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Personagens e seu discurso: ondas que batem em rochas

7.3 Reflexão sobre alguns dos mecanismos de modernização em Hanjo

7.3.3 Personagens e seu discurso: ondas que batem em rochas

De todo o Nō Moderno de Mishima, Hanjo é a peça com menor número de personagens. Uma pintora, uma geisha e um jovem enamorado bastam para que o drama revele a profunda agitação de uma “tempestade” passageira que não provoca danos materiais, mas sim psicológicos. Apenas num único anoitecer, vidas mudam para sempre. Nos pontos anteriores, tivemos a oportunidade de referir alguns aspetos primordiais da essência destas personagens. Convém retomá-los, para indagar a sua essência. O que são elas? Em que sentido diferem das de Zeami? De um ponto de vista técnico-literário, como é que funcionam?

Quando se pensa numa personagem mishimiana não se pode esperar que ela se enquadre em parâmetros convencionais ou simplistas, muito menos nos parâmetros das personagens do Nō. Zeami e Mishima apostaram na complexidade das personagens por vias diferentes. Zeami preocupou-se, sobretudo, com a escultura refinada do discurso (poesia, ritmo e musicalidade) e não tanto com a densidade psicológica da personagem. Isso justifica-se pela vocação do Nō: um género teatral que lida fundamentalmente com a beleza da expressividade (toda ela musicalizada e coreografada). Já Mishima procurou e experimentou, pela via da obscuridade, o caos psicológico e a complexidade das relações inter-humanas. Hanako, Yoshio (que em Zeami é um capitão e aqui um homem de negócios) e Jitsuko (que nem existe na versão original47), ainda que com tonalidades poéticas no seu discurso, vivem no plano real e longe do panorama feliz e religioso da peça de Zeami. Em vez de serem a luz umas das outras, tal como acontece com Hanako e Yoshida, são antes uma ameaça entre si: Jitsuko receia que Hanako desapareça e teme ainda Yoshio. Hanako teme que Jitsuko a leve em viagem, privando-a, assim, da sua habitual espera na estação. E Yoshio teme a reação de Hanako ao vê-lo.

Esta teia de temores vem desencadear conflitos: Hanako contra Jitsuko (em torno dos temas da espera/procura e permanência/viagem); Jitsuko contra Yoshio (preservação/mudança – em relação ao estado de Hanako); Yoshio contra Hanako (realidade/ ilusão (loucura)). As personagens funcionam como negação umas das outras (Jitsuko nega a sanidade de Hanako, que por sua vez nega Yoshio, o qual por sua vez

47 A não ser que ocupe o lugar da Dona da estalagem ou do Servo de Yoshida, que assiste à troca dos leques,

tal como Jitsuko faz, perto do final da peça. A grande diferença é que o Servo contribui para o reencontro de ambos e Jitsuko não.

nega os desígnios negros de Jitsuko, etc.) e, convictas dos seus princípios e motivações (ainda que negras, loucas ou lúcidas), procuram-nas fazer valer perante o outro. Para tal, põem em prática a arte da dialética. As palavras, notoriamente provenientes da profundeza insondável do íntimo, conseguem emergir da maneira mais poética e sensual quando elogiam (como Jitsuko faz com Hanako), mas, quando atacam, são facas que rasgam e assolam o outro (ex: troca argumentativa entre Yoshio e Jitsuko). O poder é disputado pelo peso das palavras, que são revestidas de um forte sentimento de convicção. Tal como observou o ator Elmano Sancho: “as palavras assumem uma característica diferente: cada uma é utilizada para exercer poder sobre o outro, para testar o outro.”. É precisamente essa ideia de “teste” que sintetiza bastante o método utilizado por Mishima na construção do discurso das suas personagens, e que logo o distingue de Zeami. Zeami utiliza um discurso profundamente lírico e mais individual, na medida em que se foca na estética da exposição da condição do “eu”. As personagens dirigem-se maioritariamente ao público e interagem pouco entre elas, o que explica que encontremos tão poucos diálogos. No início da peça de Zeami, a dona da estalagem, após uma vasta exposição da sua condição dirigida ao público, repreende e expulsa Hanako do estabelecimento, mas a geisha nem lhe responde. A fala de Hanako que encontramos a seguir é totalmente independente da fala anterior da Dona. Mesmo a troca de palavras entre Hanako e o Coro não pode ser interpretada como diálogo, pois o Coro (como já foi referido anteriormente) não tem identidade e fala pelas personagens. Aliás, todas as conversas entre Yoshio e os seus servos ou entre Hanako e o servo de Yoshio são também breves. Nem sequer a cena final da troca dos leques se abre a grandes dialogismos. Zeami aposta mais na ideia de solilóquio, muito característica de peças de teatro arcaicas: “A técnica do solilóquio revela ao espetador a alma ou o inconsciente da personagem: daí sua dimensão épica e lírica (…) ” (PAVICE,1996:366-367).

Já Mishima procura um discurso argumentativo e contra argumentativo, muito próprio do teatro naturalista, e utilizando uma linguagem quotidiana. À exceção do longo monólogo inicial de Jitsuko, a peça é marcada pelo dialogismo que, tal como Elmano Sancho refere, vive de testar o outro, numa tentativa de o dominar e destruir as suas motivações. Todas estas personagens se comportam como ondas batendo em rochas, ao ponto de nenhuma delas terminar prescindindo das suas convicções. Até Yoshio, depois de ver a sua motivação destruída, não desiste de soltar uma última súplica antes de sair: “Hanako!” (MISHIMA,1955:20). Mas nada se alterou. Existe, portanto, em Hanjo, aquilo

a que chamaria de personagens-rocha, pela impermeabilidade das suas convicções quando são confrontadas pelo outro (a onda). Mishima parece enfatizar este aspeto através do uso técnico de bastantes esticomitias48, especialmente na cena do confronto entre Yoshio e Jitsuko, onde se tenta conquistar o terreno não pelos movimentos, mas pela força argumentativa:

“JITSUKO Se ela se for embora e me abandonar… YOSHIO Eu vou fazer com que ela a abandone… JITSUKO Eu morro.

YOSHIO Não me parece que a sua morte vá fazer a Hanako infeliz. Agora, se eu morresse…

JITSUKO Você acha que a Hanako seria atingida pela dor? Não – Isso seria a melhor coisa que você poderia fazer. Morra, por favor. Isso dará àquela criança uma razão para continuar a viver.

YOSHIO O que dará a si uma razão para continuar a viver. Não, obrigado.” (MISHIMA,1955:17)

Atendendo ao facto de Mishima se ter licenciado em Direito, não será de todo descabido sugerir-se que a argumentação entre Yoshio e Jitsuko capta, possivelmente, influências do princípio do contraditório49. Em termos metafóricos, podemos imaginar Yoshio como o “autor” (ou titular) – que vem reclamar o que é seu - e Jitsuko como o réu. Estes disputam pela tutela de um único objeto: Hanako (é curioso pensar-se nela como um objeto, sobretudo quando é ela própria que se perceciona como uma boneca). Neste caso, o “juiz” é, curiosamente, o próprio objeto disputado. Quem sai vitoriosa, como bem sabemos, é Jitsuko. Não por deter o poder legal sobre objeto (o contrato da geisha), mas porque o juiz exerce a sua decisão alienado das leis da realidade, qual Justiça cega pela loucura, sem balança (discernimento) e empunhando um leque (a espada) como

48A eficácia rítmica das esticomitias foi particularmente explicada por Patrice Pavis: “Todo o diálogo faz

alternar um eu e um tu (…). Os dialogantes são ligados por um tema comum e por uma situação de enunciação que diz respeito a ambos e ameaça a todo momento influir no tema. (…) A esticomitia é o momento verdadeiramente dramático da peça, porque tudo parece que, de repente, pode ser dito, e o suspense do espetador (assim como de cada dialogante) cresce com a vivacidade da troca.” (PAVICE,1996:146-147).

49 Trata-se do princípio que assegura o direito de se ouvir todas as partes envolvidas num litígio, não se

símbolo do poder de decisão. Isto significa que, independentemente da força dos argumentos trocados, Yoshio e Jitsuko nada contribuem para a decisão final da geisha. As suas argumentações não são, portanto, meros ataques ou contra-ataques que vençam pelo seu valor inteligível ou astuto. Elas embelezam e singularizam o texto pela poeticidade que as envolve, tornando os argumentos mais apelativos e atribuindo-lhes uma maior profundidade, como se verá no ponto seguinte. Por outro lado, a desvalorização dos argumentos de Yoshio e de Jitsuko na decisão de Hanako adensa o tema da loucura e constrói a ideia do inesperado e incompreensível motus das ações de personagens.

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