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A utopia poética do amor: uma poeticidade que advoga o sinistro

Em Senhorita Aoi de Mishima, a poeticidade não reside apenas no discurso das personagens, mas também no meio em que se movem. A beleza poética desse meio é fruto de um complemento entre a poeticidade das personagens (discurso e ação) e as sugestões cénicas de Mishima, que guardam determinadas alegorias, que constituem um

mecanismo de redundância muito próprio do poético. Exemplifique-se: o acontecimento principal da peça de Zeami é a doença de Aoi. Repare-se, então, como Mishima situa a ação da sua peça num hospital moderno, como se tal fosse um mecanismo de criação alegórica desse tópico circunstancial em Zeami. Pode ainda referir-se o carro prateado em que Rokujō chega ao hospital, que parece aludir à carroça em que ela entra em cena na peça original. Apesar do carro prateado se contrapor à carroça destruída, é como se isso simbolizasse não só a opulência (por ela pertencer à alta burguesia), mas também uma dignidade recuperada. E não esqueçamos o telefone presente em cena, que soa como se anunciasse a chegada do ikiryō, talvez numa alusão ao arco de azusa-yumi tocado pela Feiticeira, que também atrai o fantasma pelo seu som. Estas manobras subtis de modernização colocam o trabalho de Mishima próximo da essência da peça original, se bem que de maneira muito própria.

Quanto às personagens, elas complementam esse universo de alegorias poéticas com a poeticidade do seu discurso. Ela irradia quando uma personagem expressa o que vai no seu íntimo, pois utiliza-a para dar um peso emocional às suas palavras e para vincar a sua posição. No ponto 3.2. transcrevi a descrição que a enfermeira, ao olhar a noite, faz das relações sexuais (associando-as a um campo de batalha noturno e mortífero) o que é um bom exemplo do poder imagético do seu discurso e de como esse poder descritivo constrói a realidade em que habita. Complementarei a questão com um outro exemplo: Rokujō. Uma análise desta personagem faz-nos tocar no coração enegrecido desta peça. De entre todas as personagens, ela é a maior portadora de poesia, pela qual transporta a sua sinistralidade e os seus ciúmes. Mas detenhamo-nos primeiro em Zeami, para percebermos a modernização dessa poeticidade em Mishima.

Para começar, as falas de Rokujō em Zeami são de natureza lírica, estando, muitas delas em verso (para serem cantadas), facto que em Mishima não ocorre, pois ele não trabalha sequer a ideia de verso, nem o canto, mas sim a poeticidade aplicada ao discurso. Em Zeami, portanto, recorrendo a ensinamentos e alegorias budistas, Rokujō expressa a sua condição através de figuras de estilo como anáforas, comparações e parábolas:

“A vida é instável como uma roda,

A vida é agonizante como uma roda,

“Apesar de olhar para a lua toda a noite,

“Se viajar nas três carruagens providenciadas pela misericórdia de Buda e se seguir o caminho de Buda, serei

A roda do karma continua girando.”

(MOTOKIYO:5)

Ela é incapaz de ver a minha aparência, uma vez que me assemelho a uma sombra.” (MOTOKIYO:6)

eu capaz de escapar da Casa em Chamas?

(MOTOKIYO:5)

O seu discurso é atravessado, como em várias personagens Nō, por tiradas de poemas provenientes de outras obras, como: “Hoje, a minha frágil vida assemelha-se a uma glória- da-manhã que murcha com o nascer do Sol” (MOTOKIYO:8) – citado de um poema que consta no Horikawa Hyakushu (100 Poemas de Horikawa em tópicos específicos). Além de poemas, há ainda, por exemplo, uma fala que alude a um sutra budista chamado Vimalakirti-nirdela: “Frágil como uma folha de bananeira, instável como uma bolha na água, assim é a vida humana.”. (MOTOKIYO:6) Estes cruzamentos intertextuais não só adensavam a poética textual (importante para o ritmo e sonoridade do canto), como também exaltavam a qualidade culta do texto dramático (muito apreciada pela corte). Há ainda uma outra característica importante que encontramos recorrentemente nas suas primeiras falas, nomeadamente um jogo de palavras criadas por Zeami que estão relacionadas com “carroça”, reforçando o constrangimento de Rokujō com a humilhação sofrida ao terem-lhe destruído aquela em que viajava: “A vida é instável como uma roda (…) A roda do karma continua girando. A minha angústia gira e gira (…) A reencarnação é como uma roda.” (MOTOKIYO:5).

Apesar desta curta exemplificação, é possível concluir-se que a personagem usa a poesia como meio de transmissão emocional do seu sofrimento e ira, mas também com finalidades moralistas, no âmbito dos ensinamentos budistas. Em termos de composição estética, a poeticidade do discurso da personagem intercruzada com passagens de outros poemas ou sutras é para Zeami de uma importância crucial para o refinamento do texto. Já Mishima procura o refinamento por outra via e não utiliza qualquer tipo de intertextualidade, muito menos transmite ensinamentos religiosos. A poeticidade é mais suave e não assenta num japonês arcaico ou demasiado complicado, mas sim num japonês moderno e do quotidiano. A linguagem de Rokujō é um perfeito exemplo disso, e para o demonstrar nada melhor do que voltar a aludir às tensões dialógicas que encontramos entre ela e Hikaru, pois é nessa troca argumentativa que se nota como a poesia é utilizada para que as palavras penetrem o íntimo do recetor com impacto.

ROKUJO Pergunto-me por que é que neste mundo tem de haver um lado direito e um lado esquerdo para tudo. Neste momento estou ao seu lado direito. Isso significa que o seu coração está longe de mim. Mas se eu estiver ao seu lado esquerdo, quer dizer que não vou conseguir ver o seu perfil direito. HIKARU A única coisa que eu poderia fazer seria transformar-me em gás e evaporar-

me. (MISHIMA,1954:20)

Este excerto demonstra como esta Rokujō, ao contrário da de Zeami, não investe na poeticidade discursiva para expressar o seu estado de sofrimento ou a vontade de libertação do mesmo, mas para traduzir a sua obsessiva paixão por Hikaru. Com isto, ela pretende tocar no âmago de Hikaru e reconquistar as suas atenções. Este, por sua vez, também lhe responde de uma maneira original que exige, talvez um outro nível de leitura. Ao sugerir a sua transformação em gás, ele não verbaliza apenas uma solução para que Rokujō o possa percecionar de todos os lados, mas, sobretudo, imagina uma saída para si mesmo. Sendo o gás intocável e volátil, Rokujō não lhe poderia mais tocar. Assim, esta resposta poeticamente comparativa revela como Hikaru se pretende livrar, simultaneamente dela e de si mesmo, do seu próprio corpo que o acorrentou ao seu passado amoroso com outra mulher.

Rokujō demarca-se em cena também pela intensidade simbólica dos seus gestos. Repare-se na didascália “(Hikaru pega num cigarro para lhe dar, mas Yasuko retira de repente o cigarro já um tanto fumado da boca de Hikaru e fuma-o.)” (MISHIMA,1954:16), onde no silêncio do gesto passam mil palavras de desejo e sedução. Recorde-se, ainda, o episódio em que Rokujō arranja um bouquet de flores junto à almofada de Aoi. O que nos faz acreditar na existência desse bouquet não é só o gesto convencional dela lhe ajeitar as flores, mas principalmente as imagens, as polaridades, as antíteses e o recurso à convocação dos vários sentidos (olfato, tato e visão), presentes no discurso que acompanha o gesto:

Estes rebentos que estou a arranjar perto da almofada dela irão florescer com a cor da cinza. Debaixo das folhas crescem vários espinhos medonhos. E das flores brota um cheiro desagradável. Um cheiro que se propagará pelo quarto. Olhe, a partir de agora a paz começa a desvanecer-se do rosto dela, as bochechas tremem e vão-se enchendo de medo. (MISHIMA,1954:11).

Esta sinistralidade é reforçada pela beleza linguística, que não só nos faz acreditar na convenção gestual, como ainda nos permite visualizar o que não é visível. Tal facto recorda-nos o mesmo efeito criado pelos atores no teatro Nō: cenários verbalizados. Estes dois dramaturgos aplicam distintamente a poeticidade nesta personagem, sendo, apesar de tudo, capazes de tocarem um no outro. Mas se Mishima trabalha de forma tão distinta a sua poeticidade, como é ele capaz de se aproximar da essência da Rokujō de Zeami?

Ainda que se expresse por uma outra via, Mishima captou muito bem a raiz da poeticidade de Rokujō: ainda antes do sofrimento, do ciúme, do desejo, ou da vingança, existe uma sensação de incompletude que despoleta tudo isso. O facto de Rokujō não ter Genji (ou Hikaru) a seu lado faz com que o seu amor cresça cada vez mais e desperte os demais sentimentos. Mishima compreendeu que a única forma de Rokujō preservar a sua poeticidade era mantendo a sua incompletude, a sua não correspondência, pois o seu anseio por Hikaru é que a faz agir e falar poeticamente.

Neste aspeto, evidencia-se uma herança da estética japonesa: o poder da sugestão. Tudo ganha mais beleza quando incompleto, pois estimula a imaginação e o desejo. Yoshida Kenkō (c.1283-c.1350), notável escritor japonês que se tornou num monge budista, afirmou que “deixar algo incompleto torna-o interessante, e desperta uma sensação de que há espaço para um crescimento.” (apud KEENE:1988). Refira-se ainda que os japoneses apreciam mais uma lua em quarto crescente ou uma cerejeira por florir do que uma lua cheia ou uma cerejeira em flor, pois essa sensação de completude bloqueia o jogo da imaginação, do desejo e da expectativa, e estes são os ingredientes inerentes para tecer uma deleitante poeticidade. Ao pensarmos neste poder esteticamente japonês da sugestão, começamos a perceber por que é que Mishima constrói finais onde deixa tanto por explicar, como é o caso de Senhorita Aoi ou Hanjo. Mas aí reside o desafio de interpretação que Mishima lança ao seu leitor/espetador.

7. Mecanismos de modernização em Hanjo

7.1 Introdução

Publicada em 1955, Hanjo (斑女) foi a quinta peça de Nō Moderno escrita por Mishima e é uma adaptação moderna de uma peça Nō com o mesmo título datada do séc. XV e da autoria de Zeami Motokiyo. O interesse de Mishima em reescrevê-la surgiu em 1952, ao assistir à inspiradora performance do ator Umewaka Minoru (1828-1909) na peça original. Diferentemente do que aconteceu com outras peças suas de Nō Moderno, o processo de escrita de Hanjo foi bem mais lento e Mishima recorreu a vários profissionais de Nō para pedir conselhos. Foi uma das peças que mais fama lhe trouxe e a que mais vezes foi levada à cena dentro e fora do Japão. No que diz respeito à peça original, esta ocupa um lugar particular dentro do repertório dramático Nō. Pertencente à 4ª categoria (peças de temas variados) e situada na subcategoria kyōran mono

(

狂乱物- peças sobre loucura), ela difere de outras histórias do seu género, pois a poeticidade que suporta o sofrimento da protagonista concede uma densidade inédita à peça. Simultaneamente a esta qualidade, o próprio desfecho da história não é muito comum. A paixão conduz a personagem principal a um imenso sofrimento ao longo da ação, que a mantém firme na sua espera. No final, Hanako vê realizado o seu desejo de reencontrar o amado, por intervenção das divindades. Atendendo à ideologia budista que enforma este género de repertório, tal desfecho revela-se insólito, pois todas as personagens que se apegam a um sentimento terreno, como a paixão, terminam normalmente sofrendo. Hanjo parece escapar a essa regra, conquistando as divindades com a demonstração de resistência da protagonista a todo o seu pathos. Para facilitar a compreensão do estudo que se segue, decidi traduzir as peças de Zeami e de Mishima diretamente do japonês, para possibilitar o acesso ao texto global e à análise efetuada. As traduções encontram-se nos anexos VIII e IX.

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