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[...] mas não lhe peço que acredite em mais nada – a verdade

depende apenas da coniança de quem ouve.

(Carvalho, 2002, p.25). Em Nove noites, tão signiicativa quanto a intertextualidade com as cartas é a intertextualidade com o testamento. Trata-se, nesse caso, de uma referência que também remete à trajetória do etnólogo norte-americano, registrando, porém, aquilo que um personagem da moldura narrativa, o engenheiro Manoel Perna,8 escreve, dizen-

do ter ouvido do próprio Buell Quain, por ocasião da passagem do etnólogo pelo Brasil, em 1939. Manoel Perna, no documento que escreve, revela como se tornou amigo e conidente de Quain, duran- te as estadas do etnólogo em Carolina, cidade localizada no Estado brasileiro do Maranhão.

O testamento apresenta-se como uma referência sobre Buell Quain, completando a construção da narrativa correspondente ao romance Nove noites, numa combinação de memória e imaginação, segundo é possível constatar, por exemplo, na seguinte passagem da carta do engenheiro: “O que lhe conto é uma combinação do que ele me

contou e do que imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe contar ou escrever.” (Carvalho, 2002, p.134).

Diferentemente do que ocorre com a intertextualidade com as cartas, as quais são inseridas no discurso do narrador-personagem entre aspas, em forma de citação (no mesmo parágrafo ou em pará- grafo diferente do parágrafo do discurso do narrador-personagem), a intertextualidade com o testamento decorre da disposição desse documento entre os capítulos da história contada pelo narrador- -personagem. A inserção desse elemento intertextual não prejudica

8 A respeito do personagem Manoel Perna, autor do testamento, Micali (2008, p.131) deine-o como “narrador homodiegético, como personagem que viveu uma relação de amizade com Quain, dentro da narrativa.”

o sentido da moldura narrativa, e a carta de Manoel Perna, assim como as cartas atribuídas a iguras históricas, apresenta informações sobre Buell Quain, insistindo, porém, na impossibilidade de se ob- ter a verdade quanto aos fatos relacionados com o etnólogo, confor- me se constata pela passagem a seguir: “Vai entrar numa terra em

que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui.” (Carvalho, 2002, p.7).

O documento escrito por Manoel Perna faz parte, portanto, da construção do espaço da escrita em Nove noites, apresentando-se em capítulos intercalados com os demais capítulos da moldura narrati- va, em que é narrada a história do narrador-personagem. A dispo- sição dessa referência remete ao que diz Jenny (1979, p.21) sobre o trabalho intertextual, ao airmar que “[o] que caracteriza a intertex- tualidade é introduzir a um novo modo de leitura que faz estalar a linearidade do texto.”

O testamento compõe nove dos dezenove capítulos do romance

Nove noites, e essa forma peculiar de elaboração implica, ainda, o

que teoriza Jenny (1979, p.25) sobre a construção intertextual, cuja “cronologia pode desaparecer e a narrativa tornar-se lacunar, desde que uma unidade se isole facilmente, que se opere uma construção, em que os materiais intertextuais possam ocupar o seu lugar.” Ten- do em vista, então, essa possibilidade apresentada por Jenny, pode considerar-se a carta escrita pelo engenheiro como uma unidade isolada que também assinala a presença da história na icção de Ber- nardo Carvalho, pois diz respeito a Buell Quain, a fatos e a iguras reais relacionados com o etnólogo, a partir das informações de Ma- noel Perna.

Dessa forma, é possível considerar o texto escrito pelo engenhei- ro de Carolina como uma das referências que compõe a narrativa, e a frase “Isto é para quando você vier”, que inicia sete das nove par- tes correspondentes ao documento, aponta para a existência de um “herdeiro” para o testamento, o qual comporta como destinatário as seguintes iguras: o fotógrafo amigo (ou amante) de Buell Quain, o narrador-personagem e, ainda, o leitor. Trata-se de três possíveis des- tinatários para completar a “[...] outra parte da história” (Carvalho,

2002, p.122) do etnólogo, deixada como legado pelo engenheiro. Em Nove noites, a possibilidade de a moldura narrativa apresentar- se de forma truncada, com a presença de referências isoladas, como essa escrita por Manoel Perna, vai, outra vez, ao encontro do que diz Jenny (1979, p.27), teórico para o qual “a intertextualidade se insere perfeitamente num enquadramento narrativo tradicional e é, além disso, bem capaz de se adaptar sem qualquer alteração às alterações modernas do quadro narrativo, à sua des-construção.”

A intertextualidade com esse documento que conta com possí- veis destinatários dentro da moldura narrativa (o fotógrafo e o narra- dor-personagem) e fora dela (o leitor) atesta a presença da referência no romance Nove noites, de acordo com o que prevê Compagnon (2001, p.128), o qual se embasa na seguinte proposta de Northrop Frye: o reconhecimento (anagnôrisis) pode ser experimentado fora da intriga, ligando-se ao leitor, que refaz o “projeto inteligível da história.” É possível, portanto, entender que o leitor é capaz de traduzir a intriga da narrativa, reconhecendo as referências (pro- venientes da realidade ou da icção) que remetem a fatos e iguras do mundo real, e a intertextualidade com o testamento, nesse caso, contribui para provocar esse reconhecimento experimentado pelo leitor, constituindo-se, assim, um fator importante para se pensar as relações entre literatura e história, atualmente, pois o texto literário visa incorporar, em seu processo de construção, a história, sem pre- tender imitá-la.

A relação intertextual com a carta deixada pelo amigo de Quain corresponde, ainda, a um trabalho de metalinguagem, uma vez que se admite, no documento, a necessidade de um receptor (na moldura narrativa ou fora dela) que possa completar a história. Essa caracte- rística exempliica, no caso, a teoria de Chalhub (2002, p.14), que discorre sobre a possibilidade de a mensagem enfatizar o receptor (presença da função fática), num “comportamento metalinguísti- co”, por meio do qual “o narrador incorpora o receptor no desenho de sua mensagem.” Ao destacar, na mensagem, a importância da- quele “que tem a outra parte da história” (Carvalho, 2002, p.122), o testamento torna-se um referente intertextual que faz pensar, por

exemplo, na importância da participação do receptor na compreen- são do discurso iccional e, consequentemente, do discurso histórico ao qual este discurso iccional remete.

Portanto, o testamento inclui-se na construção narrativa e a apresentação dele em itálico remete, basicamente, ao tratamento intertextual denominado “linearização”, que de acordo com Jenny (1979, p.34), corresponde à inclusão de um texto em outro. O uso do itálico, segundo teoriza Jenny, indica uma “integração [que] se re- vela mais acabada” e que permite “assinalar a diferença do texto re- cuperado.” Assim como as cartas atribuídas a iguras históricas tra- tam, principalmente, de Buell Quain, a carta do engenheiro também diz respeito à trajetória do etnólogo norte-americano, acentuando o efeito de veridicção no texto literário, capaz de indicar a presença da história no romance. Entretanto, esse documento, escrito a um destinatário que chegaria com uma história baseada “em fatos que até

então terão lhe parecido incontestáveis” (Carvalho, 2002, p.7), corres-

ponde a uma referência em que os acontecimentos são relativizados e na qual a realidade segue, praticamente, a lógica da icção, confor- me se alerta, por exemplo, nesta passagem (já apresentada aqui, vale ressaltar): “Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não

têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui”; e também nesta: “[a] s histórias dependem antes de tudo da coniança de quem as ouve, e da capacidade de interpretá-las.” (Carvalho, 2002, p.7-8).

Assim sendo, a carta de Manoel Perna é uma referência que aponta para os fatos relacionados com o episódio do suicídio do et- nólogo norte-americano, sem, entretanto, conirmá-los, indicando que tais fatos podem ser contestáveis, conforme se observa a seguir:

Isto é para quando você vier. [...] Virá escorado em fatos que até então terão lhe parecido incontestáveis. Que o antropólogo ame- ricano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de 2 de agos- to de 1939, aos vinte e sete anos [...] Que se maltratou, a des- peito da súplica dos índios que o acompanhavam na sua última jornada de volta da aldeia para Carolina [...]. Que deixou cartas im- pressionantes mas que nada explicam [...] (Carvalho, 2002, p.7-8).

O fragmento acima, que trata, inclusive, de assuntos aos quais o narrador-personagem também se refere, com base na documenta- ção atribuída a iguras históricas, contempla os acontecimentos em torno de Buell Quain como prováveis, explicando, por exemplo, que “cartas impressionantes” deixadas por Quain, na realidade, “nada

explicam.” Nesse caso, a presença desse referente intertextual escri-

to pelo engenheiro exempliica a teoria de Jenny (1979, p.49), para quem “o uso intertextual dos discursos corresponde sempre a uma vocação crítica, lúdica e exploradora [...].”

A possibilidade de Buell Quain ser vítima de um com- portamento perturbado é apresentada no testamento, numa menção às “miragens” de Quain. Trata-se, nesse caso, da descrição do seguinte episódio relacionado com o etnólogo:

Na primeira noite, ele me falou de uma ilha no Pacíico, onde os índios são negros [...]. E até a noite em que me contou ainda não sabia o quanto havia do efeito da bebida no que viu.[...] Não sei o quanto conheceu dele, mas seria demais lhe dizer que o dr. Buell, meu amigo, bebeu co- migo e me contou que procurava entre os índios as leis que mostrariam ao mesmo tempo o quanto as nossas são descabidas e um mundo por im no qual ele coubesse? [...] (Carvalho, 2002, p.47-48).

A passagem acima trata da experiência de Buell Quain entre os povos primitivos do Pacíico, e a descrição dessa experiência está sujeita às distorções provocadas pelo efeito do álcool, segundo es- creve o engenheiro, ao declarar que “o dr. Buell, meu amigo, bebeu

comigo.” O narrador-personagem também fala sobre certas “mira-

gens” de Quain, com base, por exemplo, numa carta atribuída ao pesquisador norte- americano Willian Lipkind, na qual este solicita que dona Heloísa impeça Charles Wagley, outro pesquisador norte- americano, de “perseguir miragens como Buell.” (Carvalho, 2002, p. 36).

O uso desse recurso intertextual contribui para manter a rede de possibilidades que cerca a moldura narrativa, indo ao encontro do que diz Jenny (1979, p.46) sobre a capacidade de “[se] explorar a

carga virtual dum texto, acentuar simultaneamente os pontos-chave da sua estrutura e o caráter aberto dessa estrutura, a sua ininida- de potencial (J. Kristeva), que é também a ininidade dos contextos possíveis.” Portanto, o texto escrito pelo engenheiro é um referente com potencial para complicar certezas possivelmente estabelecidas no texto iccional de Bernardo Carvalho, quanto à trajetória do et- nólogo norte-americano. Isso ocorre, por exemplo, nesta passagem: “Você quer saber o que o dr. Buell fez na aldeia. É provável que nada.

E se houvesse alguma coisa, não seria dos índios que você iria arrancar uma resposta.” (Carvalho, 2002, p.110).

O documento aponta, como se nota, para a difícil tarefa de se conseguir qualquer resposta concreta sobre os acontecimentos re- lacionados com o etnólogo, tarefa esta da qual se incumbiu o narra- dor-personagem, que, em 2001, visita os índios krahô, no território amazônico, acompanhando um casal de antropólogos, a im de obter informações dos índios sobre o caso de Buell Quain. A intertextuali- dade com a carta de Manoel Perna corresponde, novamente, à teoria de Jenny (1979, p.45) e à airmação deste teórico de que “[a] inter- textualidade é, pois, máquina perturbadora. Trata-se de não deixar o sentido em sossego – de evitar o triunfo do ‘clichê’ por um trabalho de transformação.”

A ideia de que Quain era vigiado constantemente, no Brasil, também é apresentada no testamento, quando se informa o seguinte:

Às vezes, quando bebia, não dizia coisa com coisa. [...] Me contou que tinha vivido sob vigilância no Rio de Janeiro. Queria dizer que era vigia- do onde quer que estivesse. [...] Achava que existia uma rede de infor- mações no Brasil. Não era só a polícia no Rio ou os inspetores na selva que o assombravam. Dizia que todos os seus passos eram observados desde que havia pisado no Brasil. Nunca vi ninguém tão só. [...] Muitas vezes não entendi o que dizia, mas ainda assim compreendia o que esta- va querendo dizer. Eu imaginava (Carvalho, 2002, p.111).

A passagem acima permite inferir que o etnólogo tinha motivos para temer alguma coisa, alguém, ou, ainda, alguma ameaça. Entretanto,

o estado de embriaguez do etnólogo juntamente com a imaginação do engenheiro são fatores responsáveis por impedir o entendimento da situação possivelmente capaz de ameaçar Buell Quain e, nesse caso, a intertextualidade colabora para manter as lacunas de en- tendimento que perpassam a moldura narrativa relacionadas com a morte do etnólogo norte-americano, ilustrando, por exemplo, a airmação de Jenny (1979, p.47) de que é “precisamente, na escrita, [que] o acontecimento ica por situar, escapa- se; dele só temos ver- sões. Tudo o que podemos dizer, é que qualquer coisa se constitui através desse feixe de formas, que é a própria icção.”

Além de se constituir como um referente intertextual caracteri- zado, principalmente, por apontar as controvérsias em torno dos fa- tos relacionados com o caso Quain, o testamento implica, também, trabalho de metalinguagem do qual é possível inferir, por exemplo, as seguintes condições para o entendimento das narrativas iccionais: acreditar e interpretar. Trata-se, pois, de um trabalho de manipula- ção do código, o qual, de acordo com Chalhub (2002, p.39), consiste na “metalinguagem das formas poéticas”, implicando a capacidade de se “re- desenhar” a linguagem.

A intertextualidade com o testamento corresponde a trabalho de metalinguagem, por meio do qual se aponta para o próprio processo de fabricação do texto literário, conforme indica a seguinte passa- gem: “O que lhe conto é uma combinação do que ele me contou e do

que eu imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe contar ou escrever.” (Carvalho, 2002, p.134). A “receita” da his-

tória está, assim, apresentada: a “mistura” do que foi contado com o que foi imaginado, sugerindo que, no caso do romance Nove noites, a reconstituição da realidade depende tanto da “memória” e da “ima- ginação” quanto das referências supostamente reais, como admite, conforme já foi mostrado aqui, o próprio autor Bernardo Carvalho, nos agradecimentos que faz nas páginas inais do romance, expli- cando que se trata de um “livro de icção [...] uma combinação de memória e imaginação [...].” (Carvalho, 2002, p.169). Constata-se, dessa forma, aquilo que diz Samira Chalhub (2002, p.39) sobre o trabalho de se conigurar o código, na mensagem, resultando “numa

mensagem que indica sua própria estrutura, através das funções re- lacionais dos elementos que a compõem.”

O testamento, uma referência autônoma, revela-se como artefa- to iccional, indo, dessa forma, ao encontro de outra constatação de Jenny (1979, p.47), quando este crítico diz que “[a] verdade literá- ria, como a verdade histórica, só pode constituir-se na multiplicida- de dos textos e das escritas – na intertextualidade.” Em Nove noites, portanto, a carta escrita por Manoel Perna apresenta-se como uma referência intertextual sobre Buell Quain e corresponde, conforme interpretação deste estudo, a uma “armadilha” (Samoyault, 2008, p.105), pois sua origem, de acordo com a análise realizada aqui, re- mete à imaginação do narrador-personagem que por sua vez é uma invenção do autor Bernardo Carvalho. Também as cartas reapro- veitadas na moldura narrativa podem ter seu conteúdo inventado, integrando o que Compagnon (2007, p.55) denomina, conforme já mencionado anteriormente, de “texto trapaceiro”; esses documen- tos correspondem, no caso, a referências atribuídas a iguras, de fato, reais, iguras cuja existência não se submete à imaginação do narra- dor-personagem (nem tampouco do autor).

A intertextualidade com o testamento de Manoel Perna e com as cartas atribuídas a iguras históricas remete, dessa forma, à conside- ração de Samoyault (2008, p.20) sobre o dialogismo, noção que, de acordo com a crítica, não implica a anulação da voz do autor diante da voz dos personagens, mas signiica que o autor estabelece uma interação entre sua verdade e a verdade do outro. A utilização des- sas referências reforça, portanto, a “hibridez” da moldura narrati- va, a sua composição por meio de materiais diversos, permitindo, conforme também preconiza a teoria de Samoyault (2008, p.104), a justaposição de vozes e a interpenetração do discurso histórico e do discurso iccional, funcionando como um recurso que minimiza os limites entre realidade e icção.

Como é possível observar, a partir da análise de Nove noites, a utilização do recurso da intertextualidade com as cartas atribuídas a iguras históricas e com a carta-testamento escrita por Manoel Per- na assinala o efeito de veridicção que perpassa a moldura narrativa,

conirmando a presença da história nesse romance de Bernardo Car- valho, possibilitando, ainda, a discussão em torno do fazer literário, uma vez que o recurso da intertextualidade abre espaço também para relexões sobre o surgimento de um romance com base no ma- terial existente sobre a igura histórica de Buell Quain. Além dis- so, a narrativa comporta uma relexão quanto à possibilidade de o texto literário inventar também os elementos da realidade dos quais se apropria, criando, com isso, uma forma bastante experimental e inusitada de aproveitamento da referência, conforme poderá ser vis- to a seguir.