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Capítulo 3 – Prática Letiva

3.3. Apresentação e interpretação dos resultados

3.3.2. Descrição e análise de erros por categoria

3.3.2.6. Emprego de palavras semanticamente incompatíveis num mesmo sintagma ou em

A categoria E6, cujos erros estão frequentemente ligados à ocorrência de imprecisões lexicais, inclui, mais precisamente, os casos de incompatibilidade semântica entre vocábulos pertencentes ao mesmo sintagma ou a unidades complexas fixas, que perfazem 11% dos erros contabilizados.

Como se sabe, os significados lexicais podem combinar-se de forma a obtermos um número infinito de significados, pelo que este ponto tratará questões de combinatória, entrando no domínio da semântica composicional. Interessa, portanto, recuperar o princípio de composicionalidade, definido por Fátima Oliveira (2005: 334), segundo o qual “o significado de

uma expressão complexa é determinado pelo significado dos seus constituintes e pela forma como se combinam.” Importa também destacar “que, no nosso léxico mental, não existe uma divisão estrita entre léxico e construções, e que estas relacionam o plano semântico com o plano sintático.” (Leiria, 2001: 258)

O tipo de inadequação em análise advém, portanto, de uma combinação incorreta e do desconhecimento das especificidades semânticas dos itens lexicais em causa, como explica Helênio Fonseca de Oliveira no artigo já citado anteriormente (cf. s/d: 58). Nos quatro exemplos abaixo, verifica-se que o verbo escolhido é incompatível com o complemento que se lhe segue, não se respeitando as suas propriedades de seleção. Estes erros ocorrem devido à falha na escolha das formas verbais, que não é suficientemente precisa nem se adequa à ideia que se pretende transmitir. Consequentemente, os sintagmas sublinhados integram as categorias E5 e E6.

(34) G6_T1_Vu: [...] acabei por abandonar o futuro que esperava para mim e agarrar

o destino que os meus pais queriam que eu seguisse, que era *descender o meu avô no mundo da tradução.

Comentário: “descender” é um verbo de dois lugares (transitivo indireto), que seleciona obrigatoriamente um grupo nominal com forma de sujeito e um grupo preposicional com forma de complemento oblíquo. No entanto, o aluno substituiu o complemento oblíquo por um grupo nominal, originando um erro sintático. Esta

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incorreção deve-se à imprecisão na escolha do verbo. A ideia de continuidade geracional está presente na forma “descender”, mas o correto seria ler-se “seguir (as pisadas) (d)o meu avô no mundo da tradução”. Há incorreção porque o verbo “descender” remete para a origem e não para a ideia de acompanhar ou dar sequência a algo.

(35) G11_T1_Vu: [...] foi-me proposto organizar um portefólio, onde *registarei

trabalhos [...].

Comentário: Esta passagem está igualmente marcada por uma má escolha verbal que, por sua vez, gera uma incompatibilidade semântica com o complemento que se lhe segue. O verbo “registar” (transitivo direto e indireto) é sinónimo de “inscrever”, “declarar por escrito”, “tomar nota de”, logo, o complemento direto “trabalhos” não é compatível com estes traços semânticos. O aluno deveria optar por outro verbo, adequado à ideia de organização de um portefólio (como por exemplo: “onde arquivarei trabalhos”) ou integrar elementos que remetessem para a ideia de transcrição como complemento direto (“onde registarei pensamentos, opiniões, experiências e informações sobre os conteúdos lecionados”).

(36) LH36_T2_V1: [...] herdamos a sua cultura, nomeadamente a arquitetura que

ainda a *verificamos, por exemplo no telhado, na construção [...].

Comentário: Neste trecho, o aluno pretende demonstrar a presença da cultura romana na atualidade, nomeadamente na arquitetura dos edifícios. A ideia de comprovar/confirmar a veracidade de um facto faz parte das aceções do verbo “verificar”; no entanto, o sintagma “verificar a arquitetura” é uma construção pouco usual, gera estranhamento e, consequentemente, um baixo grau de aceitabilidade. Neste caso, o problema pode ser semântico ou sintático: em termos semânticos, o verbo “verificar” está associado a uma modalidade epistémica, ou seja, o seu significado implica uma noção relacionada com conhecimento ou crença, porém, o aluno parece ter usado um verbo epistémico como se fosse um verbo perceptivo, ligado às percepções sensoriais e, por isso, compatível com o

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complemento “arquitetura”: “herdamos a sua cultura, nomeadamente a arquitetura, que ainda podemos observar...”. Ao nível sintático, uma outra hipótese de correção seria: “herdamos a sua cultura, nomeadamente a arquitetura, cuja presença podemos verificar...”. Como se pode constatar, o aluno não foi capaz de construir a relativa e associar o verbo “verificar” ao nome “presença”.

Nas transcrições seguintes, apenas se verificaram ocorrências pertencentes à categoria E6:

(37) LH31_T1_V1: Eneias [...] é encarregado pelos deuses de salvar a sua civilização

*noutro lugar.

(38) LH37_T1_Vu: Rómulo organizou jogos *em nome de Neptuno [...].

(39) LH35_T2_Vu: [...] normalmente *fazemos uma sesta, depois uma ginástica [...],

um passeio e depois um banho.

Em (30) “salvar” é incompatível com o grupo preposicional “noutro lugar”, pois a sua realização não é possível tendo em conta a estrutura argumental do verbo. Trata-se de um verbo de dois lugares que, portanto, seleciona apenas um grupo nominal com forma de sujeito e um grupo nominal com forma de complemento direto. Assim, por forma a eliminar a incorreção sintática e semântica, o grupo preposicional deveria ser eliminado.

No exemplo (31), verifica-se a confusão entre o significado de duas expressões fixas do português: “em nome de” e “em honra de”. A primeira expressão refere-se à situação de alguém representar uma entidade, o que não se coaduna com a ideia que se pretende transmitir: Rómulo organizou jogos para louvar Neptuno, portanto, em sua honra.

Por fim, no último exemplo, a incompatibilidade é gerada pela enumeração. O aluno associa quatro nomes por coordenação, colocando-os indevidamente sob a regência do mesmo verbo. Os nomes “sesta” e “ginástica” são semanticamente compatíveis com o verbo “fazer”, podendo ser selecionados como seus complementos. O mesmo não se pode dizer das palavras

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“passeio” e “banho”, daí que a sequência seja inaceitável. As combinações mais corretas e frequentes utilizam os verbos “dar” e “tomar”, respetivamente “dar um passeio” e “tomar um banho”. O verbo “fazer” tem um índice de frequência lexical muito elevado, o que pode contribuir para o seu uso desviante relativamente aos padrões da língua. Embora no âmbito dos estudos do Português Europeu língua não materna, Isabel Leiria (2001: 274-275) adianta que:

[...] muitos desvios acontecem por generalização de certos verbos frequentes a usos menos prototípicos para os quais a língua alvo deu preferência a outros. É o caso de certos predicados complexos, tais como fazer um carimbo por pôr um carimbo, fazer uma loja por abrir uma loja [...]. Eles ilustram a dificuldade de traçar fronteiras entre verbos de elevada frequência, graças exatamente às suas ocorrências mais ou menos dessemantizadas, como dar, fazer, pôr e ter. Em qualquer dos casos, a sua extensão a valores menos prototípicos é comum a várias línguas, no entanto, mesmo em línguas relativamente próximas, eles não são fiáveis para o aprendente (veja-se, por exemplo, dar atenção, faire attention e pay attention).

Tendo em conta o que foi dito sobre os erros E5 e E6, é legítimo concluir que grande parte dos alunos não domina as relações gramaticais que se estabelecem entre as palavras (ignorando, por exemplo, a natureza sintática e semântica dos elementos com os quais determinados verbos podem ocorrer), desconhece os diferentes traços semânticos de cada palavra, bem como a sua referência, e não domina a modalidade escrita da língua, fazendo uso de registos inadequados.