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O título do romance Nove noites indica as nove noites durante as quais o personagem Manoel Perna5 teve a oportunidade de conversar

com Buell Quain, em 1939. O engenheiro refere-se, no testamento, a esse tempo decorrido da seguinte forma: “[...] foram apenas nove

5 A respeito da igura de Manoel Perna, Danilo Luiz Carlos Micali (2008, p.132), citando entrevista de Bernardo Carvalho, informa que “esse personagem [Manoel Perna] possui um seu correspondente extraicção – Quain teria conhecido alguém chamado Manoel Perna durante a sua estada na região, apenas que esse indivíduo não seria engenheiro, como aparece na história, e sim barbeiro, conforme airmou Bernardo Carvalho.”

noites [...] A primeira, na véspera de sua partida para a aldeia. De- pois, mais sete durante a sua passagem por Carolina em maio e junho

[...] e a última quando o acompanhei pelo primeiro trecho de sua volta

à aldeia [...].” (Carvalho, 2002, p.46). O testamento, escrito após a

morte de Quain, é uma referência intertextual que remete à história do etnólogo, conforme ele próprio teria contado ao engenheiro, em 1939. As partes correspondentes ao testamento e escritas em itálico, em Nove noites, são nove. Nove noites poderia, talvez, ser apenas o título do testamento, por exemplo.

O título, entretanto, abrange a moldura narrativa correspon- dente ao romance Nove noites, implicando o que preconiza Com- pagnon (2007, p.110), para quem o título pode ser entendido como referente de toda a “enunciação”, ao qual “se submetem todos os ob- jetos semelhantes [...].” Portanto, o título comporta a moldura nar- rativa correspondente ao romance de Bernardo Carvalho, composta pelo testamento e por outros componentes intertextuais, como, por exemplo, as cartas atribuídas ao etnólogo norte-americano e a outras iguras históricas. Estes componentes originam uma construção ic- cional permeada pela intertextualidade, que “fala uma língua cujo vocabulário é a soma dos textos existentes.” (Jenny, 1979, p.22). Dessa forma, é possível pensar que a intertextualidade se antecipa no título do romance, com destaque para um dos componentes do processo de composição predominante na narrativa.

O testamento é grafado em itálico, e o uso do itálico, nesse caso, vai ao encontro do que teoriza Compagnon (2007, p.53), para expli- car o trabalho da citação: segundo ele “[c]om o itálico, marca-se o paradoxal, o que está à margem da opinião comum, uma insistência ou supervalorização do autor, uma reivindicação da enunciação. O itálico equivaleria a ‘Eu sublinho’ ou ‘Sou eu mesmo quem o diz.’”

Interpretando, então, o uso do itálico em Nove noites, segundo a explicação de Compagnon, é possível dizer que o testamento se apresenta, na verdade, como um truque iccional, uma referência atribuída ao engenheiro Manoel Perna, mas que se revela, também,

como invenção do narrador-personagem6 (o qual, em última ins-

tância, é invenção do autor Bernardo Carvalho), pois este admite o seguinte: “[...]. Manoel Perna não deixou nenhum testamento, e eu imaginei a oitava carta.” (Carvalho, 2002, p.135). É possível, por- tanto, pensar no testamento como invenção do narrador-persona- gem, contrapondo-se, de certa forma, às cartas, referências atribuí- das a iguras reais e remetidas a outras iguras com equivalentes na realidade. Nesse caso, o documento corresponde, também, ao que teoriza Samoyault (2008, p.105) sobre a presença de certas “farsas” e “armadilhas”, indicando a igura de um “colador que faz o texto entrar numa mimèsis generalizada, onde tudo teria o mesmo grau de realidade ou de irrealidade.”

A existência do “colador” que, em Nove noites, manipula o texto iccional e deixa pistas sobre sua existência (como demonstra a teoria de Compagnon sobre o uso do itálico) remete a icção a uma realida- de externa e reconhecida, inclusive, pelo autor Bernardo Carvalho, nos agradecimentos feitos no inal de seu livro. Na parte destinada aos agradecimentos, o autor menciona as pessoas com as quais ele pode contar durante a “pesquisa que o precedeu [o romance]”, reco- nhecendo, ainda, que Nove noites “[é] uma combinação de memória e imaginação – como todo romance [...].” (Carvalho, 2002, p.169). Nesse aspecto, esse procedimento realizado por Bernardo Carvalho representa, no âmbito das relações que extrapolam a arquitetura textual, apresentadas por Genette (1989, p.10), um “paratexto”, pois sinaliza para a forma de constituição do romance. Além disso,

6 A possibilidade de se atribuir a invenção do testamento ao narrador-personagem embasa-se em intepretações de Nove noites consideradas aqui bastante pertinen- tes, como a interpretação do professor Beny Ribeiro dos Santos (2007, p.34), o qual entende que “[e]sgotados todos os meios de encontrar a oitava carta que daria um sentido a toda a história, o narrador assume o papel de iccionista e imagina a carta- testamento deixada por Manoel Perna [...] o que, se não esclarece os fatos [...] levanta várias suposições.” Outra interpretação de Nove noites que vem ao encontro do en- tendimento deste estudo é a de Micali (2008, p.152), segundo o qual “ao revelar [o autor-narrador] que nunca existiu uma oitava carta [...] desvanece a aparência de ‘rea- lidade’ ou ‘verdade’ da icção. Ou seja, a oitava carta, em forma da carta-testamento de Perna, que inalmente revelaria a verdade sobre a morte de Quain, fora inventada pelo autor-narrador do romance [...].”

o tempero da “memória” e da “imaginação” do autor, adicionado à pesquisa que ele, de fato, reconhece ter realizado, permite conir- mar, em Nove noites, a importância do trabalho intertextual para se pensar, conforme a ideia deste estudo, sobre as relações entre lite- ratura e história, considerando, por exemplo, que a inclusão de ele- mentos provenientes da realidade propicia um efeito de veridicção para a moldura narrativa, favorecendo a presença da história no livro de Bernardo Carvalho.

Quanto às cartas atribuídas a iguras históricas, estas, a exem- plo do testamento de Manoel Perna, constituem também material de referência sobre o caso do etnólogo norte-americano. No caso das cartas incluídas no espaço da escrita em Nove noites, elas são desta- cadas pelo uso das aspas, indicando a existência de uma documen- tação histórica, documentação que a narrativa leva a crer que seja de origem oicial. As cartas fazem parte da narrativa, incluindo-se, diretamente, no discurso do narrador-personagem. Seguindo as me- táforas de Compagnon (2007, p.37-38), a assimilação de um texto por outro texto corresponde ao “enxerto” de um órgão, sem que haja rejeição deste órgão. No caso do enxerto textual, o uso das aspas corresponde a um “adorno a mais”, pois o texto enxertado deve ser “assimilado ao novo texto.” Essa assimilação de que trata Compag- non é observada na composição do romance, não havendo atrito ou estranhamento no trabalho de aproveitamento das cartas pelo texto iccional. Pelo contrário: os textos se harmonizam na tentativa do narrador de construir “a imagem de quem eu [narrador- persona- gem] procurava.” (Carvalho, 2002, p.14).

Os documentos referentes ao caso Buell Quain são incluídos no discurso do narrador-personagem, e o uso das aspas para destacar o conteúdo desse material, diferenciando-o do conteúdo do discurso do narrador, implica uma forma de composição textual caracteri- zada como ato de reescrever, conforme teoriza Compagnon (2007, p.39), ao airmar que “[...] toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário.” Nesse caso, as aspas evidenciam a participação de diferentes sujeitos no discurso iccional, correspondendo, assim, a “um sinal tipográico da citação, um indicador que equivale a ‘Eu

cito’”, demonstrando, ainda, que o “autor renuncia à enunciação em benefício de um outro [...].” (Compagnon, 2007, p.52). Em Nove

noites, então, a intertextualidade com as cartas indica a existência de

sujeitos diferentes da pessoa do narrador-personagem, os quais en- contram seus equivalentes na realidade.

Há que se atentar, entretanto, para a presença das aspas no “texto trapaceiro”. Conforme adverte Compagnon (2007, p.55), no “texto trapaceiro, cheio de aspas, começo por tirá-las todas, a im de colocá-las onde tenho vontade. Toda leitura recusa ou desloca aque- la que se dissimula na escrita, e não são as aspas que impedem esse gesto.” A possibilidade de o romance Nove noites constituir-se como “texto trapaceiro” é plausível, justiicando-se, por exemplo, pela evidência do truque do testamento, pela declaração do próprio au- tor, nos “Agradecimentos”, de que tudo é resultado da “memória” e da “imaginação” e, ainda, pelo que diz Bernardo Carvalho (2011), em entrevista, comentando que “[...] a indistinção entre fato e icção faz parte do suspense do romance [...] existem referências a pessoas reais. Mas mesmo as partes em que elas [as referências] aparecem podem ter sido inventadas. Em última instância, tudo é icção.”

O uso das aspas no discurso do narrador- personagem para dife- renciar o discurso do narrador do discurso atribuído a iguras históri- cas remete também à teoria de Samoyault sobre a intertextualidade. Para Samoyault (2008, p.36), “[c]onsiderar a intertextualidade como colagem é enfatizar uma transferência exterior mais do que o diálo- go, as marcas de uma passagem, de um empréstimo, mais do que o processo de transformação.” No romance de Bernardo Carvalho, a presença das aspas evidencia, então, a diferença entre “material emprestado e texto de acolhida.” A intertextualidade com as cartas implica, ainda, a analogia que Samoyault (2008, p.36) faz entre a ci- tação, na literatura, e a colagem na pintura cubista, manifestações cuja presença de elementos da realidade faz reletir sobre a vida fora do texto ou do quadro (na pintura), embaralhando-se as “frontei- ras entre a arte, a icção e a realidade”, como forma de “questionar o mundo imitado”. No romance sobre Buell Quain, o discurso do narrador-personagem, permeado por citações atribuídas a iguras

históricas, não tenciona simplesmente transpor a vida para a arte. Nesse caso, a presença das citações tem a ver com o que também teo- riza a crítica francesa sobre a transformação do texto do outro, “des- locando-o, oferecendo-lhe novo contexto.” (Samoyault, 2008, p.38). Em Nove noites, a utilização do recurso da intertextualidade com as cartas como forma de “questionar o mundo imitado” e como for- ma de deslocamento de um texto a partir do qual se inscreve outro contribui para reforçar a hipótese deste estudo sobre as implicações do trabalho intertextual nas relexões a respeito das relações entre li- teratura e história na contemporaneidade, haja vista que, no roman- ce de Carvalho, a intertextualidade não só abre caminho para a in- clusão, na literatura, de referentes de teor histórico, proporcionando o efeito de veridicção, o qual contribui para a presença da história na moldura narrativa, como também cria condições para o surgimen- to de novas versões sobre o caso do etnólogo, evitando a repetição e atuando em prol da (re)invenção, indo ao encontro, inclusive, da atual utilização do conceito de mimèsis como “conhecimento” e não mais como “cópia” (Compagnon, 2001, p.127).

A intertextualidade, em Nove noites, assim como ocorre em O

ano da morte de Ricardo Reis, é também “matéria da obra” e, nesse

aspecto, o romance sobre Buell Quain, assim como o romance so- bre Ricardo Reis, também se ajusta à teoria de Jenny (1979, p.6-7) quando este teórico aponta para a presença compatível do fato inter- textual como produto do código e como matéria da obra, caracterís- tica esta que indica a “forte coloração de metalinguagem” do texto.

A possibilidade de se escrever um romance a partir do material existente sobre Buell Quain é apresentada quando o narrador, ao procurar a antropóloga que havia escrito um artigo sobre o etnólogo norte- americano, declara o seguinte: “[s]upôs [a antropóloga] que eu quisesse escrever um romance, que meu interesse fosse literário, e eu não a contrariei [...].” (Carvalho, 2002, p.14); ou, então, quan- do ele apresenta a seguinte explicação: “[n]inguém me perguntava a razão. Eu dizia que queria escrever um romance [...].” (Carvalho, 2002, p.75). O narrador admite, então, a intenção de escrever um romance, e essa declaração indica, nesse caso, a presença da função

metalinguística, uma vez que se trata de “código falando de código”, de “literatura sobre literatura.” (Chalhub, 2002, p.32).

Além da intenção de escrever um romance, o narrador-per- sonagem, obcecado pela existência de uma “suposta oitava carta” (Carvalho, 2002, p.153), pois, segundo ele acredita, “[t]inha que haver uma carta em que ele [Buell Quain] revelasse os seus desejos e sentimentos” (Carvalho, 2002, p.27), declara que imaginou a oitava carta, equivalente ao testamento, conforme já foi mencionado aqui. O fato de o narrador- personagem admitir ter imaginado um docu- mento contendo referências sobre o etnólogo vai ao encontro do que preconiza Chalhub (2002, p.42) sobre a questão da “perda da aura” do objeto artístico, o qual passa a signiicar com base na prevalência da “concepção metalinguística – consciência e construção, em contra- posição a sentimento e expressão.”

O funcionamento da intertextualidade como trabalho de teor metalinguístico permite ao leitor acompanhar certas etapas relacio- nadas com a produção do texto iccional, atentando para as poten- ciais interpretações desse texto e, por conseguinte, de outros textos, como, por exemplo, de textos históricos, sujeitos, inclusive, a inter- pretações literárias, as quais originam romances contemporâneos, como é o caso desses que integram o corpus deste estudo. Em Nove

noites, portanto, o testamento e as cartas constituem-se importantes

referentes que compõem o espaço da escrita no romance, gerando uma construção intertextual capaz de apontar para sua própria eco- nomia, sem deixar de contemplar o fato histórico, e isso contribui para endossar a hipótese deste estudo, que coloca a intertextualidade como recurso com condições de sinalizar para o processo de repre- sentação da história pela literatura, na atualidade.

O testamento, impresso em itálico, e as cartas, destacadas pe- las aspas, constituem, como é possível notar, referências intertex- tuais explícitas, e o processo de complementar a moldura narrativa a partir, principalmente, desses elementos intertextuais correspon- de ao que Jenny (1979, p.25) chama de “enquadramento narrativo tradicional”, pois o testamento e as cartas são inseridos na moldura narrativa correspondente ao romance Nove noites, e a relação dessas

referências com a igura do narrador-personagem, protagonista da trama criada por Bernardo Carvalho, indica que a intertextualidade, nesse caso, se encontra, também, a serviço da icção, ou, de acordo com as palavras de Jenny (1979, p.26), “[a]s formas [...] permanecem acorrentadas à icção.”

Para descrever com mais precisão o papel das cartas e do testa- mento, esta análise enfoca, a partir de agora, a intertextualidade com as cartas atribuídas a iguras históricas e, a seguir, a intertextuali- dade com o testamento de Manoel Perna, a im de tentar entender como se origina a construção intertextual (o espaço da escrita) cor- respondente ao romance Nove noites.