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2: “Só se preserva aquilo que fez ou faz sentido para a coletividade”

No poema Cultura, trabalhado na seqüência do poema Identidade, na cartilha que compõe o Kit Pedaços do Tempo, encontramos alguns aspectos da cultura que foram destacados na confecção deste material pedagógico:

“Batatinha frita um, dois, três Atirei o pau no gato-to

mas o gato-to rouba-bandeira Dona Chica-ca parte queijo pêra, uva ou maça?

Mamãe da rua joga finquinho e eu brinco de rolimã.

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Me belisca no pique esconde? A linda rosa juvenil passa anel E se essa rua fosse minha eu mandava ladrilhar com pedrinhas de brilhante para roller, patins e skate fazerem acrobacias no ar.”

As cantigas de roda, assim como outras brincadeiras populares parecem colocar o conceito de cultura do Museu-Escola distante de uma instituição marcada pela valorização de pedra e cal, heróis e passado, pois focaliza manifestações culturais criadas e recriadas, sobretudo, por crianças, no espaço das ruas. O desenrolar dos versos é acompanhado da recriação de brincadeiras de rua, ou seja, estas são re-significadas na relação com o presente.

O conceito de cultura esboçado no Kit Pedaços do Tempo e criticado pelo IPHAN é indício das leituras dos patrimônios culturais empreendida pelo Museu-Escola, que produz uma ação a contrapelo da realizada até então em Ouro Preto, lugar que serviu de palco para a construção de uma imagem elitizada da cultura nacional, em grande parte das vezes apagando culturas e memórias plurais e procurando minimizar a autonomia dos sujeitos na relação com o patrimônio que eles contribuíram para edificar.

No entanto, o próprio conceito, novamente empregado no singular, expressa tensões inerentes à constituição de um projeto que objetiva romper com sensibilidades já instituídas. O Kit Pedaços do Tempo e o Museu-Escola estimulavam o respeito à diversidade e à pluralidade, mas a palavra empregada no título do poema não contribuiu para tal objetivo. Desta forma, poderíamos até nos perguntar por qual motivo o IPHAN criticou o conceito de cultura presente no Kit: ele seria equivocado por focalizar as culturas populares ou por abrir brechas à interpretação da cultura como algo homogêneo?

A análise de outras fontes me permite esboçar uma hipótese para esta questão. O tema musical do filme que compõe o Kit Pedaços do Tempo é a cantiga de roda Ciranda-Cirandinha. No entanto, ela não é cantada por crianças; é cantada à capela, em ritmo erudito, como música sacra. E, de acordo com Bete Salgado, tal artifício fora utilizado para responder à crítica do IPHAN. Ao colocar uma cantiga popular ao lado de

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peças sacras atribuídas ao artista Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, as autoras procuraram endossar a presença popular na constituição da(s) cultura(s) nacional(is).

Algumas vezes, interpretei essa ação como separação das culturas popular e erudita em dois blocos monolíticos. No entanto, após focalizar o Museu-Escola em seu momento de produção, isto é, como uma construção historicamente datada, consigo ter outras percepções e visualizar aspectos da documentação não percebidos anteriormente.

De fato, o Kit Pedaços do Tempo deu ênfase às manifestações populares; o que ocorreu, sem dúvida, em função do momento político vivido tanto pelos sujeitos do Museu- Escola, como por brasileiros outros. Se os grupos sócio-cultural-político-econômicos marginalizados estavam em luta pelo reconhecimento de seus direitos, inclusive de suas memórias e culturas, esta luta, também, era vivida pelo Museu-Escola e seus sujeitos posicionaram-se a favor de tais grupos. Este posicionamento, às vezes, tende a uma polarização. No entanto, em outras fontes, a polarização é atenuada.

No livro de literatura infantil Os Olhos do Marét, escrito por Bete Salgado em 1997 e dedicado às crianças do Museu-Escola, o Acervo do Museu da Inconfidência é apresentado a partir da narração da visita de Luíza, uma menina negra, e Berém, um índio. Luíza é puri e Berém é Marét, uma entidade do universo mítico dos Botocudos “que habitam o céu e tomam a forma de índio quando vêm ajudar outras pessoas.” (SOUZA, 1997: 55). Ao longo da história, um reconhece o outro como indígena e ambos identificam vestígios dentro do acervo do Museu que remetem às suas culturas, como os olhos amendoados de Santa Bárbara, que “fez Luíza se lembrar de sua mãe e pensar se não seria um traço indígena”.(Idem: 26)

Desta forma, sujeitos históricos marginalizados são retomados em uma perspectiva diferente da que lhes fora reservada na exposição museográfica daquele acervo, na qual a participação dos negros na história local foi definida a partir de uma ótica das elites dominantes e, portanto, aqueles foram representados pelos instrumentos de trabalho, tortura e coerção. Quanto aos indígenas, na década de 1990 ainda não havia referência explicita a eles no acervo do Museu.

O livro focalizado rompe com estas representações, ou com a ausência delas, apresentando uma história na qual a menina negra freqüenta museu, enquanto o índio está

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sempre dentro dele, ainda que escondido, esperando que alguém o veja e queira com ele dialogar.

Esta forma de ver o acervo do Museu da Inconfidência provoca uma ruptura na concepção daquele espaço museológico enquanto lugar de memórias das elites. O Museu- Escola buscava desconstruir esta concepção, estimulando uma releitura do acervo.

Quando se buscava a identificação de diferentes traços culturais nos objetos do acervo, esta proposta estava sendo colocada em prática, conforme esboçado no livro Os Olhos do Maret. E, também, quando buscava alargar a dimensão dos bens culturais que compõem o acervo do Museu, isto é, não focando apenas o sentido de relíquias pessoais atribuídos a alguns objetos, ligadas à memória de um ou outro personagem, mas como bens da cultura material, elaboradas numa dada temporalidade e espacialidade, na relação com as práticas culturais vigentes:

“o acervo era visto sim, mas ele era visto como produção de cultura humana; produção de cultura humana. Então se o acervo era uma produção humana do modo de ver, sentir, existir e fazer daquele que produziu aquilo, então pra nós a importância não era só o relógio pertenceu a Tiradentes mas era o relógio enquanto ele mesmo.”(Bete Salgado em entrevista a mim concedida, em agosto de 2009, p.9, parte 2)

Neste sentido, tanto o acervo do Museu da Inconfidência quanto a cidade de Ouro Preto foram concebidos como representativos de uma dimensão social mais ampla. As disputas políticas estão presentes nestes espaços sociais, conferindo a alguns grupos maior visibilidade do que a outros. Nossas sensibilidades também são educadas para percebermos a presença de uns em detrimento da presença de outros. Contudo, é uma coletividade mais ampla que constrói as histórias daquela cidade. É por se reconhecer neste espaço social mais amplo que a coletividade lhe atribui sentidos e o preserva como patrimônio.

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