho”, que fez diversos estragos no local.19 De fato, no que dizia respeito ao aspecto rural, uma extensão considerável daquele bairro fazia jus ao nome. Muitos habitantes da Colônia Africana tinham hábitos, atividades e estilos de vida de quem vivia no campo. O aspecto pouco

16 Ver: Planta de 1896. Ao longo deste estudo, todas plantas urbanas utilizadas foram retiradas deste mesmo CD-Rom: INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAFICO DO RIO GRANDE DO SUL. Cartografia Virtual

Histórico-Urbana de Porto Alegre. Séculos XIX e XX (CD-Rom). Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto

Alegre, 2005.

17Gazeta da Tarde, 03.08.1896, p. 02. 18 Ibidem, 13.07.1896, p. 02.

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urbanizado do lugar persistiu por bastante tempo, pois ainda no começo do século XX a região apresentava características “suburbanas”.20

A ideia sugerida pela expressão “colônia africana”, ou seja, uma região rural habitada por negros, especialmente ex-cativos, é reforçada pelo fato de que os significados da liberdade para quem alcançava a alforria no campo não passavam necessariamente pela obtenção de um emprego e de um salário. Para cativos que viviam no campo, a liberdade tinha sentidos mais restritos, tais como constituir família e ter um pequeno pedaço de terra, onde teriam moradia e do qual retirariam sustento, sem mencionar o fato de que muitos negros desejavam ter, em tempos de liberdade, a posse da pequena propriedade que já cultivavam durante o cativeiro, entendendo isto como um direito costumeiro.21 Ao analisar pequenas vilas, arraiais e bairros rurais formados durante o pós-abolição, nos quais havia coexistência entre ex-cativos e outros homens livres, mestiços e brancos, Maria Cristina Cortês Wissenbach observou certos padrões. Em geral, viviam próximos os proprietários, os arrendatários e os simples ocupantes de terras, que se dedicavam às culturas de subsistência em pequenas unidades produtivas, utilizando mão de obra familiar, produzindo os gêneros imprescindíveis e pequenos excedentes, e onde o uso da terra era frequentemente outorgado pelo proprietário, em troca de serviços e apoio político-eleitoral. Em espaços assim, defende Wissenbach, muitos libertos concretizaram seus valores e sentidos de liberdade, pois a formação de um campesinato era, na verdade, uma das reivindicações escravas.22

Nesse sentido, é preciso refletir mais profundamente também sobre o segundo termo da expressão: tratava-se de uma colônia africana, e isto sempre deu o que pensar a respeito de quem, afinal, morava lá. Na década de 1880, quando este nome ainda não aparecia nas

20 Em 1912, os trechos de algumas ruas da Colônia Africana se estendiam sobre a chamada “zona urbana”, enquanto outros trechos das mesmas ruas se prolongavam sobre espaços classificados de “suburbanos”. LIMA, Olympio de Azevedo. Dados estatísticos do Município de Porto Alegre organizado em 1912 pelo 2º

escriturário Olympio de Azevedo Lima. Oficinas gráficas da Livraria do Comércio: Porto Alegre, 1912. p. 33,

p. 39-40.

21 Sobre os significados que a liberdade tinha para os ex-cativos, ver: FILHO, Walter. Encruzilhadas da

liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Edunicamp, 2006; CASTRO,

Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

22 WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. “Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível”. In: SEVECENKO, Nicolau. (Org.). História da Vida Privada no Brasil, Volume 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 60-62.

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fontes, foi bastante intensa a movimentação de abolicionistas em prol da “assimilação” de cativos à sociedade livre no Terceiro Distrito, região que viria a incluir entre seus bairros aquela pequena África. As mesmas agremiações que atuaram na Cidade Baixa, tais como a Sociedade Emancipadora Rio Branco e o Centro Abolicionista, com seus jornalistas e militares, atuaram também no Terceiro Distrito de Porto Alegre, anunciando as alforrias conquistadas e reforçando a certeza acerca da elevada presença de libertos na região.23 Em 16 de agosto de 1884, uma comissão abolicionista anunciou a “libertação de 134 escravos” lá existentes.24 Dois dias depois, tornou-se pública a notícia de que “todos os escravos do 1º e 3º distritos” estavam “emancipados”.25

Assim como na parte baixa da cidade, no Terceiro Distrito os ventos abolicionistas sopraram com força, sendo que lá também havia muitos senhores vivendo bem próximos de seus cativos. As ilustres e abastadas famílias Mariante e Mostardeiro, por exemplo, eram proprietárias de terras e de escravos na região que viria a ser a Colônia Africana. Os Mariante, particularmente, concederam alforrias entre 1861 e 1886.26

Assim, é possível que aquela “aglomeração de negros” tenha-se formado durante os momentos finais do processo de desmontagem do escravismo e tenha sido intensificada pela pressão política abolicionista por alforrias e, talvez, até por certas concessões senhoriais antes da Lei Áurea, já que acesso à terra e ao casamento eram simultaneamente reivindicação escrava e estratégia senhorial de controle, pois, quando conquistados, tendiam a favorecer a fixação geográfica e a evitar as fugas de cativos. Por fim, convém lembrar que nem sempre a liberdade era acompanhada pela migração, pois a permanência junto à propriedade senhorial podia significar a intenção de ampliar direitos conquistados durante o cativeiro ou de manter bens, como animais e pequenos lotes para a produção de

23 Em 1884, uma comissão abolicionista tentou organizar o recenseamento dos escravos presentes no Terceiro Distrito de Porto Alegre. Apesar da contagem não ter sido encontrada na imprensa, a atitude da comissão indica que na década de 1880 havia escravos na região urbana que futuramente viria a incluir entre os seus “bairros” o local chamado de “colônia africana”. Sobre a atuação dos abolicionistas no Terceiro Distrito, ver:

A Federação, 12.08.1884, p. 03; 13.08.1884, p. 02; 18.08.1884, capa e p. 02.

24 Ibidem, 16.08.1884, p. 02. 25 Ibidem, 18.08.1884, p. 02. 26

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subsistência, elementos encontrados em profusão na Colônia Africana.27 Por outro lado, também é verdade que o elevado número de alforrias na década de 1880 ampliou a mobilidade geográfica dos libertos, consequentemente diversificando o leque de possibilidades no que dizia respeito a escolher um lugar possível para morar, e isto poderia incluir os libertos que deixaram o interior do Rio Grande do Sul com objetivo de viver nas cidades. Neste cenário, a Colônia Africana e Cidade Baixa eram apenas duas opções disponíveis, pois muitos negros moravam lá antes da emancipação e continuaram nos mesmos locais depois do 13 de maio.

Na década de 1890, residiam na tal “colônia” Manoel José Congo, 90 anos, africano; João Congo, 100 anos, natural da África; Luiz Itaperuna, 38 anos, preto, filho de João Congo. Eles não estavam sozinhos. As profissões de homens e mulheres que tinham a pele escura e moravam no bairro eram, conforme os registros da Santa Casa, as de lavadeira, engomadeira, criada doméstica, carroceiro, sapateiro, cangueiro e servente de obras, sem mencionar os sempre numerosos “jornaleiros” – homens que enfrentavam as flutuações da oferta de trabalho desempenhando diversas atividades para ganhar a vida.28 Convém salientar que nesta lista constam algumas atividades largamente desempenhadas por escravas na década de 1880 e que continuaram a ser executadas por negras no pós- emancipação (temática tratada no capítulo sobre a Cidade Baixa). Para gente de condição social inferior, emprego incerto e salários baixos, entre os quais estavam os ex-cativos, a Colônia Africana oferecia várias moradias acessíveis. Na Rua Casemiro de Abreu, nº 15, residia Manuel Sampaio Ribeiro, 68 anos, classificado simplesmente como “trabalhador”, filiação não declarada, natural da África.29 O local habitado por Manuel não lhe pertencia, pois era propriedade de Joaquina Antônio Padilha, dona também de outros 5 números naquela rua, habitações certamente disponíveis para quem pudesse pagar para residir lá.30Já

27 A respeito de como o casamento e a concessão de pequenas roças para cultivo escravo funcionavam como estratégias senhoriais de controle e sobre a forma como os significados da liberdade para os ex-cativos podiam estar associados à permanência na propriedade senhorial justamente para manter direitos, privilégios e bens obtidos ainda durante o cativeiro, ver: SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Esperanças e recordações

na formação da família escrava. Brasil, sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; FILHO,

Walter Fraga. Op. Cit.

28 Livro de Porta da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Nº 1, Ano 1899-1900. 29 Idem.

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Maria Ulina Lucas, 20 anos, solteira, preta, era moradora da Rua Castro Alves, nº 14.31 O endereço era um cortiço, sendo que havia mais 3 habitações deste tipo naquela mesma via em 1899.32 Em grande medida, era por causa das moradias baratas, especialmente cortiços e casas de cômodo, que aquele bairro praticamente desprovido de serviços e infraestrutura “urbanos”, com suas ruas esburacadas e alagadiças, áreas verdes e pequenas plantações, acabava por aglutinar gente de pele escura, parte considerável das classes pobres no Brasil pós-abolição.

Obviamente, nem todos os moradores do lugar viviam em residências compartilhadas. Muitos conseguiam adquirir um terreno e tentavam fugir do aluguel, construindo seu próprio local de moradia. O controle da prefeitura municipal sobre as habitações da cidade era exercido, como será tratado mais adiante, não apenas através da tributação, mas também da burocracia exigida para a liberação de novas edificações. Em 1905 (apenas um ano antes do Terceiro Distrito chegar ao número de 437 cortiços33), a proprietária de um “terreno sito à Rua Esperança, Colônia Africana [...] com 15 palmos de frente por 35 de fundos” endereçou ao “Ilmo. Sr. Dr. Intendente” uma solicitação para “edificar um Chalé de tábuas”. Tratava-se de Carolina de Oliveira, doceira, preta mina, casada com Benedito Oliveira, preto, de profissão pedreiro. A burocracia dificultava o acesso às habitações, mas havia gente disposta a atuar contra a adversidade. Carolina tentou cumprir as exigências e reunir a papelada, a fim de obter um lugar para viver naquele bairro, argumentando que agia “conforme preceitua nossa Lei Municipal”, motivo pelo qual esperava “favorável Deferimento”.34

Era difícil negar acesso à moradia para gente que sabia obter o que desejava atuando de acordo com as regras, ainda mais quando se tratava de alguém como Carolina, que havia passado pela experiência da escravidão.

Pode-se concluir que a elevada densidade populacional com perfil racial bastante específico associado ao fato de ser uma região com características “rurais” foram os dois principais ingredientes que originaram a forma costumeira de denominar aquele local do

31A Gazetinha, 10.05.1899, p. 02.

32 Registro de Imposto Predial Urbano, Livro Nº 35, Ano 1899. p. 09-10. 33 KERSTING, Eduardo. Op. Cit., p. 124.

34 O requerimento pertence ao arquivo particular de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, bisneta de Carolina de Oliveira e Benedito Oliveira, e foi reproduzido fotograficamente. Ver: SANTOS, Irene. Op. Cit., p. 13.

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Terceiro Distrito. A presença negra se manteve elevada ainda nas décadas de 1930 e 1940, período em que havia no bairro diversos salões de baile, clubes e blocos carnavalescos formados por homens de cor.35 Antes disso, porém, diversas fotografias referentes aos primeiros anos do século XX já indicavam a numerosa presença deles na Colônia Africana, incluindo famílias inteiras (como a de Carolina e Benedito), e isto pressupõe que as pessoas desta condição racial, filhos e netos de muitos escravos emancipados, não ocuparam o bairro da noite para o dia, remontando o começo dessa presença ao século XIX.36 Entretanto, também residiam na Colônia Africana muitas pessoas pobres que dificilmente poderiam ser classificadas como negras ou ter nascido na África. Então, já é hora de identificar os outros moradores do local desde os últimos anos oitocentistas. Afinal, a coexistência racial no bairro parece ter começado bastante cedo.

Por requisição de um dos médicos da assistência pública, foi recolhido ao necrotério da Santa Casa de Misericórdia o cadáver de Marcellina Keler, 2 anos de idade, italiana, filha de Liberato Keler. A pequena Marcellina faleceu por motivo não revelado, no dia 21 de fevereiro de 1899, às 11 horas da manhã, na Colônia Africana.37 A pouca idade e a nacionalidade da criança sugerem que ela possivelmente pertencia a uma família de imigrantes recém chegados ao Brasil. Não se sabe há quanto tempo estava em terra firme, nem por qual motivo Marcellina morreu, mas é certo que na travessia atlântica, em navios abarrotados de trabalhadores europeus, as crianças eram o alvo mais sensível às doenças e à morte.38 Outras notícias funestas como esta revelaram mais gente proveniente do velho mundo e que encontrou moradia na pequena África porto-alegrense. Paulina Fuchs, 25 anos, alemã, classificada por Sandra Pesavento como “modista” e “operária”, cometeu suicídio em 1895, quando seu noivo João Pabst, empregado da Intendência Municipal,

35ROSA, Marcus. Quando Vargas caiu no samba: um estudo sobre os significados do carnaval e as relações

sociais estabelecidas entre os poderes públicos, a imprensa e os grupos de foliões em Porto Alegre durante as décadas de 1930 e 1940. Dissertação de Mestrado. UFRGS. Porto Alegre, 2008.

36 Dezenas de fotografias, referentes às primeiras décadas do século XX, mostrando negros na Colônia Africana e em outras regiões de Porto Alegre, podem ser encontradas nas seguintes obras: SANTOS, Irene. Op. Cit.; Ibidem. Negro em preto e branco. História fotográfica da população negra em Porto Alegre. Porto Alegre: Secretaria de Cultura/Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2005.

37A Gazetinha, 22.02.1899, p. 02.

38 Para exemplos de crianças imigrantes que morreram ainda nos navios ou ao desembarcar no Brasil, ver: Fundo Polícia, Maço 100, Secretaria de Polícia de Porto Alegre, Correspondência Expedida, 21.02.1884, documento avulso; BUSATTA, Félix Fortunato; MATTIELLO, Cyrillo. Um pioneiro em novas colônias

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esquivou-se da promessa de casamento. De acordo com Pesavento, quando a jovem imigrante entregou-se à morte, havia recém se mudado para a Colônia Africana.39Em 1901, podia-se ler nas páginas d’A Federação“que uma italiana, moradora da arqui-célebre Colônia Africana, queixou-se de ter sido insultada por um crioulo, cujo nome ela ignora”.40

Formado no pós-emancipação, mais particularmente durante a década de 1890, desde muito cedo o bairro aglutinou pessoas que, em épocas e circunstâncias muito diferentes, atravessaram o Atlântico para trabalhar na América, fosse gente nascida na África, fosse proveniente da Europa. E à medida que a presença de estrangeiros crescia, era possível que a nacionalidade fosse tomada como critério de aglutinação, evidenciando as possíveis formas de solidariedade e de organização no interior de um bairro formado por diferentes grupos étnico-raciais. Por exemplo, na mesma Rua Ramiro Barcelos em que morou por pouco tempo a suicida Paulina Fuchs, estava sediada em 1896 a Sociedade Beneficente Deutcher Krankenverein, cujo nome não deixa dúvidas acerca da origem germânica de seus sócios.41 Desde a origem, portanto, a colônia dos africanos acabou sendo também o lugar de muitos europeus. Eis aí a heterogeneidade identificada por Paulino de Azurenha em 1907.

Em seu estudo sobre a região, Eduardo Kersting afirmou que negros e brancos assemelhavam-se pelas mesmas condições de vida e compartilhavam as mesmas profissões subalternas ou pouco qualificadas.42 O Livro de Porta da Santa Casa de Misericórdia, ao registrar os endereços dos enfermos entre janeiro de 1899 e março de 1900, permite afirmar que na Colônia Africana coexistiam indivíduos descritos como negros, pardos, brancos, africanos, italianos e portugueses. Os negros aparecem em maior número e todos os moradores da Colônia Africana que deram entrada na Santa Casa foram descritos como “pobres” no item “classe social”.43

Mas, afinal, como é que gente tão diferente em termos nacionais e raciais, mas bem parecida no que dizia respeito à baixa condição social, acabava compartilhando os mesmos locais de moradia? Um passeio por diferentes fontes,

39 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os sete pecados da capital. São Paulo: Hucitec, 2008. p. 95-96. 40A Federação, 15.02.1901, p. 02.

41 Registro de Imposto Predial Urbano, Nº 18, Ano 1896, p. 07. 42 KERSTING, Eduardo. Op. Cit., p. 11; p. 133-134.

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do século XIX ao XX, incluindo até mesmo textos literários, pode ajudar a iluminar esta questão, aparentemente tão difícil de resolver.

Escravos, operários, capoeiras, lavadeiras e trabalhadores em geral, eis os protagonistas da obra O cortiço, escrita por Aluísio Azevedo no contexto da segunda metade do século XIX. Entre as páginas do livro, assim como na sociedade brasileira daquele mesmo período, coexistiam e interagiam imigrantes europeus e brasileiros, pobres e ricos, negros, brancos, mulatos e outros, cuja tonalidade da pele certamente seria difícil de classificar. Nas linhas escritas por Azevedo, eles figuram organizados em função de um miserável cortiço no Rio de Janeiro. As páginas da obra narram, além de diversas histórias individuais, a migração do casal de trabalhadores formado por Piedade e Jerônimo, que deixaram as terras lusitanas em busca das paragens tropicais. A respeito destes dois, assim nos informou Azevedo:

“Jerônimo viera da terra, com a mulher e uma filhinha ainda pequena, tentar a