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Sobre este breve relato dialético-histórico acima, fica-nos a instiga sobre a influência da cultura na legitimação e manutenção de um conhecimento, em prol de uma sociedade organizada para um determinado fim.

Com a crescente maturidade da ciência antropológica, novas reflexões sobre a ciência e a sua produção de conhecimento levou a uma multiplicação e diversificação de definições da própria palavra cultura. Em Cultura: Uma Revisão Crítica de Conceitos e Definições (1952, p. 2), os antropólogos americanos AL Kroeber e Clyde Kluckhohn reconheceram 164 definições da palavra, variando de "comportamento aprendido" a "ideias na mente", "uma construção lógica", "uma estatística ficção", "um mecanismo de defesa psíquica", e assim por diante.

Clifford Geertz (1978, p. 15) propõe que a cultura deve ser vista como um conjunto de mecanismos de controle - planos, receitas, regras, instituições - para governar o comportamento. Para ele, “mecanismos de controle” consistem naquilo que Mead (in Geertz, 1978, p. 45) e outros chamaram de símbolos significantes, ou seja, “palavras, gestos, desenhos, sons musicais, objetos ou qualquer coisa que seja usada para impor um significado à experiência”. Esses símbolos, correntes na sociedade e transmitidos aos indivíduos - que fazem uso de alguns deles, enquanto vivem -, “permanecem em circulação” mesmo após a morte dessas pessoas.

Deste modo, cada sistema sociocultural existe num habitat, e sabemos que este ambiente exerce uma influência sobre o sistema cultural, implicando razões de ser. As culturas de alguns grupos de esquimós apresentam exemplos notáveis de adaptação às condições ambientais: vestuário de pele, óculos, barcos e arpões para caçar mamíferos marinhos, e, em alguns casos, casas de neve hemisféricas, ou iglus. A cultura dos Navajos sofreu profunda mudança depois que adquiriu rebanhos de ovelhas e um mercado para seus tapetes foi desenvolvido. Os fueguinos, vivendo no extremo da América do Sul como observado por Charles Darwin, viviam em um ambiente muito frio e sob duras intempéries climáticas, mas permaneciam praticamente sem roupa e habitações.

Homens de culturas diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas. Por exemplo, a floresta amazônica não passa para o antropólogo — desprovido de um razoável conhecimento de botânica — de um amontoado confuso de árvores e arbustos, dos mais diversos tamanhos e com uma imensa variedade de tonalidades

verdes. A nossa herança cultural, desenvolvida através de inúmeras gerações, sempre nos condicionou a reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade.

O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura. Assim, podemos entender o fato de que indivíduos de culturas diferentes podem ser facilmente identificados por uma série de características, tais como o modo de agir, vestir, caminhar, comer, sem mencionar a evidência das diferenças linguísticas, o fato de mais imediata observação empírica.

Portanto, a ciência moderna foi e é um ato político, promovido para sustentar um contexto social. Foi construída nas relações e acordos humanos dogmatizados, conforme defende Beck (2010, p. 5). Bauman (2009, p. 28) chama o momento contemporâneo das ciências, assim como das relações culturais, de Modernidade líquida. Este seria um tempo e espaço de liquefação das normas, condutas e limites morais, onde o ser também se condiciona a esta plasticidade, podendo alçar múltiplas escolhas e ao mesmo que perde a identidade e singularidade. E por que deste acontecimento?

Segundo Giddens (1997, p. 3; 2002, p. 23) ainda não podemos classificar esse momento, mas podemos entendê-lo como um processo de descontinuidade da Modernidade. Para o autor não basta inventar novas palavras para explicar este redemoinho, mas sim olhar com atenção à própria Modernidade e analisar as suas consequências. E um desses efeitos é a globalização, que pode ser entendida como transformações universalizantes que reconfiguram a tradição, seu abandono ou desincorporação. O local encontra-se conectado ao global que influencia e é influenciado por este. A tradição vivenciada no locus do cotidiano, no espaço específico, é colocada em questão pela experiência vivenciada do indivíduo no tempo e espaço global. Nessa linha de pensamento, para Beck (2010, p. 41) referimos esse momento como Modernidade reflexiva, a qual transcorre em três períodos: Pré- Modernidade, que corresponde à transição do feudalismo para a sociedade moderna; a Modernidade Clássica que é coexistente com a sociedade industrial; e a Modernidade Tardia que é produzida sobre a sociedade de risco.

Este processo reflexivo apresenta-nos orbitando sobre duas faces, uma interna à ciência e outra externa à mesma. Ibáñez (2003, p. 10) chama esta interrogação interna da ciência de “retórica da verdade”. Aqui, a

ciência passa a olhar para si mesma, com foco na hegemonia dos processos metodológicos, por exemplo. Spink (2010, p. 46) aponta alguns dos questionamentos dessa vertente: “É imperativo haver método único para todas as ciências? É possível falar de uma dicotomia entre ciências naturais e ciências sociais? Qual a especificidade e lugar dos métodos qualitativos? Só a quantidade pode ser a medida do avanço conceitual?”. Deste modo, coloca-se em xeque a natureza do conhecimento. Já o olhar externo à ciência, constrói-se sobre os produtos da mesma. Seriam as preocupações éticas, engajadas no debate sobre as finalidades e efeitos da pesquisa e conhecimento gerado dela. Porém, Spink (2010) lembra que a questão da ética dos procedimentos de pesquisa acompanha a questão da Reflexividade não tanto de dentro da ciência, mas certamente nas fronteiras entre a ciência e a sociedade civil. Em um exemplo, a autora argumenta que “se hoje acontece uma conferência sobre desenvolvimento de vacinas de AIDS, no dia seguinte, estará sendo discutida na Internet”, promovendo a socialização, o debate e a construção de novos sentidos, pois a multiversalidade dos discursos vai estruturar novos efeitos.