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2. CARACTERÍSTICAS PECULIARES DA ARQUEOLOGIA MARÍTIMA

2.5. Em busca de um porto seguro

Quem hoje se dedica a estudar Arqueologia em ambientes aquáticos, invariavelmente se depara com leituras sobre Arqueologia Marítima de Keith Muckelroy. Passados mais de 30 anos de suas primeiras abordagens teóricas, suas ideias ainda têm muito a dizer sobre o contexto do desenvolvimento humano, suas preocupações e as relações sociais desdobradas no ambiente marítimo. Por esse motivo, não é de se estranhar que sua obra ainda é considerada como leitura basilar para abordagem teórica de muitos trabalhos atuais (GIBBS, 2006; ADAMS, 2009; HARPSTER, 2009, 2013).

Um dos principais componentes dos trabalhos de Muckelroy refere-se à adaptação das teorias aplicadas a sítios arqueológicos aos processos de formação para o ambiente aquático, embora tenha avançado muito desde então (ADAMS, 2009). Ao buscar compreender as ideias de Muckelroy, Harpster (2009) o coloca num patamar tal, que novos arqueólogos marítimos podem encontrar inspirações a partir de uma variedade de abordagens epistemológicas para questões que ainda precisam ser respondidas. Para Harpster, o papel de Muckelroy como de alguns de seus predecessores, dentre eles George Bass e Conlin Martin, era transformar a Arqueologia Marítima numa disciplina acadêmica de pleno direito e não

uma subdisciplina como ele havia propugnado (GIBBINS; ADAMS, 2001). Dessa forma, consideramos o trabalho de Muckelroy como um ponto de partida para navegarmos em novos rumos.

Levando em conta as considerações de Muckelroy (1978), o desenvolvimento desta pesquisa possui um papel muito mais amplo e social. Apesar de se referir a um estudo de caso, nossas avaliações também consideram as exposições da natureza da Arqueologia Marítima do referido autor:

Above all, it should be noted that the primary object of study is man [...] and not the ships, cargoes, fittings or instruments with which the researcher is immediately confronted. Archaeology is not the study of objects simply for themselves, but rather for the insight they give into people who made or used them [...] maritime archaeology is concerned with all aspects of maritime culture; not just technical matters, but also social, economic, political, religious and a host of other aspects”.18 (MUCKELROY, 1978, p. 4).

Apesar de haver uma preocupação antiga, gestada há cerca de 40 anos, com o papel dos agentes culturais na formação dos sítios de naufrágios, a Arqueologia Marítima, com o passar do tempo, não foi capaz de desenvolver os meios para a obtenção de uma análise mais profunda desse processo. Gibbs (2006) traz à tona um modelo proposto que fornece uma estrutura estendida para compreender as ações culturais, antes, durante e após o evento de um naufrágio, integrando-o aos processos naturais.

A fim de se desenvolver uma leitura mais simbólica e contextual, é necessário compreender alguns aspectos referentes à construção naval, considerada uma atividade social complexa que envolve organização, cooperação e investimentos em longo prazo. Nesse processo, estão inseridos os mecanismos econômicos, sociais e políticos relacionados às embarcações e que permanecem profundamente impregnados na sociedade. A partir de uma interpretação de embarcações naufragadas, os arqueólogos marítimos podem inferir sobre um tensão dinâmica representada por dois polos: os estímulos de reforço, expressos através da necessidade e, em contrapartida, as várias limitações consideradas, sejam ambientais, ideológicas, técnicas ou econômicas. Cada navio representa uma resolução dessa relação dialética entre fatores infinitamente variáveis. Portanto, cada navio tem o potencial de revelar esses aspectos em que assenta a sua criação, além dos aspectos relacionados com a sociedade

18 Tradução nossa: “Antes de tudo, deve-se notar que o principal objeto de estudo é o homem [...] e não os navios, cargas, armamentos ou instrumentos com os quais o pesquisador é imediatamente confrontado. Arqueologia não é o estudo de objetos simplesmente para si mesmo, mas sim uma compreensão gerada das pessoas que os fizeram ou usaram [...] A Arqueologia Marítima está preocupada com todos os aspectos da cultura marítima; não apenas com assuntos técnicos, mas também sociais, econômicos, político, religioso e outros aspectos envolvidos”.

que o utilizou. É por essa razão que a complexidade dos navios oferece uma das melhores maneiras de acessar o passado (ADAMS, 2001).

Um exemplo que ilustra esse aspecto refere-se aos estudos propostos por Rambelli (2006) sobre os restos do naufrágio de um navio negreiro de origem norte- americana, de nome Camargo, afundado em Angra dos Reis, RJ, em 1852. Esse estudo nos alerta para a necessidade de se conhecer parte da história dos navios negreiros que não está nos livros. Por meio da análise e interpretação da cultura material desses tipos de sítios arqueológicos, é possível se refletir sobre as identidades, inferindo sobre as diferenças existentes em nossa sociedade, notadamente por meio das pessoas que fizeram parte de um momento histórico; sejam eles tripulantes, passageiros, ou ainda, neste caso, “cargas” transoceânicas, que na verdade são os representantes de uma casta social excluída das narrativas dominantes. Com relação ao estudo desse sítio arqueológico de naufrágio, o autor enfatiza que:

Arqueologia de naufrágios é Arqueologia! Representa a integração de especialidades arqueológicas como a náutica (a embarcação), a subaquática (o ambiente de localização do sítio) e a marítima (a sociedade) em uma categoria específica de um sítio arqueológico. Não tem nenhuma relação com a prática aventureira da caça ao tesouro, que é permitida por lei no Brasil, e que entende esses sítios submersos como coisas perdidas que precisam ser recuperadas em troca de recompensas. Ela compreende que esses sítios, que ajudam a compor o patrimônio cultural subaquático, e a produção de conhecimento arqueológico sobre eles só têm sentido se forem de caráter público – para a população – e interagirem com as diferentes comunidades. (RAMBELLI, 2006, p. 98).

Partindo para uma perspectiva global da necessidade de proteção dos sítios de naufrágios em ambiente marinho, é necessário considerar a interação entre os fatores químicos, biológicos, físicos e os processos de formação de sítios culturais de forma dinâmica. Ward; Lacombe e Veth (1999), através de seu modelo universal orientado para o processo de desintegração, independentemente de escala (espacial e temporal) fornecem subsídios que auxiliam na capacidade de previsão, elemento útil para a gestão e conservação dos sítios arqueológicos.

Podemos considerar que essas propostas são complementares às de Adams (2001), Gibbs (2006) e Goulart (2014). Portanto, com base nesses modelos, podemos sistematizar a análise dos processos de formação para sítios arqueológicos em ambientes aquáticos, sobretudo os sítios que interessam para o presente trabalho, com a finalidade de elaborar um Plano de Gestão consolidado que integre a proposta de uma proteção efetiva para os sítios arqueológicos de naufrágios. Deve-se considerar a interação entre os dois tipos de

processos de formação de sítio, juntamente com os fatores simbólicos. Finalmente, os estudos acerca do clipper Blackadder poderão ser usados para gerar conhecimento útil para a compreensão de outros sítios arqueológicos em ambientes aquáticos com poucas informações arqueológicas e/ou históricas e com bastante similaridade no caráter hidrodinâmico, sedimentar e contextual.

3. PROTEÇÃO DOS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS DE NAUFRÁGIOS

“Quem não luta pelos seus direitos não é digno deles”. (Rui Barbosa)