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Os olhos da moça esvoaçaram sobre as páginas, viajando pelos séculos.

(Couto, 2006, p.175). Por meio da análise realizada no tópico anterior, parece ter sido possível constatar como as epígrafes dos capítulos que reapresentam acontecimentos relacionados com a história do continente africano se tornam elementos ligados à elaboração do texto iccional, o que caracteriza a utilização do recurso da intertextualidade na constru- ção da trama de 1560, em O outro pé da sereia. A utilização desse

recurso possibilita, também, a construção da trama no eixo temporal de 2002, conforme será possível observar neste último tópico da análise do romance de Mia Couto, em que se enfoca, principalmen- te, a presença dos manuscritos e dos livros da biblioteca de Jesustino Rodrigues, além da presença de algumas epígrafes, quando estas, no caso, puderem complementar o entendimento da construção do es- paço da escrita na obra analisada.

A intertextualidade com os manuscritos de D. Gonçalo da Sil- veira e com os livros de Jesustino Rodrigues, o padrasto de Mwadia Malunga, é um recurso que integra a moldura narrativa, perpassan- do os capítulos da trama de 2002 e atuando como mecanismo capaz de possibilitar à protagonista Mwadia, “essa que tinha corpo de rio e nome de canoa” (Couto, 2006, p.16), conhecer a história da colo- nização portuguesa, na África, no período de 1560, e, dessa forma, ligar o presente ao passado, contando a história de seu país. Mwa- dia tem acesso ao material que remete ao mundo histórico quando ela e seu marido Zero Madzero encontram, em um bosque, ossos humanos, a imagem de uma santa e um baú de madeira, contendo muitos papéis. Os dois consultam o adivinho Lázaro Vivo, icam sabendo que os objetos encontrados são do “missionário Silveira” e “[e]stão ali há mais de quatrocentos anos [...]” (Couto, 2006, p.41). O casal decide, então, que Mwadia deve levar a imagem da santa e a caixa com a papelada antiga para Vila Longe, vilarejo onde mora a família dela.

Em Vila Longe, a caixa com os papéis é colocada na bibliote- ca de Jesustino Rodrigues, o qual “herdara de seu avô, Inácio da Anunciação Rodrigues, uma inindável coleção de livros.” (Couto, 2006, p.90). Por meio desse material, Mwadia tem acesso a muitas informações sobre acontecimentos do período da colonização portu- guesa, em Moçambique, aproveitando tais informações para revelar a história do continente africano aos habitantes de Vila Longe e a Benjamin Southman, historiador afro- americano que “representava uma Organização Não-Governamental de apoio ao continente afri- cano. Tinha fundos para gastar em campanhas de redução da pobre- za.” (Couto, 2006, p.129).

Diferentemente do que ocorre nos capítulos do eixo temporal de 1560, em que a existência das epígrafes não se articula, especii- camente, à existência de personagens da moldura narrativa, no eixo de 2002, a existência dos manuscritos e dos livros vincula-se, princi- palmente, à protagonista Mwadia,18 a qual tem acesso a esse material

que remete ao mundo histórico, conforme demonstra o fragmento a seguir: “Nesses últimos dias, Mwadia fechava-se no sótão e esprei- tava a velha documentação colonial.” (Couto, 2006, p.238).

Os manuscritos e os livros são, portanto, referências intertex- tuais sobre o passado de Moçambique e sobre a história da coloni- zação portuguesa, na África, com as quais se envolve diretamente a protagonista do texto iccional. Nesse caso, o trabalho intertextual é o mesmo veriicado em O ano da morte de Ricardo Reis e Nove noites.

Nesses romances, os respectivos protagonistas Ricardo Reis e nar- rador-personagem também têm acesso ao material ligado ao mundo histórico, assim como ocorre com Mwadia, em O outro pé da sereia. Essa situação, revelada nas três narrativas analisadas, implica, o que prevê Jenny (1979, p.26), quando informa sobre o tipo de constru- ção que aloja um “‘corpus’ intertextual”, na qual as “citações, de resto, são sempre motivadas do ponto de vista narrativo, o seu lugar na enunciação é designado [...].” Ou seja: o texto iccional dispõe dos textos que remetem a fatos históricos, manipulando forma e conteú- do desses textos.

A intertextualidade com os manuscritos e com os livros, a exem- plo do que ocorre com a intertextualidade com as epígrafes dos ca- pítulos que reapresentam o período histórico de 1560, é um recurso que se manifesta no discurso do narrador, conforme se nota a seguir:

18 Outro personagem da narrativa, Arcanjo Mistura, o barbeiro de Vila Longe, também tem acesso ao material histórico, conforme se constata na passagem a seguir: “Du- rante tempos, passou [Arcanjo Mistura] noites inteiras na biblioteca de Jesustino Ro- drigues e, iluminado por um petromax, devorou livros como um cachorro esfaimado abocanha a própria saliva.” (Couto, 2006, p.120). A atenção, aqui, entretanto, é vol- tada para a relação da protagonista com os manuscritos e os livros.

O padrasto visitava regularmente a biblioteca mas apenas para comba- ter térmites, traças e o tempo. O que ele sentia é que os livros escondiam pegadas do passado, e que a tinta das páginas era a saliva dos já extintos (Couto, 2006, p.90).

Cabe ao narrador, nesse caso, explicar o mistério dos livros, ob- jetos nos quais se escondem “pegadas do passado” e cuja “tinta das páginas era a saliva dos já extintos”. Essa explicação do narrador faz pensar, por exemplo, nas informações históricas contidas nos livros (“pegadas do passado”) e registradas por quem já se foi (“saliva dos já extintos”). É possível pensar, ainda, que essa explicação remete, também, ao próprio processo de construção do romance iccional de Mia Couto, caracterizado pela presença de textos relacionados com fatos históricos (“pegadas do passado”) e com iguras históricas (“saliva dos já extintos”). Trata-se de um processo responsável por registrar, principalmente, a realidade da escrita (“a tinta das pági- nas”), implicando que, no romance, o passado e as iguras históricas (e suas falas representadas pela saliva) adquirem concretude no ma- terial livro.

O narrador mantém, dessa forma, o papel de autor implícito, igura que Leonel (2001, p.74) explica, por meio da “metáfora-me- tonímia” da “mão”, da seguinte forma: “[a] mão que escreve não é apenas a mão artesã, é criativa-criadora na ação de traduzir o mundo: ela desencadeia a transformação das coisas, quando começa a movi- mentar os sinais na página.” Como se constata, ainda no excerto aci- ma (referente à página 90 de O outro pé da sereia), o autor implícito fala não só sobre o mistério dos livros, mas também sobre o misté- rio da construção da narrativa, colaborando, então, para “traduzir o mundo”, para “transformar as coisas.” Nesse caso, pode pensar-se, inclusive, na realização de um trabalho de metalinguagem, de acor- do, por exemplo, com o que explica Chalhub (2002, p.8), ligando o conceito de metalinguagem “à ideia de leitura relacional, equação, referências recíprocas de um sistema de signos, de linguagem.”

Trata-se, então, de um romance com condições de traduzir o mistério dos livros e, também, o mistério do mundo, e a passagem

transcrita, sobre os livros que escondem “pegadas do passado”, cujas páginas contêm “saliva dos já extintos” (Couto, 2006, p.90), torna-se bastante elucidativa, podendo apresentar-se, conforme já se disse, como possibilidade de deinição do romance analisado, li- gando-o à categoria de romance histórico. Essa deinição, aplicada ao livro de Mia Couto, pode implicar a relação denominada por Ge- nette (1989, p.13) de “metatextualidade”: uma espécie de “comen- tário” que um texto realiza sobre outro, sempre de âmbito crítico. A tradução dos livros e do mundo indica, ainda, que o autor implí- cito une sua ideologia ao texto iccional, e essa visão manifestada, na narrativa, corresponde ao que Samoyault (2008, p.103) considera como “caracterização elementar” da intertextualidade, recurso que “faz assim aparecer a primeira hibridez [...] justapondo várias falas, vários contextos e várias vozes.”

É por meio, pois, da intertextualidade com os manuscritos e com os livros que a protagonista Mwadia Malunga tem acesso ao conhe- cimento, conforme se constata no excerto a seguir:

Nesses últimos dias, Mwadia fechava-se no sótão e espreitava a velha documentação colonial. Agora, ela sabia: um livro é uma canoa. Esse era o barco que lhe faltava em Antigamente. Tivesse livros e ela faria a travessia para o outro lado do mundo, para o outro lado de si mesma (Couto, 2006, p.238).

No fragmento acima, por meio da referência à “velha documen- tação colonial”, é possível explicar a relação que se estabelece entre a protagonista e os livros: uma relação de conhecimento “do mundo” e, ainda, de conhecimento “de si mesma.” Conforme sentencia o au- tor implícito, “um livro é uma canoa” que permite a Mwadia o aces- so ao conhecimento. Processando-se dessa forma, em O outro pé da

sereia, a intertextualidade pode ser relacionada, por exemplo, com

o que diz Jenny (1979, p.22, grifo do autor) sobre o “poder inini- tamente superior” do discurso intertextual em relação ao “discurso monológico corrente.” Isso implica que, no eixo temporal de 2002, o trabalho intertextual amplia as possibilidades de sentido do novo

texto, tendo em vista a complexidade da natureza híbrida represen- tada pelo intertexto.

Essa relação entre a protagonista e o conhecimento, promovida pela intertextualidade com “a velha documentação colonial”, cor- responde, também, a uma forma de a referência se manifestar na moldura narrativa, pois o conhecimento do mundo está relacionado com a presença dos velhos documentos de teor histórico no texto ic- cional. Essa possibilidade de apresentação da referência, em O outro

pé da sereia, vai ao encontro, por exemplo, da ideia de Compagnon

(2001, p.131), segundo o qual “não há outro caminho em direção ao mundo, outro acesso ao referente senão contando histórias.” Ou seja: no romance, os livros são a ponte entre Mwadia e o mundo. Nesse caso, ainda, a intertextualidade com o material de teor históri- co, ao inserir, no texto iccional, a ideia do mundo e da possibilidade de seu conhecimento corresponde a um recurso que, “[...] mesmo mantendo o discurso nas regras do enunciado literário, permite sina- lizar do lado do mundo [...].” (Samoyault, 2008, p.112).

É possível dizer, então, que a “velha documentação colonial” conirma o efeito de veridicção em O outro pé da sereia, pois esta referência indica a presença do mundo histórico, fazendo parte tam- bém da composição do espaço da escrita nesse romance, o que refor- ça a ideia defendida neste estudo sobre a importância da intertextua- lidade como prática literária com condições para provocar relexões sobre o elo entre literatura e história, na atualidade. Além do conhe- cimento do mundo, o acesso ao material de teor histórico permite à protagonista conhecer alguns aspectos da história da colonização portuguesa no continente africano, como, por exemplo, o controle exercido pelo país co lonizador quanto aos lucros obtidos na colônia, conforme demonstra a passagem a seguir:

Em voz alta, Mwadia lia trechos inteiros sobre a história de Vila Longe, lia relatórios de contas da administração colonial, lia cópias de despa- chos dos governadores, correspondência oicial e anotações de viagem (Couto, 2006, p.239).

No material lido por Mwadia constam, portanto, referências sobre a “história” da ictícia Vila Longe, as quais remetem à história oicial de Moçambique. Esse país africano prestava conta aos colo- nizadores portugueses, conforme exempliica a referência à leitura realizada pela protagonista dos “relatórios de contas da adminis- tração colonial”, dos “despachos dos governadores”, da “corres- pondência oicial” e das “anotações de viagem”. Aliás, mais do que prestar contas aos portugueses, os moçambicanos eram obrigados a gerar recursos para que os governantes do país ibérico pagassem as próprias contas. Essa situação é veriicada, inclusive, após a abo- lição da escravatura, ocorrida em 1879. Com o im da escravatura, houve uma mudança na prática colonial, com a substituição da prá- tica mercantil pelo capitalismo e a criação de “mecanismos de do- minação” dos africanos, a im de gerar mão-de-obra barata (Zam- paroni, 2007, p.37).

De posse do material que remete ao mundo histórico, Mwadia, a “inventadeira” (Couto, 2006, p.27), recebe a missão de colaborar com os habitantes de Vila Longe, realizando a tarefa da qual lhe incumbiu seu tio, o empresário Chico Casuarino, cujo propósito é “[...] contar uma história aos americanos [...] vender-lhes uma grande

história.” (Couto, 2006, p.133). É interessante observar essa ideia

desenvolvida na moldura narrativa de “inventar” uma história para se “vender”. Trata-se de uma ideia que soa bastante crítica, e o fato de a icção admitir a possibilidade de as histórias serem inventadas para serem “vendidas”, e não para serem apenas “contadas”, ou, en- tão, “informadas”, é exemplo de trabalho de metalinguagem, que, conforme reconhece Chalhub (2002, p.42), indica “ perda da aura, uma vez que dessacraliza o mito da criação, colocando a nu o pro- cesso de produção da obra.” A intenção do ambicioso Casuarino é a seguinte: fazer com que Benjamin Southman, o afro-americano representante da ONG dos Estados Unidos, pague por informações sobre o continente africano. Como airma o empresário, sobre a ideia do pagamento,

[e]stes gostam [de pagar] porque sentem-se culpados, está a perceber? Saíram daqui, deixaram a malta a sofrer com o colonialismo e, agora, regressam engravatados, cheio de inglesuras, e a gente ainda passando fome (Couto, 2006, 131).

Para Casuarino, o fato de o afro-americano pagar por informa- ções sobre o passado é uma forma de fazer os descendentes de africa- nos que saíram do continente e enriqueceram em outros lugares do mundo compensarem a miséria de quem icou. Entretanto, o empre- sário Casuarino almeja apenas uma forma de ele próprio enriquecer, e por isso ele pede para Mwadia inventar algumas histórias sobre o passado de Vila Longe, ingindo ser visitada pelos escravos mortos “[...] que partiram nas naus para além dos mares. As vozes desses falecidos falariam pela boca da sobrinha.” (Couto, 2006, p.134). A partir dessa ideia de Casuarino, a protagonista passa, então, a ingir que está sendo possuída por espíritos, mas, na verdade, ela simples- mente lê o material de teor histórico guardado na biblioteca de seu padrasto, o alfaiate Jesustino Rodrigues. Assim, visitando a biblio- teca, Mwadia tem acesso aos manuscritos e aos livros, e por meio da referência a essa documentação, ela diz coisas que remetem, por exemplo, à igura histórica do jesuíta D. Gonçalo da Silveira, con- forme demonstra o fragmento a seguir: “— Entreguem o livro a D.

Gonçalo da Silveira. Digam-lhe que o imperador o vai matar. Amanhã ele vai ser assassinado.” (Couto, 2006, p.235).

A protagonista, ao recuperar, nos livros e manuscritos, informa- ções históricas e divulgá-las, por meio da representação que realiza, contando-as para as pessoas, é responsável por ligar não só o passado com o presente, mas também o mundo da realidade com o da icção e, ainda, o mundo da escrita com o mundo da oralidade.19 Assim, a

moça com “nome de canoa” (Couto, 2006, p.16) age, como mantene- dora de certa forma de narrar, contando, oralmente, certos aspectos

19 Com isso, Mwadia pode exempliicar mais um elemento criado por Mia Couto com condições de inserir-se na “galeria de personagens que normalmente realizam a liga- ção entre os mundos da escrita e da oralidade – como Kindzu, de Terra Sonâmbula [...].” (Ventura, 2006, p.255).

da história de Moçambique. Essa atuação é, inclusive, constatada pelo autor implícito, que realiza comentários de teor metaiccional, explicando, por exemplo, que “[...] a representação estava indo lon- ge demais, Mwadia actuava de modo tão verossímil [...]” (Couto, 2006, p.235), manifestando, assim, a “consciência de quem narra”: a “consciência da metalinguagem da arte.” (Chalhub, 2002, p.63).

Quanto ao conteúdo da revelação feita pela protagonista sobre o assassinato de D. Gonçalo da Silveira por ordem do imperador africano, é possível também associar essa ideia à de uma epígrafe da moldura narrativa representada pela fala do personagem do barbeiro de Vila Longe.20 Trata-se de uma epígrafe em que ocorre uma rele-

xão sobre o trabalho de passar “a escrita a sujo”, enquanto muitos preferem passar a “escrita a limpo”, e sobre o “sotaque” de quem narra, em contraponto com a “caligraia” de quem escreve (Couto, 2006, p.232). O aproveitamento do conteúdo da epígrafe permite pensar no trabalho intertextual, já mencionado aqui, inclusive, de- nominado por Jenny (1979, p.34) de “engaste”, em que o fragmen- to é lançado no novo contexto, por meio de ligações que priorizam “certa unidade semântica.” No caso de Mwadia, observa-se que ela revela informações pouco divulgadas, quanto ao processo de coloni- zação de Moçambique, colaborando, assim, para revelar a “sujeira” da escrita oicial sobre o passado, fazendo-se entender claramente, na narrativa, por meio da linguagem oral, marcada, inclusive, por seu “sotaque” de moçambicana falante do idioma dos portugueses.

É por isso, então, que as revelações de Mwadia pegam de sur- presa seu tio, o empresário Casuarino, pois sua sobrinha diz coisas que não estão previstas no pedido feito por ele, para a moça ajudá-lo, contando histórias que seriam “vendidas” aos americanos. A inten- ção de Casuarino é apresentar a história sobre uma África exótica,21

20 Transcreve-se aqui a epígrafe mencionada: “Os outros passam a escrita a limpo. / Eu

passo a escrita a sujo. / Como os rios que se lavam em encardidas águas. / Os outros têm caligraia, eu tenho sotaque. / O sotaque da terra. O Barbeiro de Vila Longe.” (Cou-

to,2006, p.232).

21 Segundo Ribeiro (2011, p.6), “os habitantes de Vila Longe forjam memórias e histórias que possam satisfazer a necessidade de Benjamin de recuperar uma África

sem, entretanto, revelar a “História”, pois “essa, a História, era a única coisa que Casuarino queria esconder do afro-americano.” (Couto, 2006, p.291). E que história é essa sobre África que não deve ser contada?

Uma das questões levantadas no eixo de 2002 relaciona-se, por exemplo, com o fato de, no passado, os africanos também pratica- rem, entre si, a escravidão, conforme demonstra o fragmento a se- guir: “_ Esses negros vieram do Sul e nos escravizaram, nos captura-

ram e venderam e mataram. Os portugueses, numa certa altura, até nos ajudaram a lutar contra eles [...].” (Couto, 2006, p.149). A revelação

feita pelo personagem Zeca Matambira de que os africanos também atuaram como traicantes de escravos é um assunto do qual não se deve falar, como adverte o empresário Casuarino, na seguinte passa- gem: “_ Você é burro, vizinho. [...] Quem lhe mandou falar dessa por-

caria dos vangunis, ainda por cima com os portugueses a salvar- nos?.”

(Couto, 2006, p.149).

Sobre essa questão, é apresentada, em O outro pé da sereia, em forma de nota, a explicação de que o termo “vanguni” é “[...] plu- ral de nguni, grupo étnico proveniente do Norte da África do Sul e que, em meados do século XIX, invadiu o território moçambica- no.” (Couto, 2006, p.132). O uso do recurso da nota, fazendo parte também da construção do espaço da escrita no romance, tem, nesse caso, a função de apoiar, de respaldar a narrativa, implicando, por exemplo, a intenção do autor de trazer “[...] à lembrança aquilo so- bre o que o texto se apoia” (Compagnon, 2007, p.124). Ainda so- bre o grupo dos “vanguni”, parece importante citar a explicação de Zamparoni (2007, p.64), ao descrever a existência da prática de im- postos entre as sociedades africanas, antes da chegada dos europeus, observando o seguinte: “Os povos do Sul do Save, submetidos aos nguni, deviam prestar-lhes ainda uma série de serviços quer nas ma-

chambas, casas ou obras por estes designadas.”

enquadrada como primitiva e selvagem; seu desejo é nada mais do que um eco de um discurso secular europeu [...].”

Pelo que se pode depreender das informações apresentadas, a etnia dos “vanguni” caracteriza-se por estabelecer relações nada pacíicas e solidárias com outras tribos do continente africano. E é justamente a questão dos “vangunis” um assunto que, na narrativa, alguns personagens habitantes de Vila Longe fazem questão de es- quecer. Nesse caso, a situação desenvolvida não decorre, especiica- mente, da intertextualidade com os livros e com os manuscritos, mas é construída com base, por exemplo, na referência a uma das epígra- fes da trama de 2002, identiicada como a fala de “Lázaro Vivo, o Adivinho” (Couto, 2006, p.136)22 e cuja ideia alude à passagem do

tempo como forma de apagar o próprio tempo. Apagando-se o tem- po, espera-se, pois, que sejam apagados também os acontecimentos, ou, então, as lembranças que deles se têm.

O aproveitamento intertextual que retoma o teor do texto da epígrafe correspondente à fala do personagem da moldura narrativa, desenvolvendo-o de forma sutil, remete à “elipse”, processo identi- icado por Jenny (1979, p.39) como “repetição truncada”, por meio da qual se desenvolve um texto novo, rompendo com o texto antigo e frustrando, de certa forma, o leitor, “impaciente por ver realizar-se o arquitexto”. O trabalho de recuperação textual processado em for- ma de elipse origina, então, em O outro pé da sereia, uma situação em torno de um assunto sobre o qual não se deseja, ou não se deve falar: a questão dos “vangunis” deve ser evitada pelos personagens, se- gundo a recomendação do empresário Casuarino, a im de não expor