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Em torno do final trágico: um novo leque de Outono

7.3 Reflexão sobre alguns dos mecanismos de modernização em Hanjo

7.3.2 Em torno do final trágico: um novo leque de Outono

O desfecho de Hanjo deixa-nos mais questões do que propriamente respostas. A sensação que inicialmente transmite passa por um misto de choque, questionamento e vazio. Depois de enfrentar a perturbada Jitsuko, Yoshio fica finalmente olhos nos olhos com Hanako. Este era o momento mais esperado. Porém, essa expetativa acaba frustrada quando Hanako afirma que ele não é o verdadeiro Yoshio. Confuso, este ainda tenta

assegurar a sua identidade mostrando-lhe o leque dela, que manteve consigo durante todo aquele tempo, como símbolo da promessa que ambos fizeram, mas nem isso é capaz de demover a jovem geisha. Defraudado, acaba por sair porta fora, enquanto Hanako permanece esperando pelo seu “verdadeiro Yoshio”.

Trata-se de um tipo de final que não é facilmente racionalizado ou compreensível quando visto pela primeira vez. No final do espetáculo que encenei, deparei-me com um público indignado, que procurava uma explicação plausível para o que tinha acontecido entre Yoshio e Hanako. Inclusivamente houve quem achasse que a peça tinha um seguimento, ou que tinha sofrido cortes. A questão principal era: por que é que ela não reconhece Yoshio? Fiz a mesma pergunta a mim próprio várias vezes quando li a peça pela primeira vez. Não satisfeito com a minha ideia inicial de que ela não o reconhecia, procurei por outras opiniões. Alguns achavam que Hanako não o reconhecia, enquanto outros, tal como o encenador Paulo Lage, defendiam que, apesar de o negar por estar louca, ela o reconhecia.

Depois de ter escutado estas opiniões e de ter refletido bastante sobre as duas cenas finais (IV e V), vislumbrei a bela crueldade subliminar com que Mishima espalha o caos final, acabando por fornecer uma leitura altamente radical e oposta à de Zeami, que, como já se disse, preza a união dos dois amantes separados, eliminando o sofrimento de Hanako e de Yoshida. O que a modernização mishimiana procura fazer é o oposto. Ela faz emergir a obscuridade da história: em vez de retirar Hanako do sofrimento, estende-o a Yoshio. A amplitude da tragédia é expandida, para que os dois amantes não fiquem ligados pela luz da felicidade, mas, sim, pela beleza da dor (um empréstimo, por exemplo, do que acontece com o general Takeyama e a sua mulher no conto Patriotismo). Mas o que é que existe de belo na dor? Segundo a filosofia de Mishima, o Belo parece encontrar-se no propósito da dor infligida e no que nele existe de transcendente. A dor que se gera entre Yoshio e Hanako começa por ser bela na medida em que nasce de uma paixão, mas só atinge a plenitude da sua beleza quando Yoshio “morre” na dimensão real e passa a “viver” eternamente no universo de beleza imaginária da mente insana de Hanako: “Você não é o Yoshio. O seu rosto está morto.” (MISHIMA,1955:19) – ou seja, ele está morto porque transcendeu a realidade, passando a ser eternamente belo, eternamente jovem, e adquirindo uma existência incomparável a qualquer outra. Para que a verdadeira união de ambos se consumasse, não bastaria Yoshio viver ao lado de Hanako. Era preciso que ele vivesse dentro dela através da perfeição do idealismo. E quanto mais tempo ele passa sem

aparecer, mais a saudade e o desejo o tornam formoso e sem defeitos. Hanako nem calcula o que isto lhe custa na realidade, mas será que ela paga de facto um preço elevado? A única forma de o saber é questionando a autenticidade deste Yoshio. Talvez este homem seja um charlatão à procura de fama, tal como Jitsuko sugere, e se assim o é, então Hanako nada perdeu ou ganhou. De facto, quando Yoshio surge no atelier, Jitsuko faz observações pertinentes, colocando a hipótese deste ser um impostor, que ao ter lido a notícia do jornal, comprara um leque com damas da noite em alguma loja e correra em busca da fama. Porém, apesar da legitimidade destas observações, é necessário percebermos que tudo se trata de uma manobra para proteger o seu “tesouro”. O medo que a domina faz com que Jitsuko tente afastar Yoshio pela via da descredibilização. Assim sendo, é-se obrigado a mergulhar mais fundo no texto em busca de outros pormenores.

Assim, a parte do texto que se revela de grande valia para a sua interpretação é a reação de Yoshio aos ataques de descredibilização de Jitsuko. Quando a pintora o acusa de ser um “herói de uma história de amor” em busca de fama, que abandonou uma rapariga durante três anos, Yoshio responde-lhe:

“Mas há um ano atrás fiquei finalmente livre e fui até àquela cidade. Ela já lá não estava. As pessoas disseram que depois de ter ficado louca e de nunca mais ter conseguido atuar como geisha, o seu contrato fora comprado por uma pintora que a levou para Tóquio. Foi tudo o que consegui descobrir. (MISHIMA, 1955:13)

Além disso, se levarmos em conta a notícia do jornal, lida por Jitsuko no início da peça (que parece instaurar-se como género narrativo que impulsiona o desenrolar da ação dramática), percebe-se que Yoshio adiciona informações pertinentes que não se encontravam nela. Mas como comprovar a sua veracidade? Seria legítimo dizer-se que qualquer bom impostor faria uso da sua astuta imaginação para apresentar um relato convincente que conquistasse as atenções de Jitsuko. Mas se se analisar a reação da pintora a este depoimento, é possível ler nas suas entrelinhas que, ao ouvir Yoshio, ela percebe quem ele é. Tudo o que ela diz a seguir vem subscrever as palavras dele: a compra do contrato (que não estava referido na notícia), o facto de Hanako ter enlouquecido e não ter conseguido atuar mais para os clientes (também não descrito na notícia) e, por fim, a relação que existe em termos da data em que cada um esteve naquela cidade. Mesmo antes de Jitsuko lhe dizer que se dirigiu àquela cidade há um ano e meio, Yoshio atesta que lá esteve há um ano, o que, quando analisado, evidencia um espaço-tempo

compatível, que comprova que só depois de a pintora lá ter estado é que ele se dirigiu para lá. Por isso é que já não encontrou Hanako quando lá chegou.

No momento em que os amantes se reencontram, Mishima coloca na boca de Hanako algumas palavas frustrantes para a compreensão e as expetativas do leitor/espetador (e que só se impõem e avassalam o espetador na exata medida em que o homem que vê é justamente o “verdadeiro” Yoshio). Depois de o negar, Hanako profere: “Você é muito parecido com ele. A sua cara é exatamente igual à que vejo em sonhos. Mas mesmo assim é diferente.” (MISHIMA,1955:19). Isto demonstra que Hanako lhe reconhece plenamente as feições e que aparentemente não haveria qualquer motivo para o negar, mas a loucura que a toma, o sabor inigualável e irresistível dessa beleza imaginária, não a deixa reconhecer o âmago de Yoshio e regressar à realidade. Citando Michel Foucault:

“Amor dececionado em seu excesso, sobretudo o amor enganado pela fatalidade da morte, não tem outra saída a não ser a demência. Enquanto tinha um objeto, o amor louco era mais amor que loucura; abandonado a si mesmo, persegue a si próprio no vazio do delírio. Punição de uma paixão demasiadamente entregue à sua violência? Sem dúvida. Mas esta punição é também um apaziguamento; ela espalha, sobre a irreparável ausência, a piedade das presenças imaginárias.” (FOUCAULT, 1961:44).

Afinal, quem representa o “leque de Outono”, nesta peça de Mishima? De facto, Hanako é que foi abandonada durante três anos, mas, vendo bem, quem termina abandonado neste anoitecer de Outono é Yoshio. Aqui, é ele quem mais figura Ban Jieyu – um leque posto de lado no Outono. Esta é uma das modernizações mais radicais que Mishima faz da peça de Zeami, onde Yoshida é facilmente reconhecido por Hanako. A intensidade trágica deste desfecho jamais poderia ser consumada se este Yoshio não fosse o “verdadeiro”. E a este cataclismo final assiste a silenciosa Jitsuko, a única que não conhece o sabor amargo deste caos: bem pelo contrário, sai a ganhar com ele. Todavia, esta vitória não é obra da sua própria força (que nem chega a conseguir deter Yoshio), mas, sim, da indomável loucura da jovem geisha. A Jitsuko bastou-lhe assistir para sair vitoriosa. Apenas precisou deixar Hanako alimentar a sua loucura durante todo este tempo para mais tarde ser salva por ela e ver a sua vida recomposta: “Oh, que vida maravilhosa!” (MISHIMA,1955:21).

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