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VI: Capítulo Final Imagens Polissêmicas do Museu-Escola:

VI.1: Meu encontro com o Museu-Escola:

Na graduação eu havia sido preparada para trabalhar com a metodologia da investigação no Ensino de História, levando o aluno a “construir” conhecimento. Mas não era uma construção conjunta. Na verdade, o que fazíamos era transpor o conteúdo, de uma forma mais acessível e sedutora. No planejamento, já deveríamos prever os possíveis questionamentos dos alunos, preparando-nos para as respostas. Partíamos do presente, de uma música ou de uma matéria de jornal, por exemplo, para então introduzirmos um tema do passado; depois, dedicávamo-nos à relação entre presente e passado, destacando permanências e mudanças.

Trabalhar com fontes históricas variadas, conduzindo o aluno às críticas interna e externa dos mesmos, e planejar uma aula prevendo os detalhes de seu desenvolvimento são tarefas necessárias, mas não são suficientes. Faltava espaço para o imprevisto, para a dúvida, para o prazer da descoberta e para o outro, tanto o aluno que ensina quanto o professor que aprende. Eu estava insatisfeita, porque não me parecia que os alunos envolviam-se com a História. Como o aluno constrói conhecimento se ele já está pronto? Ele articula as pistas que apresento, mas não se envolve.

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Além disso, se nos dedicávamos tanto a mostrar para os alunos que todos somos sujeitos da história, por que o aluno não poderia ser sujeito da história de sua educação?

Na verdade, eu queria algo que estimulasse mais os alunos, que fizesse sentido para as suas vidas e para a minha também. Algo que não só os preparasse para criticar a História escrita, mas que os capacitasse para viver suas próprias histórias.

À medida que fui conhecendo o Museu-Escola e percebendo sua metodologia de trabalho, descobri outras possibilidades. A interdisciplinaridade, a articulação de diferentes saberes e experiênciasvividas e a perspectiva política questionadora em relação à educação foram os elementos que mais me encantavam.

Além disso, hoje vejo com maior clareza que o Museu-Escola tocou em questões que sempre estiveram presentes na minha vida: a memória, que se mostrou para mim sob diferentes aspectos, quer seja na tristeza da sua destruição, quer seja no prazer da sua descoberta, quer seja na força da sua preservação ou manipulação e, sobretudo, na articulação de todos estes aspectos.

O Museu-Escola tocou-me também por seu questionamento em relação aos rumos da memória diante da indústria do turismo, novamente movimentando em mim as lembranças da minha infância e as observações da estudante de História. E alimentou uma insatisfação de quem percebe, na prática, que a educação é mais ampla do que o ensino de História, formalmente concebido de forma instrucional.

E, certamente, o Museu-Escola foi além do que eu poderia perceber conscientemente. E reconheço isso só agora, escrevendo este texto. Quando li os primeiros documentos do Museu-Escola, a observação inicial que fiz foi em relação à sua aproximação com o cotidiano de pessoas comuns. Não passou despercebida na minha leitura a presença de pessoas como Sinhá Olympia, João Pé-de-Rodo e Bené da Flauta50, reconhecidas, naquele trabalho, como sujeitos históricos.

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João Pé-de-Rodo e Bené da Flauta eram homens humildes, freqüentemente vistos nas ruas de Ouro Preto, entre os anos 1970 e 1980. Sinhá Olympia era de uma família tradicional da cidade, mas, enlouquecida de amor, passou a vagar pelas ruas fazendo profecias, no mesmo período. O Museu-Escola os define como filósofos de ruas.

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O Museu-Escola permitiu-me voltar às lições e sujeitos que nossa sociedade julga serem incapazes de contribuir, ou seja, sua colaboração social é pré-concebida como improvável.

Muitas vezes, mesmo aqueles sujeitos que não são assim rotulados, têm fases da vida discriminadas pela sociedade. É o caso de idosos, crianças, adolescentes e mulheres que se dedicam à vida doméstica, entre outros.

A minha vida é plena da contribuição desses sujeitos! Dialogando com eles eu pude perceber outras dimensões de vida, que não teria percebido em um banco de escola, por exemplo.

Tentarei recordar alguns, começando pelo Jasso51, um deficiente físico que vivia em Três Ranchos, na minha infância, e fazia grandes esforços para dialogar com o outro.

Quando o Jasso chegava lá em casa, suas mãos vinham cheias de balinhas. Ele subia os degraus da porta da sala com tanta dificuldade, estendia para mim suas mãos calejadas pelo uso de enxada, entregava-me as balinhas e, depois de fazer diversas tentativas, pronunciava: afé! Naquele momento a mamãe já estava com a xícara de café quentinho para lhe servir. Ele ia embora com a mesma dificuldade de movimentação, deixando no chão da sala as marcas dos seus pés empoeirados, que nunca haviam experimentado um sapato porque eram retorcidos.

Também não posso esquecer-me da D. Amazília Vaz e de suas lições.

A D. Amazília, foi uma amiga especial. Sua irmã, D. Galdência, tinha a saúde frágil e a D. Amazília ia à minha casa chamar o papai para cuidar da irmã, freqüentemente. Encontrávamo-nos também nas reuniões das Comunidades Eclesiais de Base. Ela ia acompanhando a D. Ilda, sua filha, e eu acompanhando a mamãe. Logo, ficamos amigas. Ela uma senhora com, aproximadamente,setenta e cinco anos e eu, com quinze.

Ela sempre brincava, exceto quando recordava seus pais. Sua voz mudava, sua expressão era de total respeito enquanto contava as histórias de sua infância e mocidade. A forma como ela dizia “o papai”, “a mamãe” não deixava dúvidas em relação às advertências do meu pai: “os pais mandam nos filhos até depois de mortos.” Hoje, quando

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vejo meus tios e minha mãe sofrendo pela perda dos pais, recordo a D. Amazília e concordo com a mamãe: “pai e mãe fazem falta para os filhos em qualquer idade.”

Além de ser prazeroso conversar com D. Amazília, ela também me ensinava muito com suas histórias. Mas a maior lição que ela me deu foi em visita à D. Lola.

A D. Lola52 morava sozinha lá na roça e tinha problemas de tireóide. Ela tinha bócio e, por isso, muitas pessoas a discriminavam. Raramente ela ia à cidade, porque dependia de carona. A D. Amazília me convidou para irmos visitá-la. Deveríamos ir a pé, porque ela queria me mostrar que tinha ótimo condicionamento físico. Ela até me desafiou, dizendo que eu me cansaria primeiro! E foi difícil acompanhá-la!

Saímos de madrugada e fomos agraciadas pelas belezas do caminho: o sol subia lento atrás da serra, aquecendo o chão vermelho da estrada e fazendo-o exalar o cheiro da chuva; as gotinhas de água ainda se despediam das folhas, deixando brilhantes as nuanças do verde!

Andamos, rimos e contamos muitos casos!

Quando chegamos à casa da D. Lola, um vento frio de chuva batia em nossos corpos, enquanto eu fotografava mentalmente aquela cena: a satisfação de quem chega e de quem é visitado, o abraço das amigas, as paredes sem reboco, o filtro de barro na cantoneira de madeira e a delicadeza da D. Lola, servindo-nos marmelada com queijo fresco.

Depois de umas duas horas, voltamos para casa. Não me recordo se meu pai nos buscou ou se voltamos a pé, novamente. Mas jamais me esqueci da satisfação da D. Amazília, realizada por seu gesto de amor e por esbanjar saúde! Eu estava feliz pelo passeio e triste por perceber que a beleza daquele dia também mascarava o descaso da nossa sociedade com os idosos, que precisam se superar para provar que estão vivos.

E, aproveitando, recordo a última lição da minha avó Leonor Félix da Cunha, porque se o valor dos idosos é questionado, mais ainda é o dos que estão à beira da morte.

Depois de oito meses de tratamento contra um tumor no intestino, aos 82 anos, sofrendo de demência e com o organismo debilitado, ela teve que se submeter a uma segunda cirurgia. Após quinze dias, surge a necessidade da terceira intervenção cirúrgica. O médico prepara a família para o pior. Em menos de duas horas ela sai do centro cirúrgico e

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volta para o quarto. Nem passou pela UTI! Muito feliz por sua recuperação, cheguei bem perto do ouvido dela e disse:

– Vovó, já vou embora. Continue assim, com toda esta força, viu?! Ela voltou os olhos para mim, deu um sorriso e disse:

– Esta força vem de todo coração!

Quando fui entrevistada pelo Grupo Memória, na FE-UNICAMP, durante o processo seletivo, a Professora Vera Lúcia Sabongi De Rossi ficava me olhando e observando as respostas que eu dava, travando um diálogo silencioso com ela mesma. Saí da sala de entrevistas preocupada com o que ela estava pensando.

Em março de 2008, quando eu ingressei no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UNICAMP, matriculei-me no Seminário Conhecimentos Histórico-Educacionais: referenciais teórico metodológicos, oferecido pelas professoras Dra. Ernesta Zamboni, Dra. Heloísa Helena Pimenta Rocha, Dra. Maria do Carmo Martins, Dra. Maria Carolina Bovério Galzerani e Dra. Vera Lúcia Sabongi De Rossi. Esta última foi responsável pela abertura dos trabalhos. Na conversa de boas vindas, à medida que ela nos aconselhava, dizia que a pesquisa faz sentido quando o nosso projeto sai do nosso bolso, um bolsinho que fica do lado esquerdo do peito. Ela me olhou naquele momento. Não sei se estava verbalizando as observações silenciosas que havia feito sobre minha entrevista; mas eu compreendia bem aquelas palavras, sem nenhum embaraço.