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Em busca de uma teoria de interface

2.2. Sociolinguística e Análise do Discurso

2.2.2. Em busca de uma teoria de interface

Na seção anterior foram apresentados conceitos das três Ondas da Sociolinguística, os quais continuam se aplicando a pesquisas cujo objetivo se encerra no entendimento do processo de variação e mudança de fenômenos linguísticos que ocorrem em determinadas comunidades de fala. Porém, tais conceitos não são suficientes para analisar a relação entre as formas linguísticas estudadas aqui e a identidade caipira.

Para esse objetivo, recorreu-se à Análise do Discurso, cuja concepção de sujeito não só tomada como pressuposto teórico, como orientou o caminho da pesquisa. A ideia de sujeito concebido pela Análise do Discurso forneceu caminhos metodológicas de como observar o processo de identificação dos itatibenses com a cultura caipira.

O diálogo entre a Sociolinguística e a Análise do Discurso surgiu na década de 1970, a partir de inquietações a respeito das categorias sociais tratadas na Sociolinguística. O principal questionamento foi em relação à pré- determinação dessas categorias. Para Pêcheux; Gadet (2011 [1977]), o problema da Sociolinguística residia justamente no social, considerado saturado pelos autores: O sociologismo recobre também a questão do Estado substituindo

a análise das relações de produção por uma teoria das relações sociais que não é outra coisa que uma psicossociologia das relações inter-individuais (2011

[1977], p. 37).

Os autores afirmam que muitas das correspondências feitas na Sociolinguística entre as variantes e seus significados sociais não perpassam a dimensão política presente nas relações de poder na sociedade e tornam-se psicologizantes, sem levar em conta que o sentido está estruturado nas condições de produção.

Posteriormente, a Sociolinguística rediscutiu como se dá a correspondência entre as categorias sociais e as variantes linguísticas, a partir de novas concepções e metodologias apresentadas na Segunda e na Terceira Onda, sobretudo os trabalhos de Eckert. Contudo, a relação entre as variáveis linguísticas e a história (política) no processo de variação continuou sendo deixada de lado.

Ainda deve-se destacar que as formulações de Labov (2008 [1972]) já apresentavam certa sensibilidade quanto a essas questões. Em seu estudo nas lojas de departamento de Nova York, por exemplo, é possível dizer que o falante não é tomado como sujeito psicológico:

Outros fatores, além da estratificação das lojas, podem explicar o padrão regular da pronúncia de r visto acima, ou seja, este efeito pode ser a atribuição de um grupo particular da população, mais do que o comportamento dos vendedores,

como um todo. (LABOV, 2008 [1972], p. 75) (grifo meu).

O que o está em questão não é a atitude ou a intenção do vendedor, não se trata de um sujeito consciente e que é a fonte da variação que produz. O sujeito (o vendedor) é um efeito de um grupo particular, ou seja, de uma posição.

Diferencia-se aqui lugar e posição: enquanto o primeiro corresponde a um traço descritivo – o que muitas vezes equivale às variáveis independentes sociais na Sociolinguística –, o segundo é a posição de discurso. Pagotto (2001, p. 68) exemplifica bem essa diferença:

A pesquisa capta essas vozes, por meio das correlações estruturais que faz, mas o cerne da questão é a inscrição do sujeito falante numa dada posição de sujeito. Nem sempre é possível captar isso por meio de relações positivas. Muitas vezes, um sujeito fala com uma voz que, aos olhos do pesquisador, não é a sua: não é sua idade, não é sua faixa etária, não é seu grau de escolaridade. Essas falhas costumam ser descartadas, quando são justamente o índice mais premente do processo de identidade e a "prova" de que a correlação entre categorias sociais e formas lingüísticas se dá, no funcionamento da língua, em outro nível.

Quando não há a correspondência esperada entre as categorias sociais e as variantes, os informantes costumam ser rotulados como idiossincráticos e

buscam-se explicações secundárias para os resultados, entretanto deve-se considerar que, muitas vezes, as categorias sociais não correspondem às posições, como o autor explicou.

Isso justifica o fato de, por exemplo, um informante classificado como sendo da classe baixa produzir variantes prestigiadas socialmente. Atribuir tal fato à hipercorreção não dá conta de explicar o processo de identificação que opera na variação linguística.

O problema da hipercorreção e da avaliação é que se pressupõe que o sujeito é livre para fazer escolhas na estrutura linguística e, consequentemente, na estrutura social também. Entretanto, é nesses momentos que todas as ondas da Sociolinguística falham, pois se orientam por uma concepção de sujeito agente de si, e não como um efeito da estrutura (social), como é abordada na Análise do Discurso.

Mesmo que Labov (2008 [1972]) reconheça o sujeito como lugar de materialização de forças sociais que operam ideologicamente, por ver nos informantes comportamentos que refletem uma classe social inteira (como no caso do estudo das lojas de Nova York), ainda assim o lugar da avaliação na Sociolinguística se guia por intenções do falante e não pelas forças sociais que operam intradiscurso.

Pagotto (2001) demonstra que a avaliação dos informantes só pode ser tomada como atitude voluntária, isto é, de um sujeito psicológico cujas escolhas determinam a variação, quando isoladamente, mas é o conjunto de avaliações que é analisado no estudo sociolinguístico, portanto não é a avaliação de um indivíduo que importa, é a avaliação da comunidade linguística:

Uma comunidade de fala não pode ser concebida como um grupo de falantes que usam todos as mesmas formas; ela é mais bem definida como um grupo que compartilha as mesmas normas a respeito da língua. Neste sentido, falantes mais velhos e mais jovens da cidade de Nova York pertencem a comunidades de fala ligeiramente diferentes, com uma descontinuidade bem distinta para aqueles falantes nascidos em meados dos anos 1920. (LABOV, 2008 [1972], p. 188)

Para o autor, a concordância quanto às regras em relação às variáveis e à hierarquia de restrições de determinados fatores no processo de variação linguística são pistas empíricas para determinação de uma comunidade de fala,

contudo o trecho acima evidencia que há outro ponto importante que define a comunidade: a avaliação que um grupo de falantes têm em comum em relação a determinadas variáveis linguísticas.

Para Labov (2008 [1972]), a comunidade não se define somente pela fala, mas pelas normas linguísticas, isto é, não se trata do objeto real (a fala), é a abstração desse objeto real (o conceito que se tem sobre língua, que, por sua vez, é definida a partir de normas linguísticas); são as normas linguísticas que delimitam a existência de diferentes línguas e não somente a materialidade linguística existente nelas.

As normas linguísticas são concebidas a partir da avaliação compartilhada por um conjunto de falantes, tal processo é considerado por Pagotto (2001) o elo (a tão problematizada correspondência) entre as variantes e as categorias sociais:

Poderíamos dizer que a avaliação das formas lingüísticas é a manifestação, no plano simbólico da língua, do processo de agregação e diferenciação que perpassa a estrutura social, o elo entre as categorias que rotulam os informantes - como sexo, escolaridade, classe social - e a variável lingüística. Assim, se de um lado o sistema heterogêneo é a língua da comunidade, a avaliação seria o discurso da comunidade. E como todo discurso, instaura uma posição de sujeito. (p. 72)

O autor postula que o que está operando na avaliação dos informantes são posições de sujeito. Deve-se diferenciar esse conceito do conceito de stance utilizado na Sociolinguística:

A useful place to start is Du Bois’s definition of stance as “a public act by a social actor, achieved dialogically through overt communicative means (language, gesture, and other symbolic forms), through which social actors simultaneously evaluate objects, position subjects (themselves and others), and align with other subjects, with respect to any salient dimension of the sociocultural field” (2007: 163). (JAFFE, 2009, p. 4-5).

A principal diferença entre os termos reside na consciência do sujeito em relação às escolhas e tomadas de posição que faz. Segundo Jaffe (2009), stance é a avaliação coletiva de um grupo de sujeitos em que se formam categorias nas

quais eles se posicionam, o que os une e os separa. É nesse processo que os sujeito se identificam socialmente. Para a autora, a variação linguística funciona como uma rede em que ocorre o ato do stance, sendo as variantes possíveis escolhas que o sujeito pode fazer.

Em contrapartida, na Análise do Discurso, a posição de sujeito (ou

posição-sujeito) é a identificação do sujeito com determinada posição ideológica

que ocorre no discurso (e não antes), porém sem que o sujeito saiba, isto é, o sujeito não escolhe uma posição e adota para si, por esse motivo fala-se em

interpelação do sujeito, as posições se materializam nele.

Outro ponto importante que diferencia esses termos é onde se dá a escolha/processo de identificação. A ideia de stance parece colocar as formas linguísticas num lugar de reprodução de uma escolha social já feita: First, linguistic stance can be read as a more or less direct sign of a position, identity, or role with which an individual wishes to be associated. (JAFFE, 2009, p. 10).

Já a posição-sujeito compreende um processo de identificação que ocorre somente no momento da enunciação e não antes, apesar de existirem processos históricos e sociais relevantes que operam fora do discurso. Pode-se concluir que sob o olhar da Análise do Discurso, o stance consiste nas posições ideológicas que o sujeito acha que toma, mas não nas que ele, de fato, toma. Como se verá adiante (em 2.2.3.), as posições que o sujeito realmente toma são esquecidas por ele.

As posições-sujeito pressupõem que existem processos de identificação em que há marcas não só do social, mas da história e da ideologia. Esse fato obriga a pensar-se nas relações políticas existentes dentro da estrutura social, ou seja, as relações hierárquicas de poder. Eckert (2005) fala sobre tais questões ao discorrer sobre a Terceira Onda Sociolinguística:

I am arguing that language is a practice that unfolds with respect to that institution. And it is the accumulation of practice that produces and reproduces that institution. The connection between the individual speaker’s competence on the one hand, and the institution on the other, therefore, lies in the layering of communities from the individual speaker’s most intimate contacts to the imagined community that is the English speaking world. (p. 16)

instituição, infere-se que existe um poder político (da instituição) presente na língua(gem), mas o problema está novamente na separação entre o social (político) e a língua. Apesar de a autora afirmar que é o acúmulo da prática que produz e reproduz a instituição, o que não seria refutado pela Análise do Discurso, tomam-se o informante e a instituição separadamente, sendo a conexão a estratificação dos informantes, quando, na verdade, essa conexão antecede qualquer categoria social, mesmo que determinada sob a comunidade de prática.

À luz do trabalho de Pagotto (2001), constata-se que o elo entre os dois planos já é concebido nas variantes, e não antes e nem depois, por isso a interpretação da distribuição da variação não deve estar centrada somente nas variáveis sociais, já que, segundo o autor, nem sempre a posição equivale à categoria social. Tal correspondência é raramente questionada na Sociolinguística, até mesmo nos trabalhos de Eckert.

Quando há dados que fogem da curva de normalidade, é que se deve analisar se não há o caso dessa correspondência ser falha. Tais dados podem, inclusive, apresentar-se como uma quebra nos estereótipos construídos nas comunidades de fala e eles servem como uma fonte rica de análise, em que o pesquisador se dedica a entender por que aconteceu essa fuga do padrão. Como por exemplo, jovens brasileiras de classe média que falam como pessoas da periferia: são falantes que desviam do padrão esperado e colocam em xeque o estereótipo de fala do jovem da periferia.

Tanto Eckert (2005) quanto Labov (2009 [1972]) reconhecem um simbolismo nas variáveis. A respeito do estudo em Martha’s Vineyard, Eckert (2005, p. 5) afirma que: Labov found that speakers were calling upon local

phonological variables as symbolic capital in the ideological struggle over the island’s fate. Portanto, se há algo de simbólico nas variantes, essa conexão entre

elas e a sociedade não está tão pré-determinada assim, nelas se inscreve algo. A visão de Eckert (2005) em relação às variantes é muito valiosa aqui, pois a autora as vê como lugar de construção de algo, o que se assemelha à noção de forma-sujeito da análise do discurso (onde se inserem os sujeitos de discurso):

It is this indirect nature of the relation between variables and categories that allows variation to be a resource not simply for the indexing of place in the social matrix but for the construction of new places and of nuanced social meanings. (2005, p. 22)

Entretanto, recorre-se, mesmo assim, à Análise do Discurso, aqui para falar sobre o processo de variação, por causa de uma separação ainda presente na Sociolinguística entre o social e a língua, o que se observa quando Eckert (2005) fala sobre a construção de uma identidade:

The individual constructs an identity – a sense of place in the social world – in balancing participation in a variety of communities of practice, and in forms of participation in each of those communities. (p. 17)

Mesmo que a noção de identidade seja a noção de um lugar e não o lugar em si, não se fala sobre essa noção de lugar que o informante pensa tomar e isso se relaciona com as variantes, pois elas salientam, muitas vezes, esses lugares imaginados como ideologias próprias dos informantes.

O trabalho presente está orientado não por uma noção de identidade, mas por uma noção de processos de identificação, que só podem ser visualizados quando descontruída essa ilusão de que o sujeito sabe quem é e que posição ideológica ocupada no discurso.

O trabalho de Pagotto (2001) é a principal referência de interface entre a Sociolinguística e a Análise do Discurso, portanto seus questionamentos à Sociolinguística de modo geral e seu método de análise dos informantes com dados de desvio de padrão são uma das bases fundamentais desta pesquisa. A próxima seção se dedica a explicar como se dão os processos de identificação do sujeito sob a perspectiva da Análise do Discurso.

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